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quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O documentário "No Paiz das Amazonas"



Até a década de 1920, falar sobre a Amazônia parecia algo tão distante para a maioria dos brasileiros, como descrever a África, a Oceania ou a Antártida. As informações vindas por meio dos jornais e das poucas revistas que existiam na época, mostravam uma região exótica e selvagem. De sua população tradicional, que vivia na beira dos grandes rios e tirava o seu sustento da própria natureza local, o conhecimento era mais escasso ainda, exceto por alguns poucos nomes de nossa literatura que viajaram ou moraram lá, entre os quais Euclides da Cunha e Inglês de Sousa, que chegaram a observar as terríveis condições em que viviam aqueles que trabalhavam na floresta, sobretudo os seringueiros. Nem mesmo as próprias autoridades tinham informações mais claras daquela região, pelo menos até o período de Getúlio Vargas, na década de 1930. 
Isso era algo grave, uma vez que, no início do século XX, a borracha extraída de suas florestas se tornou o segundo produto mais importante nas exportações do Brasil, perdendo apenas para o café. A região gerava uma renda considerável para o país naquele momento.
Pois bem, em 1921, o cineasta de origem portuguesa e radicado no Estado do Amazonas, Silvino Santos (1886-1970), realizou várias tomadas para a produção de um documentário, que começou a mudar um pouco esse cenário: "No Paíz das Amazonas" (na imagem acima, o cartaz original do filme).


Em 1922, o filme foi mostrado na capital federal, Rio de Janeiro, durante a Exposição Internacional do Centenário da Independência (na foto acima, um dos portões de entrada da grande exposição). Mas o sucesso do filme extrapolou os objetivos iniciais, sendo agraciado com a medalha de ouro na exposição. A película foi exibida depois em Paris e nas grandes capitais da Europa. Em 1923, foi lançada comercialmente no Rio de Janeiro e mostrada também no Palácio do Catete para o presidente da República e demais ministros. 
Apesar de ser uma novidade para muitos brasileiros no início do século XX, o cinema não era algo estranho no Amazonas. Em 1897, no conhecido Teatro Amazonas, localizado em Manaus, onde se apresentavam as companhias de ópera vindas da Europa, foi realizada a primeira sessão de cinema naquele Estado. O boom da borracha fez das cidades de Belém e Manaus dois grandes centros urbanos, onde surgiram novidades, que a maior parte das capitais brasileiras só viria a conhecer algum tempo depois, como os bondes, o telefone, a eletricidade e o próprio cinema.



Em 1899, o português Silvino Santos (na foto acima) desembarcou em Belém, capital do Estado do Pará e trabalhou por algum tempo no comércio local. Poucos anos depois, quando já começava a se familiarizar com a fotografia, transferiu-se para Manaus. Em 1910, começou a trabalhar como fotógrafo. 




O início da carreira de Silvino Santos na arte cinematográfica (na foto acima, o cineasta filmando em Rondônia, no ano de 1918) ocorreu de uma forma que, aos olhos de hoje, talvez não parecesse tão louvável. Santos foi contratado pelo empresário e comerciante Julio César Araña para produzir um documentário. De origem peruana, Araña fez fortuna vendendo mercadorias pelos rios do interior do Estado do Amazonas até o Acre. Naquela época, trocar manufaturas por produtos extrativos, como a borracha e a castanha-do-pará, proporcionava ganhos enormes, pois os comerciantes forneciam ou aviavam mercadorias para os seringueiros e extratores, a um valor muito acima do que haviam pago para adquirir os mesmos. Era o chamado sistema de aviamento, que ainda hoje persiste na Amazônia. Além disso, Araña e a sua empresa, The Peruvian Amazon Rubber Company, que também tinha sócios ingleses, foi acusada de escravizar e massacrar populações indígenas. Alguns relatos apontaram que, aproximadamente 30 mil índios trabalharam como escravos na extração da borracha, nos seringais controlados por Araña. Processado nas cortes de justiça da Inglaterra, o empresário resolveu apresentar um material que mostrasse a sua versão dos fatos e que servisse para apaziguar os sócios ingleses. 



Araña verificou que o melhor meio de mostrar a sua defesa era o cinema e foi aí que, o ainda fotografo Silvino Santos foi contratado (no fotograma acima, índios do antigo território de Rio Branco, atual Roraima, filmados por Silvino Santos em 1924). 




Contudo, Silvino Santos não dominava, naquele momento, a técnica cinematográfica (na imagem acima, Santos improvisa um laboratório fotográfico no tronco de uma árvore, em plena floresta). Em função disso, Araña patrocinou a ida do fotografo até Paris, para que o mesmo se familiarizasse com as novidades do cinema. Na capital francesa, Santos fez estágios nos estúdios Pathé e nos laboratórios dos irmãos Lumière (os inventores do cinema). Em 1913, de volta ao Brasil, o já cineasta realizou um documentário na região do rio Putumayo, entre o Brasil e a Colômbia, que serviu como argumento para o empresário Araña em sua defesa na Inglaterra. Por intermédio também de Araña, Santos conheceu sua futura esposa, Anna Maria Schermuly, descendente de alemães e protegida do empresário. Uma dúvida, que jamais poderá ser resolvida, dizia respeito ao conteúdo exato do filme realizado pelo cineasta e de que forma serviu de argumento em favor de J. C. Araña, uma vez que o negativo da película ficou perdido com o afundamento de um navio, com todo o material, em 1914.


Mas, felizmente, a carreira de Silvino Santos não se resumiu a essa controvertida colaboração com o empresário Araña. O cineasta realizou outros filmes, a maior parte dos quais também foram perdidos, como por exemplo, "Amazonas, o Maior Rio do Mundo", feito para a Amazônia Cine Film, companhia fundada pelo comerciante Manoel Gonçalves, em 1918. A firma fechou e, posteriormente, o seu espólio cinematográfico foi adquirido por um outro empresário, o comendador Joaquim Gonçalves de Araújo, mais conhecido como J. G. Araújo (imagem acima), que também fez fortuna como comerciante. Além de ter se dedicado à borracha, J. G. Araújo diversificou as suas atividades, como por exemplo, exportando o pirarucu e a tartaruga para países da Europa e para os Estados Unidos. Sua firma, J. G. Araujo e Cia. possuía filiais em várias cidades do interior da Amazônia. Posteriormente, o empresário foi responsável por uma incursão pioneira na área industrial, voltada para o beneficiamento da borracha e da castanha-do-pará, a Fábrica Brasil Hévea.



O filho do empresário, Agesilau Araújo, era um entusiasta da fotografia e do cinema. Por sua iniciativa foi aberta uma seção cinematográfica na empresa do pai. Para o gerenciamento da mesma, Agesilau contratou o cineasta Silvino Santos. Uma loja de material fotográfico e cinematográfico também foi aberta, a "Manaus Arte". Por intermédio de Agesilau, é que a empresa acabou patrocinando a realização do documentário exibido no Rio de Janeiro, na já citada exposição do centenário da independência: "No Paíz das Amazonas" (no fotograma acima, em uma cena do documentário, índios conduzem uma embarcação, no antigo território de Rio Branco, atual Roraima).


Trata-se do primeiro longa-metragem exibido no Brasil sobre a Amazônia. O documentário têm, como ponto de partida, o porto de Manaus e os seus armazéns, com o grande movimento remanescente da fase da borracha, que no início da década de 1920, já estava em decadência. 
Algumas cenas mostradas dos rios e lagos da Amazônia, com a pesca do pirarucu e do peixe-boi (fotograma acima) deixam a ideia de que o processo de depredação da natureza local é mais antigo do que se imagina. 


A pesca predatória do peixe-boi (fotograma acima, o peixe-boi abatido) é um aspecto que talvez cause estranheza aos defensores contemporâneos da natureza. 


Impressionam as cenas nas quais o animal era abatido por meio de arpões. A força do peixe-boi, após ter sido ferido e em agonia, chegava a carregar o barco e o seu condutor, como se o mesmo tivesse um motor na popa (na imagem acima, o peixe-boi trazido em um barco, após ter sido morto). 


Por outro lado, o filme revelava uma série de aspectos da região ainda desconhecidos dos brasileiros, como os caboclos ribeirinhos, os índios e destes, os que se dedicavam à extração da borracha, da castanha e à pesca. A coleta da castanha-do-pará é mostrada em detalhes, na floresta onde eram encontrados os castanhais nativos, o trabalho de quebra dos ouriços (o fruto onde se encontravam as castanhas propriamente ditas, como mostrado acima) e o processamento da amêndoa em Manaus, na própria fábrica montada pelo patrocinador do documentário, J. G. Araújo. Apesar da região ainda se destacar como grande produtora da goma elástica, embora já sofresse os efeitos da produção asiática, na década de 1920 a castanha-do-pará chegou a ultrapassar a borracha como mais importante produto de exportação da Amazônia.
Imagens raras dos campos naturais do antigo território de Rio Branco (atual Roraima) mostravam cenas atípicas para aqueles que imaginam a Amazônia dominada por mata fechada e floresta: a criação de gado e cavalos. A presença dos vaqueiros tomando conta dos animais parecem mais relacionados com os pampas gaúchos do que à Amazônia.
Pelo rio Madeira, em direção ao Acre, a ferrovia Madeira-Mamoré aparece no filme, em pleno funcionamento.


A carreira de Silvino Santos não se resumiu a esse documentário. No mesmo ano de 1922, durante a sua estada no Rio de Janeiro, rodou "Terra Encantada". Entre 1924 e 1925, o cineasta filmou outro longa-metragem: "No Rastro do Eldorado". Deste filme, restam apenas fragmentos (como na imagem acima). Realizado também com o patrocínio do grupo J. G. Araújo & Cia., esse documentário acompanhou a expedição científica do médico e explorador norte-americano Alexander Hamilton Rice, ao território do Rio Branco, para mapear os rios daquela região. Nesse filme, foram realizadas as primeiras tomadas aéreas da Amazônia, por meio de um hidroavião levado na expedição. 
Silvino Santos trabalhou até o final de sua vida na firma de J. G. Araújo, inclusive acompanhando a família do empresário em uma viagem a Portugal, entre 1925 e 1930. Nos anos seguintes, continuou a produzir curta-metragens para o comendador Araújo e para outras empresas do Amazonas.
Em 1970, no ano de sua morte, foi rodado um curta-metragem sobre o seu trabalho como cineasta. Em 1981, sua obra fotográfica foi exibida em uma galeria de Manaus.
A lembrança da obra pioneira do cineasta Silvino Santos reapareceu em um filme de 1997, intitulado "O Cineasta da Selva", do diretor Aurélio Michiles, um semi-documentário, com o ator José Abreu revivendo a trajetória do cineasta. A partir daí, a figura de Silvino Santos começou a ser colocada no merecido papel de precursor do cinema brasileiro e o seu trabalho como um documento importante para todos aqueles que estudam a História da Amazônia.
Para ver: "No Paiz das Amazonas" de Silvino Santos. Versátil Home Vídeo, 2014 (imagem abaixo).


Crédito das Imagens:
Cartaz original do filme, estúdio fotográfico improvisado na selva:Cinema no Amazonas de Selda Vale da Costa e Narciso Julio Freire Lobo. Artigo contido em Estudos Avançados USP 53: Dossiê Amazônia brasileira I, jan/abril 2005, pags. 296 e 297. 
Foto da Exposição Internacional do Centenário da Independência: Arquitetura: da taipa ao arranha-céu. Coleção Folha Fotos Antigas do Brasil. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2012, pag. 29.
Foto do comendador J. G. Araújo: http://joriatavora-arquivista.blogspot.com.br/
Demais imagens e fotogramas: DVD "No Paiz das Amazonas". 










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