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quinta-feira, 31 de maio de 2018

Anúncio Antigo 55: Seleção Brasileira e as feras do Saldanha



Veja o caro leitor que a Copa do Mundo de 1970 já mobilizava a torcida praticamente um ano antes, em setembro de 1969! Quase 90 milhões de "feras" (população estimada do Brasil naquela época). Bem diferente do que vemos hoje, com o público um tanto quanto indiferente à própria convocação final e mesmo na viagem dos jogadores para a Rússia. Eram outros tempos e o futebol gozava de gigantesca popularidade no sentido literal do termo, pois atraia as camadas sociais de renda baixa (e as demais também), que frequentavam os estádios de futebol e prestigiavam os seus times. A Ditadura Civil-Militar que comandava o país naquele momento percebeu isso e tratou de capitalizar politicamente a gigantesca simpatia popular pelo chamado "esporte bretão" (pois foi inventado pelos ingleses). O Anúncio Antigo acima mostra o início dessa mobilização em torno da Seleção Brasileira e como as grandes empresas também começavam a expor as suas marcas ao lado da mesma. 


Nesse material publicitário vemos uma referência ao técnico que classificou o Brasil nas eliminatórias para o mundial de futebol: João Saldanha (1917-1990). O seu time base ficou conhecido como "as feras do Saldanha" (na foto acima, João Saldanha como técnico da Seleção em 1969). Eram feras ou será que alguém ainda discorda? Vejamos: Felix, Carlos Alberto Torres, Djalma Dias, Joel, Rildo, Piazza, Gerson, Jairzinho, Tostão, Pelé e Edu. Com poucas alterações, foi o time da seleção tricampeã daquela Copa do Mundo que foi disputada no México. Grande parte desses jogadores vieram dos clubes do Santos, Botafogo e Cruzeiro, ou seja, os mesmos atuavam aqui, nenhum era do exterior, ao contrário do que ocorre hoje. 
Contudo, havia algo incomum nesse conjunto: o próprio técnico! Aqueles eram os anos em que os militares (apoiados por muitos civis) governavam o país de forma ditatorial e cuja palavra de ordem era o combate ao comunismo. Eram os "anos de chumbo" sob o comando do General Emílio Garrastazu Médici que governou entre 1969 e 1974. Médici fora o escolhido dentro dos quartéis para ocupar a presidência em 1969. Uma situação estranha! Como ter um técnico da Seleção Brasileira que era comunista e integrante de um partido proscrito (ilegal), o Partido Comunista Brasileiro (PCB)? A trajetória de João Saldanha era a de um homem absolutamente íntegro e de ótima formação. 
João Alves Jobim Saldanha nasceu no Rio Grande do Sul em 1917 e mais tarde mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, onde seu pai adquiriu um cartório. Na juventude chegou a ser jogador de futebol (no Botafogo, time em que atuou depois como técnico), mas deixou o esporte para estudar e se formar em Direito. Depois ainda estudou jornalismo, área em que veio a trabalhar como cronista esportivo. Nessa época já atuava politicamente no "Partidão" (como era chamado o Partido Comunista Brasileiro entre os seus simpatizantes). Saldanha tornou-se conhecido nos jornais, depois no rádio e finalmente na televisão, trabalhando em veículos como Última Hora, Jornal do Brasil e O Globo. Tido como um cronista sincero, que dizia o que pensava, angariou muitos inimigos e ainda um apelido dado pelo escritor Nelson Rodrigues, o de "João Sem-Medo". Em 1957 o time carioca do Botafogo, numa decisão inédita, ofereceu-lhe o cargo de técnico, mesmo sabendo que Saldanha nunca havia tido experiência prática na atividade. Naquele mesmo ano foi campeão do estadual numa partida empolgante, que terminou em goleada de 6 x 2 contra o Fluminense (onde jogava um certo Telê Santana). 


Alguns anos depois, em fevereiro de 1969 João Saldanha foi chamado pelo então presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD, antecessora da atual CBF) João Havelange, para comandar a desacreditada Seleção Brasileira. Desacreditada depois do fracasso na campanha de 1966 na Copa da Inglaterra, quando foi eliminada ainda na fase inicial (mesmo tendo Pelé e Garrincha). A tarefa era reabilitar o símbolo maior de nosso futebol e Saldanha conseguiu (na foto acima, Saldanha nos treinos da Seleção). Uma ótima campanha nas eliminatórias deu ao Brasil o passaporte para a próxima Copa do Mundo. 


Apesar disso, Saldanha era alvo de duras críticas por parte da imprensa e do então treinador do Flamengo Dorival Knipel, popularmente chamado de "Yustrich" (apelido que recebeu em função de sua semelhança física com um jogador do Boca Juniors que tinha esse nome), pelo fato de não levar muito em consideração a preparação física dos atletas. Yustrich (na foto acima de 1970) era conhecido pelo seu estilo rígido (quase militar) em relação aos jogadores, não admitindo atletas que tivessem cabelos compridos, barbas e que fumassem. Em uma declaração feita ao jornal alternativo "O Pasquim" afirmou: "Dou graças a Deus de não comandar jogadores homossexuais". 
Irritado com a campanha capitaneada por Yustrich e alegando que este ambicionava o seu cargo na seleção (o que era verdadeiro), Saldanha invadiu a sede do Flamengo armado de revólver, para tirar satisfações com o seu desafeto, o qual, para a sua própria sorte, não se encontrava no local. 


Muitos afirmam que esse episódio e um possível desentendimento com o mandatário maior do país, o presidente e ditador Emílio Médici (na foto acima, ainda com o uniforme de general), contribuíram para a destituição de João Saldanha do cargo de treinador, poucos meses antes da Copa do Mundo. Afirma-se que Saldanha não convocou o jogador Dário (o conhecido "Dadá Maravilha") do clube Atlético Mineiro, o qual teria sido recomendado pelo presidente (e por acaso, era um dos favoritos de Yustrich também). Saldanha ainda teria dito que da mesma forma que ele não nomeava ministros não admitia que o presidente escalasse os seus jogadores. Pronto! Estava terminada a passagem de Saldanha como técnico da Seleção. Na verdade, a Seleção Brasileira já passava por uma espécie de "intervenção militar" na sua Comissão Técnica, com a presença de preparadores físicos que vieram da Escola de Educação Física do Exército, entres eles Carlos Alberto Parreira e Claudio Coutinho. Bem, as feras ficaram, Mario Jorge Lobo Zagallo assumiu e o Brasil tornou-se campeão do mundo na Copa de 1970 com o mesmo time base. Polêmicas à parte, de fato seria estranho, na perspectiva dos mandatários do país naquele momento, que o Brasil pudesse ter se tornado tricampeão de futebol com um técnico reconhecidamente comunista. 
João Saldanha acabou indo ao México, mas como comentarista da Rede Globo, acompanhando o narrador Geraldo José de Almeida (uma espécie de Galvão Bueno da época). Um comunista na Rede Globo? Como mais tarde o humorista Chico Anysio declarou em uma entrevista, que quando Roberto Marinho foi questionado a respeito de ter em sua empresa militantes do Partidão, teria respondido: "Dos meus comunistas cuido eu!"
O amor de João Saldanha pelo futebol seguiu-o até o seu último suspiro. Morreu em 1990 em Roma, com graves problemas pulmonares (era um tabagista contumaz) quando cobria a Copa do Mundo da Itália pela extinta Rede Manchete. Nesse mesmo ano morreu também o seu desafeto maior, o técnico Yustrich, completamente esquecido.


O Anúncio Antigo de hoje, que traz a famosa "bicicleta" de Pelé estilizada (feita em um amistoso da Seleção no Maracanã, em 1965, foto acima) foi publicado na Revista Veja do dia 24 de setembro de 1969, na página 7. 
Crédito das imagens: 
Fotos de João Saldanha na seleção: Revista Veja, edições de 3.12.1969, página 3 e de 27.08.1969, página 43. 
Foto de Yustrich em 1970:
https://flamengoalternativo.wordpress.com/tag/yustrich/
Foto do General Médici: capa da Revista Veja de 01.10.1969. 
"Bicicleta" de Pelé: Pinterest. 

sábado, 26 de maio de 2018

Anúncio Antigo 54: Chacrinha e Silvio Santos



Sim, dois grandes nomes da televisão brasileira no ar, no mesmo dia e na mesma emissora. Mas claro, não no mesmo horário. Abelardo Barbosa, mais conhecido como Chacrinha e Senor Abravanel, popularmente chamado de Silvio Santos. A emissora era a TV Globo e os programas iam ao ar aos domingos. Silvio Santos iniciava uma verdadeira maratona televisiva a partir das 11:30 da manhã e que se estendia até as 8 horas da noite. Simplesmente oito horas e meia no ar, com os seus quadros de entretenimento e as promoções vinculadas ao conhecido carnê do Baú da Felicidade. Como o próprio apresentador destacava, o telespectador podia participar e concorrer aos prêmios, desde que estivesse "rigorosamente em dia com as prestações do carnê". Caso não conseguisse nenhum prêmio, o cliente poderia retirar o saldo final que havia sido pago em mercadorias nas lojas do Baú. Normalmente o Programa Silvio Santos começava com o show de cantores conhecido como "Os Galãs Cantam e Dançam aos Domingos". Em seguida o "Só Compra Quem Tem" (vinculado ao carne do Baú) vindo em seguida o conhecido "Programa de Calouros" e depois os shows de variedades (entre os quais "Namoro no Escuro" e o "Show da Loteria"), incluindo no final o "Boa Noite Cinderela" que costumava presentear as crianças (meninas) que faziam pedidos em cartas endereçadas ao programa. 
Às oito horas da noite entrava o Chacrinha com mais um programa de calouros e candidatos ao estrelato: "A Hora da Buzina". A música de abertura trazia o refrão que se eternizou na história da televisão brasileira:

É hora, é hora, é hora 
É hora da buzina
O programa que acaba 
Quando termina...

Vocês querem bacalhau???? Era a deixa para o principal patrocinador do programa, os Supermercados Casas da Banha. E ainda tinha a promoção premiada, caso o telespectador acertasse quantas vezes o Chacrinha iria buzinar. Os calouros desafinados recebiam uma bela buzinada do Velho Guerreiro, apelido acrescentado ao já outro apelido de Abelardo Barbosa, o Chacrinha.


Após os dois mais conhecidos programas de auditório da televisão brasileira (na foto acima, Silvio Santos e Chacrinha nos estúdios da TV Globo, em 1971) era hora dos "enlatados" ou como eram chamados os filmes e séries feitos pela televisão norte-americana. Um deles era o seriado "Marcus Welby Médico" estrelado pelo ator Robert Young. Sim, aquele que ficou famoso na década de 1950 com outra série conhecida: "Papai Sabe Tudo". Encerrando a noite um filme de longa-metragem. 
Eis um domingo televisivo típico da classe média brasileira no distante ano de 1971! O Anúncio Antigo de hoje foi publicado no jornal "O Estado de S. Paulo" de 11 de abril daquele ano. 
Crédito das imagens:
Silvio Santos e Chacrinha em 1971: Agência Estado. 

quinta-feira, 24 de maio de 2018

História Mundi na revista Leituras da História: Tábua Peutinger




Com muito orgulho o blog História Mundi anuncia mais uma matéria de sua lavra publicada na revista Leituras da História (imagens acima), da editora Escala, na edição deste mês de junho (nas bancas e livrarias de todo o Brasil). Trata-se de um trabalho sobre a Tábua Peutinger, única carta existente de um cursus publicus ou rota de estradas da Antiga Roma que foi copiada no século XIII e por essa razão chegou até nós. Ao ser visualizada, e isso pode ser feito na Wikipédia, a mesma transforma-se em um exercício incomparável de geografia, pois permite identificar antigas cidades (como a conhecida Pompéia, destruída por uma erupção vulcânica no século I), as penínsulas e os continentes, da forma como faziam os viajantes da Antiguidade. 
Não deixem de ler essa matéria e as demais da conceituada revista, que traz curiosidades e informações para aqueles que desejam conhecer um pouco mais sobre o passado. É isso aí...

terça-feira, 22 de maio de 2018

Eles também fazem a História



A Roma Imperial
É repleta de arcos do triunfo. Quem os ergueu?
Sobre quem 
Os Césares triunfaram?

César derrotou os gauleses.
Não havia nem mesmo um cozinheiro em seu exército?
Cada página uma vitória. 
À custa de quem o baile da vitória?
Em cada década um grande homem. 
Quem pagou a conta?

Tantas particularidades. 
Tantas perguntas.

Bertolt Brecht, A Worker Reads History (citado por John Dominic Crossan. O Essencial de Jesus. São Paulo: Jardim dos Livros, 2008, páginas 9 e 10). 
Crédito da imagem: 
Trabalhadores metalúrgicos no início do século XX: Sindicato dos Metalúrgicos de Jundiaí (SP). 

domingo, 20 de maio de 2018

Um rosto para Jesus



Caro leitor, é muito difícil para o senso comum lembrar de um personagem histórico sem ter em mente o seu rosto, embora na maioria das vezes, pelo menos até a invenção da fotografia (na primeira metade do século XIX), o que temos são representações dessas figuras feitas por pintores e artistas. Neste caso podemos contar com uma relativa precisão, se o retratado tiver sido contemporâneo de quem o retratou. Mas, e quando nos referimos a alguém que viveu há dois mil anos atrás e também um personagem dos mais influentes de todos os tempos? É o caso de Jesus de Nazaré, que tornou-se depois o Cristo (Messias em grego) da fé religiosa. Não temos sequer uma única descrição de sua aparência, apenas a idade aproximada na época de sua crucificação, em torno dos trinta anos. Por outro lado, vemos a imagem do nazareno reproduzida em igrejas, pinturas, estátuas, livros, filmes entre outras formas de divulgação criadas ao longo dos séculos. Como essas representações foram estabelecidas se, como foi dito acima, não sabemos praticamente nada sobre a sua fisionomia? Na verdade, trata-se de uma construção histórica, a qual, a cada momento e por meio de uma série de influências (políticas, culturais, econômicas entre outras) tivemos as variadas formas de representação da sua figura. A imagem que normalmente vemos hoje de Jesus com a pele branca, barba, cabelos castanhos claros (ou mesmo loiro) e olhos azuis, surgiu a partir de uma forte influência cultural européia ou do que poderíamos chamar de eurocentrismo (ver o mundo sob a ótica ocidental e europeizante), que se acentuou sobretudo a partir do Renascimento na Era Moderna. Mas, nem sempre ele foi visto dessa forma. As primeiras representações de Jesus apareceram no século II e o mostravam como um jovem romanizado, imberbe (sem barba) e com cabelos mais curtos (exatamente como na imagem acima, que abre esta postagem, de uma catacumba romana do início do século IV). 


Nessa fase, a representação mais comum de Jesus o mostra como o "Bom Pastor" (imagem acima de outra catacumba romana, do ano 250), associado ao cuidador sábio e amoroso, aliás uma referência presente no Evangelho de João:

Eu sou o bom pastor e conheço as minhas [ovelhas] e elas conhecem a mim, tal como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. E dou a vida pelas ovelhas. E tenho outras ovelhas que não são desse redil. Também a essas eu tenho de conduzir e escutarão a minha voz e devirão um rebanho, um pastor.
                                                                                    (João 10,14-16)



A cultura greco-romana contribuiu muito para o estabelecimento dessa primeira imagem de Jesus. Os reis descritos pelo poeta grego Homero eram qualificados como "pastores do povo". A figura do pastor carregando cabras e ovelhas aparece também na estatuária grega (como na foto acima, homem com bezerro em mármore, do século VI a.C.) representando animais sendo levados ao sacrífico ou carregados por figuras mitológicas, como o deus Hermes (o Mercúrio dos romanos, divindade mensageira e depois associada ao comércio). 



O "Bom Pastor" foi muito representado nas paredes das catacumbas da cidade de Roma, locais de culto e refúgio dos primeiros cristãos, ainda quando eram perseguidos pelas autoridades romanas nos primeiros séculos da era cristã (na foto acima, a catacumba de São Calisto, frequentada pelos cristãos entre os séculos II e IV). 


Outra forma de representação da figura de Jesus nessa época o mostra como o Sol Invictus, como aparece no mosaico (imagem criada pela incrustação de pequenas peças coloridas) mostrado acima, de uma residência na cidade de Roma, do ano 300. Aqui temos uma influência do culto ao Deus Sol (Hélio) praticado entre os romanos, onde essa divindade era representada em uma carruagem puxada por cavalos, com os raios ou chamas que saiam de sua cabeça (como na famosa Estátua da Liberdade, que aliás herdou essa influência). Como afirma Helmut Renders, doutor em ciências da religião, trata-se de uma releitura cristã de algo ainda presente no imaginário religioso romano da época e que reforça o aspecto divino do Cristo, como eterno e invencível.  Aliás, devemos lembrar ao leitor que era no dia 25 de dezembro que os romanos comemoravam o nascimento do Sol Invencível (solstício de inverno, o dia mais curto do ano). No século IV, os cristãos se apropriaram dessa comemoração como sendo o dia do nascimento de Jesus e daí surgiu o Natal. Não sabemos, de fato, em que dia Jesus nasceu e nenhuma fonte registrou isso, nem os Evangelhos. 


O peixe também tornou-se um símbolo cristão nessa fase, por estar muito presente nas Escrituras e também porque o termo ictus (peixe em grego) é formado pelas iniciais de Iesus Christos Theou Uios Soter ou "Jesus Cristo Filho de Deus Salvador" (o mosaico acima, do século VI, celebra a milagrosa multiplicação dos pães e peixes). 



O Jesus romanizado (como no baixo relevo acima de um sarcófago em mármore, do final do século IV) que descrevemos até aqui, caracterizou a arte paleocristã (cristianismo antigo) no momento em que a nova religião ganhava popularidade nas principais cidades do Império Romano, processo esse iniciado com as pregações do Apóstolo Paulo (ou São Paulo) ainda no século I. 



Eventualmente, em algumas outras situações, o Jesus romanizado podia ser representado à semelhança de um filósofo ou sábio, daí aparecer com barba e cabelos longos, como no baixo relevo de um sarcófago romano que aparece acima (do final do século III). Jesus está ensinando ao centro e também aparece promovendo curas nos lados direito e esquerdo. Sua imagem guarda semelhança com o Zeus da mitologia grega, com barba e sentado sobre uma rocha, carregando um pergaminho na mão esquerda e a mão direita levantada no tradicional gesto de ensinamento. É o protótipo do Jesus Pantocrator que descreveremos adiante. 



No mosaico acima do final do século V, na cidade de Ravena na Itália, temos um Cristo incomum, com postura triunfante, vestido como legionário romano, pisando sobre a cabeça de um leão e de uma serpente. Também a cruz começa a surgir como símbolo de reverência entre os seus seguidores. Em uma das mãos, pode-se ver um livro onde está escrito "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida". Como sabemos, o cristianismo ganhou aceitação oficial no Império Romano a partir do ano 313, época do imperador Constantino (o primeiro governante romano a se converter à nova religião). O mosaico acima já reflete a consolidação da religião cristã e a influência do Império Bizantino (que sucedeu ao Império Romano em sua porção oriental), embora Ravena fosse, até o início do século VI, controlada pelos bárbaros ostrogodos. A figura de Jesus é mostrada com toda autoridade e respaldada em uma Igreja já institucionalmente forte. 


Ainda no Império Bizantino tivemos os mosaicos apresentando Jesus com barba, cabelos compridos (repartidos ao meio) e o rosto alongado (na imagem acima, mosaico da Basílica de Santo Apolinário em Ravena, Itália, do século VI). Trata-se do Cristo Pantocrator (numa tradução aproximada "Todo Poderoso" ou "aquele que tudo governa") e que estabeleceu o padrão para a representação posterior de Jesus, talvez inicialmente uma adaptação da figura do Zeus da mitologia grega. Note-se em torno de sua cabeça um halo e parte da cruz em três pontas, representando também a Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), reflexo de influências anteriores, entre as quais a do Sol Invictus que já mostramos. 



Em geral, no Pantocrator temos Cristo segurando com a mão esquerda o Novo Testamento e com a direita o gesto de ensinar e abençoar, herdado da tradição grega (como na imagem acima, um mosaico da Igreja de Santa Sofia em Constantinopla, datado do ano 1280). Nessa forma de representação, Jesus é um ser invencível, à semelhança dos próprios imperadores bizantinos da época e usa a túnica, antiga vestimenta dos senadores romanos. Esses mosaicos eram colocados na cúpula das igrejas para dar uma dimensão celestial da figura do Cristo. O Pantocrator caracterizou a representação de Jesus na Igreja Ortodoxa (separada da cristandade ocidental, a partir do Cisma do Oriente no ano 1054), tanto nos mosaicos quanto nos ícones (pinturas em madeira com a sua imagem). A mesma também teve enorme influência nas representações de Jesus feitas no Ocidente até os dias de hoje.


Enquanto isso, na Europa Ocidental, na época do surgimento do Reino dos Francos (cristão, mas de origem bárbara) tivemos o início do representação do Jesus crucificado. Até então, a cruz era associada ao pior dos castigos, reservado aos marginais e párias da sociedade, sendo por isso evitada a sua representação com Jesus. Contudo, a partir de Constantino tal condenação foi abolida e lentamente a figura do Cristo crucificado aparece como símbolo do triunfo do Salvador sobre a morte, a própria ressurreição. Inicialmente, o rosto era apresentado de modo sereno e indiferente ao martírio da crucificação, como no painel de marfim acima, que data do ano 400, onde temos também a figura de Judas enforcado (no lado esquerdo). 


Nos últimos séculos da Idade Média é que veremos o Jesus crucificado mostrado com maior naturalismo, refletindo o sofrimento e o castigo que lhe foi imposto (como no Cristo acima, com aspecto de tristeza, proveniente da Renânia e confeccionado no século XII). Estudiosos, como o já citado Helmut Renders, associam tal representação aos tempos mais difíceis da fome e da Peste Negra no século XIV. 



Na Baixa Idade Média (séculos XI-XV) o crescimento urbano e a formação de uma sociedade mais permeável permitiram aos europeus reinterpretarem as imagens estáticas da arte bizantina e mais passivas da arte gótica. Eram os primeiros sinais da revolução artística do Renascimento, como podemos observar na imagem acima do pintor italiano Giotto (Jesus Abençoando no Trono, possivelmente da década de 1330), muito influenciada pela figura do Pantocrator, mas que revela as características que, a partir de então, estariam presentes no rosto de um Jesus europeizado, inclusive na cor de seus cabelos. 



No Renascimento Cultural propriamente dito (séculos XIV, XV e XVI) ganhou notoriedade o Jesus que costumamos observar com maior frequência, branco, loiro e de olhos azuis, cuja imagem "triunfou" nos tempos do Imperialismo nos séculos XIX e XX, por força da influência econômica e cultural dos europeus no resto do mundo (como na imagem acima, detalhe da pintura de Piero de la Francesca "O Batismo de Cristo", aproximadamente de 1445).
As imagens que representaram Jesus em todos esses períodos, procuraram mostrar o Cristo ressuscitado, o filho de Deus e não o homem que viveu na Palestina no século I. A preocupação em trazer à luz da história o Jesus de Nazaré real é algo relativamente recente e faz parte daquilo que se conhece como a busca pelo Jesus histórico. Antropólogos, linguistas, arqueólogos, sociólogos e historiadores entre outros, procuraram estabelecer a existência do personagem dentro do contexto histórico da Palestina submetida ao controle do Império Romano. A própria existência de Jesus de Nazaré chegou a ser colocada em dúvida, a partir das críticas feitas ao conteúdo dos Evangelhos, em meados do século XIX, por estudiosos influenciados pelo racionalismo e pelo cientificismo. 



Nessa perspectiva é que no ano de 2001 foi realizada uma reconstituição de um possível rosto de Jesus, para a produção de um documentário da BBC inglesa, tendo por base os dados e medidas do crânio de um judeu (selecionado entre outros três) que viveu na mesma época do nazareno. O resultado foi um homem de corpo atarracado, rosto arredondado, nariz grosso, com olhos e cabelos escuros (imagem acima). Todo esse trabalho foi coordenado pelo especialista forense em reconstituição facial, o britânico Richard Neave, o mesmo que trabalhou na recomposição do rosto de Luzia, uma mulher com características africanas, cujo crânio (o mais antigo das Américas) foi encontrado em um sítio arqueológico do estado de Minas Gerais. Claro, isso não significa que chegamos a algo preciso com relação ao rosto de Jesus, mas é uma aproximação interessante. 



E agora, em 2018, foi divulgada outra tentativa de atribuir um rosto ao Jesus histórico realizada pelo designer gráfico brasileiro Cícero Mendes, também especializado em reconstituição facial forense e que já trabalhou na recomposição do rosto de 11 santos católicos. Para isso, tomou-se como ponto de partida as características médias de vários esqueletos de homens judeus (afinal, Jesus era um judeu) contemporâneos de Jesus de Nazaré. Os parâmetros estabelecidos, isto é, altura de 1,60 m (metro), pouco mais de 50 quilos de peso, sendo um indivíduo moreno e com cabelos castanho-claros (ou mesmo pretos) caracterizavam um típico morador do Oriente Médio, que vivia em uma região quase árida. A isso, ainda devemos acrescentar a atividade mais comum daquele período, o de camponês, fosse ele pastor ou que eventualmente exercesse a profissão de pedreiro (que incluía a tarefa de carpinteiro), atividades exercidas ao ar livre, em contato direto com a luz do sol. O resultado é o que temos na imagem acima. Com relação à cabeleira seria improvável que Jesus tivesse madeixas longas, algo tido como desonroso para um homem naquele ambiente cultural. Mesmo quando a sua figura é representada nos filmes épicos de Hollywood (um dos mais recentes é Ben-Hur, de 2016, com o brasileiro Rodrigo Santoro no papel de Jesus), apenas ele aparece com cabelo comprido! A barba era admissível, desde que a mesma não fosse longa e estivesse aparada. 



Tomando isso como uma probabilidade dentro dos padrões da população local, encontramos um desvio acentuado na figura "estampada" que aparece no Santo Sudário de Turim (imagem acima, em preto e branco), pois lá temos um indivíduo de mais de 1,80 m (metro) de altura, cabelos longos e com o rosto à semelhança das representações criadas a partir do Pantocrator. Talvez por isso, os estudiosos do Jesus histórico não considerem o Sudário como um registro do que seria o Jesus real, mas que pode ser incluído dentro da iconografia existente do personagem. 
Sempre se desejou reproduzir a imagem dos grandes personagens históricos, mas fazer isso de forma fiel ao que esse mesmo personagem foi é uma preocupação típica do nosso tempo, muito por influência do avanço da ciência e das possibilidades dadas por esta para que isso pudesse ser feito. Por outro lado, a análise crítica dos estudiosos demonstrou a existência de várias interferências e imposições culturais no processo de representação artística dessas figuras, sobretudo de Jesus. Daí a enorme distância entre a imagem ainda predominante do "Jesus europeizado" em relação aos novos fiéis do cristianismo, que surgiram nos países periféricos. De acordo com André Leonardo Chevitarese, um dos maiores especialistas no Brasil no estudo do Jesus histórico, temos em vários lugares do mundo representações da figura do nazareno com as características culturais das populações locais, desde um Jesus de olhos puxados (na China) até um Salvador com feições negras (na Etiópia). Trata-se daquilo que é conhecido como o "Cristo étnico".




Aqui no Brasil encontramos também tentativas de representar a figura de Jesus com feições mais próximas das características de nosso povo, como nos trabalhos do artista plástico Claudio Pastro (1948-2016), considerado por muitos o maior nome da arte sacra brasileira desde Aleijadinho. Pastro recuperou antigas representações, como o Pantocrator e o Bom Pastor (imagens acima, no traço simples e elegante de Pastro) em seus painéis, vitrais, azulejos e pinturas. Algumas dessas obras compõem o Santuário Nacional de Aparecida, na cidade de Aparecida do Norte (SP).
Muito provavelmente para os fiéis e aqueles que creem nas palavras de Jesus, a sua real aparência não seja uma preocupação fundamental e talvez nem importante. Mas para os estudiosos que buscam analisar como se forja a imagem de um personagem histórico é um aspecto instigante e curioso...
Citação do Evangelho de João: Bíblia: Novo Testamento. Os quatro evangelhos. Traduzido direto do grego por Frederico Lourenço. Companhia das Letras, 2017, página 369.
Crédito das imagens: 
Imagens de Jesus de túnica branca, do Bom Pastor, Jesus romanizado, no painel de marfim crucificado e de uma catacumba: Roma Imperial. Biblioteca de História Universal Life. Livraria José Olympio Editora, 1969, páginas 182, 179, 184, 180 e 183 respectivamente. 
Homem com bezerro em mármore do século VI a.C.: Grécia Clássica. Biblioteca de História Universal Life. Livraria José Olympio Editôra, 1969, página 73.
Jesus como o Sol Invictus: Wikipédia.
Mosaico do século VI com a multiplicação dos pães e peixes: Jesus e os apóstolos: a história do cristianismo. Revista National Geographic. Editora Abril, 2015, página 1. 
Jesus como professor e filósofo em um baixo relevo do final do século III: 
https://www.romeartlover.it/Vasi162.htm
Cristo crucificado do século XII: Europa medieval. Volume I. Coleção Grandes Impérios e Civilizações. Edições del Prado, 1996, página 86. 
Jesus de Giotto: Coleção Gênios da Pintura. Volume Góticos e Renascentistas II. Abril Cultural, página 30. 
Pintura "O Batismo de Cristo" de Piero de la Francesca: livro "Investigando Piero" de Carlo Ginzburg. Editora Cosac Naify, 2010, ilustração 2. 
Jesus no Sudário de Turim: Wikipédia.
Jesus Pantocrator de Claudio Pastro: http://www.alfanio.com.br/pd-520c10-face-pantocrator-20x30.html
Jesus Bom Pastor de Claudio Pastro: Pinterest

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Anúncio Antigo 53: Dia das Mães




Caro leitor, uma das datas mais tradicionais do nosso calendário contemporâneo é o Dia das Mães, comemorado no segundo domingo do mês de maio. O Anúncio Antigo de hoje (imagem acima) é um pretexto para descrevermos como surgiu esse evento comemorativo. 
Na Antiga Grécia havia uma comemoração similar, em honra da deusa Reia, mãe das demais divindades da mitologia grega e associada à fertilidade feminina. Essa celebração era realizada durante a entrada da primavera. A história de Reia é muito interessante. Bem, é uma redundância nos referirmos à mitologia grega como interessante. Então, vamos lá! Um oráculo (local onde eram recebidas as mensagens divinas) havia profetizado que um dos Titãs (seres que deram origem aos deuses), Cronos, seria destronado por um dos seus filhos. Temendo que isso viesse a ocorrer, Cronos resolveu engolir todos os recém-nascidos (perceba que esse mito de recém-nascidos eliminados tem similar em outras culturas), até que sua esposa e irmã Reia resolveu salvar o sexto filho: Zeus. 


Quando este nasceu, ela o escondeu em uma caverna e no momento de apresentá-lo ao pai substituiu-o por uma pedra que foi enrolada em panos (como aparece no alto relevo romano, imagem acima). Cronos ingeriu a mesma, imaginando tratar-se do filho recém-nascido. Mais tarde, já adulto, o sobrevivente Zeus destronou o pai (cumprindo a profecia) e forçou-o a vomitar todos os outros filhos que havia engolido. Dessa forma, Zeus estabeleceu-se como deus supremo do Olimpo (morada dos deuses). Não há qualquer tipo de continuidade histórica entre as duas celebrações da figura materna (da Antiguidade e da Era Contemporânea), embora a mitologia grega mostre o que uma mãe era capaz de fazer para defender a sua prole! 
Vamos avançar um pouco mais no tempo, até os Estados Unidos no século XIX, quando a ativista social e integrante da Igreja Metodista Ann Maria Reeves Jarvis (1832-1905), estabeleceu em 1865 o "Dia da Amizade para as Mães" a fim de ajudar os feridos na Guerra Civil Norte-Americana. Alguns anos antes, Ann Maria já havia organizado um Clube das Mães Trabalhadoras voltado para proteger as crianças pobres. 


Mas, foi a sua filha Anna Marie Jarvis (1864-1948), que ficou conhecida como a criadora do Dia das Mães nos Estados Unidos. Também integrante da Igreja Metodista, ela teve a ideia de estabelecer a comemoração anual como forma de reverenciar a memoria de sua progenitora e as demais mães americanas. A sua campanha para criar a data teve exito. Em 1914, o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma resolução estabelecendo o segundo domingo do mês de maio como o Dia das Mães, sendo celebrado pela primeira vez naquele mesmo ano. Contudo, Anna Jarvis (na foto acima) não concordou com a mercantilização do evento, que cresceu muito na segunda década do século XX, coincidindo com o surgimento daquilo que ficou conhecido como a sociedade de consumo. A criadora do Dia das Mães resolveu afastar-se de qualquer ligação com a data que foi criada por sua iniciativa. Uma ironia, Anna Jarvis não se casou e também não teve filhos. Portanto, nunca se tornou uma mãe!
Aqui no Brasil, coube à Associação Cristã de Moços do Rio Grande do Sul instituir a comemoração do Dia das Mães em 1918. Nos anos seguintes a data foi sendo também introduzida em outras regiões até se popularizar. Em 1932, o presidente Getúlio Vargas oficializou a data (também no segundo domingo de maio). O evento veio junto com a conquista do direito de voto para as mulheres naquele mesmo ano. Em 1947, a comemoração foi acrescentada ao calendário oficial da Igreja Católica e na década seguinte já estava plenamente assimilada no comércio, como mostra o Anúncio Antigo de hoje (imagem que abre esta postagem), publicado no jornal "O Estado de S. Paulo" do dia 13 de maio de 1951. Atualmente é considerada a segunda melhor data para as vendas no varejo de modo geral, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, perdendo apenas para o Natal.
No anúncio percebemos que a figura materna estava muito associada às atividades domésticas e ao cuidado com a casa, seguindo o padrão da classe média norte-americana da época e copiado por aqui. Daí serem comuns os anúncios oferecerem como lembrança para as mães utilidades domésticas, como uma enceradeira, ou ainda batedeira de bolos, liquidificadores, máquinas de lavar e aquilo que hoje seria um insulto para a mulher moderna: um jogo de panelas! Embora com uma participação crescente no mercado de trabalho, as mulheres teriam que aguardar a década de 1960 para poderem dar outros passos rumo a uma maior emancipação na sociedade, uma luta que ainda prossegue...
Crédito das imagens: 
Alto relevo romano com a deusa Reia entregando a pedra a Cronos: Pinterest. 
Foto de Ann Jarvis: Wikipédia.