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quinta-feira, 31 de maio de 2018

Anúncio Antigo 55: Seleção Brasileira e as feras do Saldanha



Veja o caro leitor que a Copa do Mundo de 1970 já mobilizava a torcida praticamente um ano antes, em setembro de 1969! Quase 90 milhões de "feras" (população estimada do Brasil naquela época). Bem diferente do que vemos hoje, com o público um tanto quanto indiferente à própria convocação final e mesmo na viagem dos jogadores para a Rússia. Eram outros tempos e o futebol gozava de gigantesca popularidade no sentido literal do termo, pois atraia as camadas sociais de renda baixa (e as demais também), que frequentavam os estádios de futebol e prestigiavam os seus times. A Ditadura Civil-Militar que comandava o país naquele momento percebeu isso e tratou de capitalizar politicamente a gigantesca simpatia popular pelo chamado "esporte bretão" (pois foi inventado pelos ingleses). O Anúncio Antigo acima mostra o início dessa mobilização em torno da Seleção Brasileira e como as grandes empresas também começavam a expor as suas marcas ao lado da mesma. 


Nesse material publicitário vemos uma referência ao técnico que classificou o Brasil nas eliminatórias para o mundial de futebol: João Saldanha (1917-1990). O seu time base ficou conhecido como "as feras do Saldanha" (na foto acima, João Saldanha como técnico da Seleção em 1969). Eram feras ou será que alguém ainda discorda? Vejamos: Felix, Carlos Alberto Torres, Djalma Dias, Joel, Rildo, Piazza, Gerson, Jairzinho, Tostão, Pelé e Edu. Com poucas alterações, foi o time da seleção tricampeã daquela Copa do Mundo que foi disputada no México. Grande parte desses jogadores vieram dos clubes do Santos, Botafogo e Cruzeiro, ou seja, os mesmos atuavam aqui, nenhum era do exterior, ao contrário do que ocorre hoje. 
Contudo, havia algo incomum nesse conjunto: o próprio técnico! Aqueles eram os anos em que os militares (apoiados por muitos civis) governavam o país de forma ditatorial e cuja palavra de ordem era o combate ao comunismo. Eram os "anos de chumbo" sob o comando do General Emílio Garrastazu Médici que governou entre 1969 e 1974. Médici fora o escolhido dentro dos quartéis para ocupar a presidência em 1969. Uma situação estranha! Como ter um técnico da Seleção Brasileira que era comunista e integrante de um partido proscrito (ilegal), o Partido Comunista Brasileiro (PCB)? A trajetória de João Saldanha era a de um homem absolutamente íntegro e de ótima formação. 
João Alves Jobim Saldanha nasceu no Rio Grande do Sul em 1917 e mais tarde mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, onde seu pai adquiriu um cartório. Na juventude chegou a ser jogador de futebol (no Botafogo, time em que atuou depois como técnico), mas deixou o esporte para estudar e se formar em Direito. Depois ainda estudou jornalismo, área em que veio a trabalhar como cronista esportivo. Nessa época já atuava politicamente no "Partidão" (como era chamado o Partido Comunista Brasileiro entre os seus simpatizantes). Saldanha tornou-se conhecido nos jornais, depois no rádio e finalmente na televisão, trabalhando em veículos como Última Hora, Jornal do Brasil e O Globo. Tido como um cronista sincero, que dizia o que pensava, angariou muitos inimigos e ainda um apelido dado pelo escritor Nelson Rodrigues, o de "João Sem-Medo". Em 1957 o time carioca do Botafogo, numa decisão inédita, ofereceu-lhe o cargo de técnico, mesmo sabendo que Saldanha nunca havia tido experiência prática na atividade. Naquele mesmo ano foi campeão do estadual numa partida empolgante, que terminou em goleada de 6 x 2 contra o Fluminense (onde jogava um certo Telê Santana). 


Alguns anos depois, em fevereiro de 1969 João Saldanha foi chamado pelo então presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD, antecessora da atual CBF) João Havelange, para comandar a desacreditada Seleção Brasileira. Desacreditada depois do fracasso na campanha de 1966 na Copa da Inglaterra, quando foi eliminada ainda na fase inicial (mesmo tendo Pelé e Garrincha). A tarefa era reabilitar o símbolo maior de nosso futebol e Saldanha conseguiu (na foto acima, Saldanha nos treinos da Seleção). Uma ótima campanha nas eliminatórias deu ao Brasil o passaporte para a próxima Copa do Mundo. 


Apesar disso, Saldanha era alvo de duras críticas por parte da imprensa e do então treinador do Flamengo Dorival Knipel, popularmente chamado de "Yustrich" (apelido que recebeu em função de sua semelhança física com um jogador do Boca Juniors que tinha esse nome), pelo fato de não levar muito em consideração a preparação física dos atletas. Yustrich (na foto acima de 1970) era conhecido pelo seu estilo rígido (quase militar) em relação aos jogadores, não admitindo atletas que tivessem cabelos compridos, barbas e que fumassem. Em uma declaração feita ao jornal alternativo "O Pasquim" afirmou: "Dou graças a Deus de não comandar jogadores homossexuais". 
Irritado com a campanha capitaneada por Yustrich e alegando que este ambicionava o seu cargo na seleção (o que era verdadeiro), Saldanha invadiu a sede do Flamengo armado de revólver, para tirar satisfações com o seu desafeto, o qual, para a sua própria sorte, não se encontrava no local. 


Muitos afirmam que esse episódio e um possível desentendimento com o mandatário maior do país, o presidente e ditador Emílio Médici (na foto acima, ainda com o uniforme de general), contribuíram para a destituição de João Saldanha do cargo de treinador, poucos meses antes da Copa do Mundo. Afirma-se que Saldanha não convocou o jogador Dário (o conhecido "Dadá Maravilha") do clube Atlético Mineiro, o qual teria sido recomendado pelo presidente (e por acaso, era um dos favoritos de Yustrich também). Saldanha ainda teria dito que da mesma forma que ele não nomeava ministros não admitia que o presidente escalasse os seus jogadores. Pronto! Estava terminada a passagem de Saldanha como técnico da Seleção. Na verdade, a Seleção Brasileira já passava por uma espécie de "intervenção militar" na sua Comissão Técnica, com a presença de preparadores físicos que vieram da Escola de Educação Física do Exército, entres eles Carlos Alberto Parreira e Claudio Coutinho. Bem, as feras ficaram, Mario Jorge Lobo Zagallo assumiu e o Brasil tornou-se campeão do mundo na Copa de 1970 com o mesmo time base. Polêmicas à parte, de fato seria estranho, na perspectiva dos mandatários do país naquele momento, que o Brasil pudesse ter se tornado tricampeão de futebol com um técnico reconhecidamente comunista. 
João Saldanha acabou indo ao México, mas como comentarista da Rede Globo, acompanhando o narrador Geraldo José de Almeida (uma espécie de Galvão Bueno da época). Um comunista na Rede Globo? Como mais tarde o humorista Chico Anysio declarou em uma entrevista, que quando Roberto Marinho foi questionado a respeito de ter em sua empresa militantes do Partidão, teria respondido: "Dos meus comunistas cuido eu!"
O amor de João Saldanha pelo futebol seguiu-o até o seu último suspiro. Morreu em 1990 em Roma, com graves problemas pulmonares (era um tabagista contumaz) quando cobria a Copa do Mundo da Itália pela extinta Rede Manchete. Nesse mesmo ano morreu também o seu desafeto maior, o técnico Yustrich, completamente esquecido.


O Anúncio Antigo de hoje, que traz a famosa "bicicleta" de Pelé estilizada (feita em um amistoso da Seleção no Maracanã, em 1965, foto acima) foi publicado na Revista Veja do dia 24 de setembro de 1969, na página 7. 
Crédito das imagens: 
Fotos de João Saldanha na seleção: Revista Veja, edições de 3.12.1969, página 3 e de 27.08.1969, página 43. 
Foto de Yustrich em 1970:
https://flamengoalternativo.wordpress.com/tag/yustrich/
Foto do General Médici: capa da Revista Veja de 01.10.1969. 
"Bicicleta" de Pelé: Pinterest. 

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