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domingo, 20 de maio de 2018

Um rosto para Jesus



Caro leitor, é muito difícil para o senso comum lembrar de um personagem histórico sem ter em mente o seu rosto, embora na maioria das vezes, pelo menos até a invenção da fotografia (na primeira metade do século XIX), o que temos são representações dessas figuras feitas por pintores e artistas. Neste caso podemos contar com uma relativa precisão, se o retratado tiver sido contemporâneo de quem o retratou. Mas, e quando nos referimos a alguém que viveu há dois mil anos atrás e também um personagem dos mais influentes de todos os tempos? É o caso de Jesus de Nazaré, que tornou-se depois o Cristo (Messias em grego) da fé religiosa. Não temos sequer uma única descrição de sua aparência, apenas a idade aproximada na época de sua crucificação, em torno dos trinta anos. Por outro lado, vemos a imagem do nazareno reproduzida em igrejas, pinturas, estátuas, livros, filmes entre outras formas de divulgação criadas ao longo dos séculos. Como essas representações foram estabelecidas se, como foi dito acima, não sabemos praticamente nada sobre a sua fisionomia? Na verdade, trata-se de uma construção histórica, a qual, a cada momento e por meio de uma série de influências (políticas, culturais, econômicas entre outras) tivemos as variadas formas de representação da sua figura. A imagem que normalmente vemos hoje de Jesus com a pele branca, barba, cabelos castanhos claros (ou mesmo loiro) e olhos azuis, surgiu a partir de uma forte influência cultural européia ou do que poderíamos chamar de eurocentrismo (ver o mundo sob a ótica ocidental e europeizante), que se acentuou sobretudo a partir do Renascimento na Era Moderna. Mas, nem sempre ele foi visto dessa forma. As primeiras representações de Jesus apareceram no século II e o mostravam como um jovem romanizado, imberbe (sem barba) e com cabelos mais curtos (exatamente como na imagem acima, que abre esta postagem, de uma catacumba romana do início do século IV). 


Nessa fase, a representação mais comum de Jesus o mostra como o "Bom Pastor" (imagem acima de outra catacumba romana, do ano 250), associado ao cuidador sábio e amoroso, aliás uma referência presente no Evangelho de João:

Eu sou o bom pastor e conheço as minhas [ovelhas] e elas conhecem a mim, tal como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. E dou a vida pelas ovelhas. E tenho outras ovelhas que não são desse redil. Também a essas eu tenho de conduzir e escutarão a minha voz e devirão um rebanho, um pastor.
                                                                                    (João 10,14-16)



A cultura greco-romana contribuiu muito para o estabelecimento dessa primeira imagem de Jesus. Os reis descritos pelo poeta grego Homero eram qualificados como "pastores do povo". A figura do pastor carregando cabras e ovelhas aparece também na estatuária grega (como na foto acima, homem com bezerro em mármore, do século VI a.C.) representando animais sendo levados ao sacrífico ou carregados por figuras mitológicas, como o deus Hermes (o Mercúrio dos romanos, divindade mensageira e depois associada ao comércio). 



O "Bom Pastor" foi muito representado nas paredes das catacumbas da cidade de Roma, locais de culto e refúgio dos primeiros cristãos, ainda quando eram perseguidos pelas autoridades romanas nos primeiros séculos da era cristã (na foto acima, a catacumba de São Calisto, frequentada pelos cristãos entre os séculos II e IV). 


Outra forma de representação da figura de Jesus nessa época o mostra como o Sol Invictus, como aparece no mosaico (imagem criada pela incrustação de pequenas peças coloridas) mostrado acima, de uma residência na cidade de Roma, do ano 300. Aqui temos uma influência do culto ao Deus Sol (Hélio) praticado entre os romanos, onde essa divindade era representada em uma carruagem puxada por cavalos, com os raios ou chamas que saiam de sua cabeça (como na famosa Estátua da Liberdade, que aliás herdou essa influência). Como afirma Helmut Renders, doutor em ciências da religião, trata-se de uma releitura cristã de algo ainda presente no imaginário religioso romano da época e que reforça o aspecto divino do Cristo, como eterno e invencível.  Aliás, devemos lembrar ao leitor que era no dia 25 de dezembro que os romanos comemoravam o nascimento do Sol Invencível (solstício de inverno, o dia mais curto do ano). No século IV, os cristãos se apropriaram dessa comemoração como sendo o dia do nascimento de Jesus e daí surgiu o Natal. Não sabemos, de fato, em que dia Jesus nasceu e nenhuma fonte registrou isso, nem os Evangelhos. 


O peixe também tornou-se um símbolo cristão nessa fase, por estar muito presente nas Escrituras e também porque o termo ictus (peixe em grego) é formado pelas iniciais de Iesus Christos Theou Uios Soter ou "Jesus Cristo Filho de Deus Salvador" (o mosaico acima, do século VI, celebra a milagrosa multiplicação dos pães e peixes). 



O Jesus romanizado (como no baixo relevo acima de um sarcófago em mármore, do final do século IV) que descrevemos até aqui, caracterizou a arte paleocristã (cristianismo antigo) no momento em que a nova religião ganhava popularidade nas principais cidades do Império Romano, processo esse iniciado com as pregações do Apóstolo Paulo (ou São Paulo) ainda no século I. 



Eventualmente, em algumas outras situações, o Jesus romanizado podia ser representado à semelhança de um filósofo ou sábio, daí aparecer com barba e cabelos longos, como no baixo relevo de um sarcófago romano que aparece acima (do final do século III). Jesus está ensinando ao centro e também aparece promovendo curas nos lados direito e esquerdo. Sua imagem guarda semelhança com o Zeus da mitologia grega, com barba e sentado sobre uma rocha, carregando um pergaminho na mão esquerda e a mão direita levantada no tradicional gesto de ensinamento. É o protótipo do Jesus Pantocrator que descreveremos adiante. 



No mosaico acima do final do século V, na cidade de Ravena na Itália, temos um Cristo incomum, com postura triunfante, vestido como legionário romano, pisando sobre a cabeça de um leão e de uma serpente. Também a cruz começa a surgir como símbolo de reverência entre os seus seguidores. Em uma das mãos, pode-se ver um livro onde está escrito "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida". Como sabemos, o cristianismo ganhou aceitação oficial no Império Romano a partir do ano 313, época do imperador Constantino (o primeiro governante romano a se converter à nova religião). O mosaico acima já reflete a consolidação da religião cristã e a influência do Império Bizantino (que sucedeu ao Império Romano em sua porção oriental), embora Ravena fosse, até o início do século VI, controlada pelos bárbaros ostrogodos. A figura de Jesus é mostrada com toda autoridade e respaldada em uma Igreja já institucionalmente forte. 


Ainda no Império Bizantino tivemos os mosaicos apresentando Jesus com barba, cabelos compridos (repartidos ao meio) e o rosto alongado (na imagem acima, mosaico da Basílica de Santo Apolinário em Ravena, Itália, do século VI). Trata-se do Cristo Pantocrator (numa tradução aproximada "Todo Poderoso" ou "aquele que tudo governa") e que estabeleceu o padrão para a representação posterior de Jesus, talvez inicialmente uma adaptação da figura do Zeus da mitologia grega. Note-se em torno de sua cabeça um halo e parte da cruz em três pontas, representando também a Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), reflexo de influências anteriores, entre as quais a do Sol Invictus que já mostramos. 



Em geral, no Pantocrator temos Cristo segurando com a mão esquerda o Novo Testamento e com a direita o gesto de ensinar e abençoar, herdado da tradição grega (como na imagem acima, um mosaico da Igreja de Santa Sofia em Constantinopla, datado do ano 1280). Nessa forma de representação, Jesus é um ser invencível, à semelhança dos próprios imperadores bizantinos da época e usa a túnica, antiga vestimenta dos senadores romanos. Esses mosaicos eram colocados na cúpula das igrejas para dar uma dimensão celestial da figura do Cristo. O Pantocrator caracterizou a representação de Jesus na Igreja Ortodoxa (separada da cristandade ocidental, a partir do Cisma do Oriente no ano 1054), tanto nos mosaicos quanto nos ícones (pinturas em madeira com a sua imagem). A mesma também teve enorme influência nas representações de Jesus feitas no Ocidente até os dias de hoje.


Enquanto isso, na Europa Ocidental, na época do surgimento do Reino dos Francos (cristão, mas de origem bárbara) tivemos o início do representação do Jesus crucificado. Até então, a cruz era associada ao pior dos castigos, reservado aos marginais e párias da sociedade, sendo por isso evitada a sua representação com Jesus. Contudo, a partir de Constantino tal condenação foi abolida e lentamente a figura do Cristo crucificado aparece como símbolo do triunfo do Salvador sobre a morte, a própria ressurreição. Inicialmente, o rosto era apresentado de modo sereno e indiferente ao martírio da crucificação, como no painel de marfim acima, que data do ano 400, onde temos também a figura de Judas enforcado (no lado esquerdo). 


Nos últimos séculos da Idade Média é que veremos o Jesus crucificado mostrado com maior naturalismo, refletindo o sofrimento e o castigo que lhe foi imposto (como no Cristo acima, com aspecto de tristeza, proveniente da Renânia e confeccionado no século XII). Estudiosos, como o já citado Helmut Renders, associam tal representação aos tempos mais difíceis da fome e da Peste Negra no século XIV. 



Na Baixa Idade Média (séculos XI-XV) o crescimento urbano e a formação de uma sociedade mais permeável permitiram aos europeus reinterpretarem as imagens estáticas da arte bizantina e mais passivas da arte gótica. Eram os primeiros sinais da revolução artística do Renascimento, como podemos observar na imagem acima do pintor italiano Giotto (Jesus Abençoando no Trono, possivelmente da década de 1330), muito influenciada pela figura do Pantocrator, mas que revela as características que, a partir de então, estariam presentes no rosto de um Jesus europeizado, inclusive na cor de seus cabelos. 



No Renascimento Cultural propriamente dito (séculos XIV, XV e XVI) ganhou notoriedade o Jesus que costumamos observar com maior frequência, branco, loiro e de olhos azuis, cuja imagem "triunfou" nos tempos do Imperialismo nos séculos XIX e XX, por força da influência econômica e cultural dos europeus no resto do mundo (como na imagem acima, detalhe da pintura de Piero de la Francesca "O Batismo de Cristo", aproximadamente de 1445).
As imagens que representaram Jesus em todos esses períodos, procuraram mostrar o Cristo ressuscitado, o filho de Deus e não o homem que viveu na Palestina no século I. A preocupação em trazer à luz da história o Jesus de Nazaré real é algo relativamente recente e faz parte daquilo que se conhece como a busca pelo Jesus histórico. Antropólogos, linguistas, arqueólogos, sociólogos e historiadores entre outros, procuraram estabelecer a existência do personagem dentro do contexto histórico da Palestina submetida ao controle do Império Romano. A própria existência de Jesus de Nazaré chegou a ser colocada em dúvida, a partir das críticas feitas ao conteúdo dos Evangelhos, em meados do século XIX, por estudiosos influenciados pelo racionalismo e pelo cientificismo. 



Nessa perspectiva é que no ano de 2001 foi realizada uma reconstituição de um possível rosto de Jesus, para a produção de um documentário da BBC inglesa, tendo por base os dados e medidas do crânio de um judeu (selecionado entre outros três) que viveu na mesma época do nazareno. O resultado foi um homem de corpo atarracado, rosto arredondado, nariz grosso, com olhos e cabelos escuros (imagem acima). Todo esse trabalho foi coordenado pelo especialista forense em reconstituição facial, o britânico Richard Neave, o mesmo que trabalhou na recomposição do rosto de Luzia, uma mulher com características africanas, cujo crânio (o mais antigo das Américas) foi encontrado em um sítio arqueológico do estado de Minas Gerais. Claro, isso não significa que chegamos a algo preciso com relação ao rosto de Jesus, mas é uma aproximação interessante. 



E agora, em 2018, foi divulgada outra tentativa de atribuir um rosto ao Jesus histórico realizada pelo designer gráfico brasileiro Cícero Mendes, também especializado em reconstituição facial forense e que já trabalhou na recomposição do rosto de 11 santos católicos. Para isso, tomou-se como ponto de partida as características médias de vários esqueletos de homens judeus (afinal, Jesus era um judeu) contemporâneos de Jesus de Nazaré. Os parâmetros estabelecidos, isto é, altura de 1,60 m (metro), pouco mais de 50 quilos de peso, sendo um indivíduo moreno e com cabelos castanho-claros (ou mesmo pretos) caracterizavam um típico morador do Oriente Médio, que vivia em uma região quase árida. A isso, ainda devemos acrescentar a atividade mais comum daquele período, o de camponês, fosse ele pastor ou que eventualmente exercesse a profissão de pedreiro (que incluía a tarefa de carpinteiro), atividades exercidas ao ar livre, em contato direto com a luz do sol. O resultado é o que temos na imagem acima. Com relação à cabeleira seria improvável que Jesus tivesse madeixas longas, algo tido como desonroso para um homem naquele ambiente cultural. Mesmo quando a sua figura é representada nos filmes épicos de Hollywood (um dos mais recentes é Ben-Hur, de 2016, com o brasileiro Rodrigo Santoro no papel de Jesus), apenas ele aparece com cabelo comprido! A barba era admissível, desde que a mesma não fosse longa e estivesse aparada. 



Tomando isso como uma probabilidade dentro dos padrões da população local, encontramos um desvio acentuado na figura "estampada" que aparece no Santo Sudário de Turim (imagem acima, em preto e branco), pois lá temos um indivíduo de mais de 1,80 m (metro) de altura, cabelos longos e com o rosto à semelhança das representações criadas a partir do Pantocrator. Talvez por isso, os estudiosos do Jesus histórico não considerem o Sudário como um registro do que seria o Jesus real, mas que pode ser incluído dentro da iconografia existente do personagem. 
Sempre se desejou reproduzir a imagem dos grandes personagens históricos, mas fazer isso de forma fiel ao que esse mesmo personagem foi é uma preocupação típica do nosso tempo, muito por influência do avanço da ciência e das possibilidades dadas por esta para que isso pudesse ser feito. Por outro lado, a análise crítica dos estudiosos demonstrou a existência de várias interferências e imposições culturais no processo de representação artística dessas figuras, sobretudo de Jesus. Daí a enorme distância entre a imagem ainda predominante do "Jesus europeizado" em relação aos novos fiéis do cristianismo, que surgiram nos países periféricos. De acordo com André Leonardo Chevitarese, um dos maiores especialistas no Brasil no estudo do Jesus histórico, temos em vários lugares do mundo representações da figura do nazareno com as características culturais das populações locais, desde um Jesus de olhos puxados (na China) até um Salvador com feições negras (na Etiópia). Trata-se daquilo que é conhecido como o "Cristo étnico".




Aqui no Brasil encontramos também tentativas de representar a figura de Jesus com feições mais próximas das características de nosso povo, como nos trabalhos do artista plástico Claudio Pastro (1948-2016), considerado por muitos o maior nome da arte sacra brasileira desde Aleijadinho. Pastro recuperou antigas representações, como o Pantocrator e o Bom Pastor (imagens acima, no traço simples e elegante de Pastro) em seus painéis, vitrais, azulejos e pinturas. Algumas dessas obras compõem o Santuário Nacional de Aparecida, na cidade de Aparecida do Norte (SP).
Muito provavelmente para os fiéis e aqueles que creem nas palavras de Jesus, a sua real aparência não seja uma preocupação fundamental e talvez nem importante. Mas para os estudiosos que buscam analisar como se forja a imagem de um personagem histórico é um aspecto instigante e curioso...
Citação do Evangelho de João: Bíblia: Novo Testamento. Os quatro evangelhos. Traduzido direto do grego por Frederico Lourenço. Companhia das Letras, 2017, página 369.
Crédito das imagens: 
Imagens de Jesus de túnica branca, do Bom Pastor, Jesus romanizado, no painel de marfim crucificado e de uma catacumba: Roma Imperial. Biblioteca de História Universal Life. Livraria José Olympio Editora, 1969, páginas 182, 179, 184, 180 e 183 respectivamente. 
Homem com bezerro em mármore do século VI a.C.: Grécia Clássica. Biblioteca de História Universal Life. Livraria José Olympio Editôra, 1969, página 73.
Jesus como o Sol Invictus: Wikipédia.
Mosaico do século VI com a multiplicação dos pães e peixes: Jesus e os apóstolos: a história do cristianismo. Revista National Geographic. Editora Abril, 2015, página 1. 
Jesus como professor e filósofo em um baixo relevo do final do século III: 
https://www.romeartlover.it/Vasi162.htm
Cristo crucificado do século XII: Europa medieval. Volume I. Coleção Grandes Impérios e Civilizações. Edições del Prado, 1996, página 86. 
Jesus de Giotto: Coleção Gênios da Pintura. Volume Góticos e Renascentistas II. Abril Cultural, página 30. 
Pintura "O Batismo de Cristo" de Piero de la Francesca: livro "Investigando Piero" de Carlo Ginzburg. Editora Cosac Naify, 2010, ilustração 2. 
Jesus no Sudário de Turim: Wikipédia.
Jesus Pantocrator de Claudio Pastro: http://www.alfanio.com.br/pd-520c10-face-pantocrator-20x30.html
Jesus Bom Pastor de Claudio Pastro: Pinterest

3 comentários:

  1. No oriente médio, uma das regiões mais quentes do mundo um 'Jesus branco dos olhos azuis' é utopia!

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    1. Sem dúvida Victor Hugo. Por isso escrevi essa postagem para uma reflexão sobre a construção da imagem de Jesus ao longo do tempo. Obrigado pela leitura!

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  2. Porque foi subindo como renovo perante ele é como raiz de uma terra seca.não tinha parecer nem formosura;e olhando nos para ele nenhuma beleza víamos para que o desejassem os. Isaias53:2

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