quinta-feira, 26 de julho de 2018

Exposição Virtual: Toda Nudez Não Será Castigada




Caro (a) leitor (a), o blog História Mundi apresenta uma exposição virtual de um cara que, há alguns anos, brinca de desenhar: eu mesmo. Tratam-se de alguns trabalhos que tem como tema a figura humana. Os mesmos (exceto os dois últimos) foram produzidos entre os anos de 2001 e 2002 na Associação Paulista de Belas Artes (APBA), uma das pouquíssimas instituições que ainda mantém espaço para os artistas que desejam se exercitar no trabalho com modelo vivo. Na verdade, o meu gosto pelo desenho vem da minha infância, uma vez que preenchia boa parte do meu tempo rabiscando cadernos de desenhar com bobagens, do tipo cenas de filmes vistos na televisão (super-heróis e seriados), cópias de imagens de jornais e revistas. 
Em 1974 com 12 anos de idade, o meu pai (o senhor José) me matriculou numa pequena escola de desenho no bairro da Água Rasa (zona leste de São Paulo), a Escola Padre Landell de Moura. Naquela época existiam muitas escolas (particulares) que ministravam cursos de desenho publicitário e desenho artístico. Meu pai sempre esperou que eu me especializasse em desenho publicitário, pois ele via como algo que poderia ter boa remuneração e propiciar um ofício (ah, se ele soubesse o que viria depois com a computação gráfica...). Imaginem um garoto com 12 anos de idade num curso onde só tinha marmanjo! E o pior, com indivíduos com anos de estrada fazendo trabalhos decorativos, quadros (no estilo acadêmico), letreiros, cartazes de propaganda entre outras coisas. Eles precisavam apenas de um diploma para apresentar no currículo e eu ainda tinha que aprender. Mas permaneci lá por um ano (meu pai achava que eu não estava evoluindo) e depois fui para outra escola do mesmo gênero, a Escola Brasileira de Desenho, localizada no bairro do Brás, próximo ao antigo Gasômetro (também em São Paulo). Lá conheci um professor que mudou a minha concepção do que era aprender a desenhar: José Carlos Martins ou Martins de Porangaba. Ele não era apenas um simples professor de desenho, era (e é) um grande artista. Mostrou a mim e aos outros alunos que desenhar e pintar requeria mais do que fazer cópias de outros trabalhos já prontos e que era preciso observar, ver, saber colocar no papel algo que estivesse diante de nossos olhos. Ele passou para nós o que era a verdadeira arte apreciada em museus, nas galerias de arte e nos livros. A partir daí aprendi a enxergar um Picasso, um Van Gogh, um Cézanne, um Portinari e um Bonadei entre outros. 


Logo pude fazer trabalhos de observação. De simples objetos (a conhecida natureza morta) até chegarmos à figura humana (como no desenho acima). Bem, depois Martins de Porangaba criou um grupo a partir desses alunos, entre eles eu, Marlene, Silvio, Nide, Mauro, Lídia, Saulo, Garibaldi (amigo de Porangaba) entre outros. Vieram as sessões de modelo vivo e a minha paixão pela figura humana que se perpetuou até os dias de hoje. Posteriormente, mais alguns anos de trabalho no Museu Lasar Segall e na Pinacoteca do Estado de São Paulo (onde cheguei a expor) também me ajudaram. O tempo passou. Martins de Porangaba tornou-se um artista consagrado. Quanto a mim completei os meus estudos, me formei na Universidade de São Paulo e ministrei aulas de história por três décadas. Anos depois fiz mestrado e doutorado. Mas sempre que pude dava uma escapadinha na Associação (que me foi apresentada pelo próprio Porangaba) e mantive um pouco a forma. Os trabalhos dessa pequena mostra, como já apontei acima, foram realizados lá. 


Basicamente utilizei o grafite com um pouco de lápis de cor. Nos últimos anos, bem lentamente, tenho introduzido um pouco mais de cor nos trabalhos, mas sem deixar de lado o grafite (lápis) pois ainda é o material basilar quando se trata da arte de desenhar. 




Entendo como fundamental no desenho saber observar o claro e o escuro. Muitas vezes o escuro já compõe o próprio trabalho. Vem em seguida a linha, que podemos perceber também com base no mesmo claro e escuro. Por último a cor. O indivíduo que conseguir entender essas três dimensões (não necessariamente na ordem em que expus) terá nas mãos os elementos básicos do desenho. A partir daí poderá partir para outros vôos, como a composição e a pintura. E claro, é necessário muito exercício. 


O desenho deve ser um hábito e a pessoa sempre deve ter à sua disposição um bloco para pequenos trabalhos, esboços e rabiscos. Utilizar bom material! Infelizmente os importados estão anos luz à frente dos nacionais. 




Como acréscimo a esta pequeníssima mostra dois trabalhos recentes, produzidos em 2018 (imagens acima). Afinal, como já destaquei, desenhar é para a vida toda. Atualmente eu, Martins de Porangaba, Silvio Melo, Marlene de Andrade, Waltércio Zanvettor, Sonia Manno e Garibaldi formamos o "Grupo de Arte Belenzinho". No mesmo mantemos encontros e trocamos ideias a respeito dos nossos trabalhos.
Nos últimos tempos tenho notado um certo "puritanismo" por parte do público em relação às figuras nuas na arte. Já presenciei casos em que trabalhos de determinados artistas sofreram restrições em função da presença de um corpo humano ao natural ou que insinue algo que evoque a sensualidade. Que tempos estamos vivendo! Caso isso seja real e não uma simples impressão deste que vos escreve, trata-se de um regresso de séculos na arte. Por isso estou colocando à mostra esses trabalhos antes que os mesmos sejam incinerados ou destruídos por algum inquisidor intolerante (aliás, trata-se de redundância dizer que um inquisidor é intolerante). Daí o título que dei para esta pequena mostra, inspirado na conhecida peça de Nelson Rodrigues. Não, a nudez não pode ser castigada, pois castigar a nudez é castigar a própria arte. É isso aí...
Para ver:
Toda Nudez Não Será Castigada: desenhos de Jonas.
Onde: aqui mesmo no blog História Mundi. 
Observação:
Os trabalhos medem 28 x 35 centímetros, exceto o penúltimo, o qual mede 23 x 30 centímetros. 

terça-feira, 24 de julho de 2018

Anúncio Antigo 58: cinto Modess



Caro leitor (a), no Anúncio Antigo 39 tivemos a oportunidade de descrever como surgiu o absorvente feminino descartável, que trouxe um conforto maior para as mulheres. O produto começou a ser comercializado no início da década de 1930, em plena Depressão econômica que abalou o mundo capitalista. A multinacional estadunidense Johnson & Johnson foi a responsável pela colocação do mesmo no mercado para o grande público feminino. Em 1945 o absorvente Modess começou a ser fabricado e vendido aqui no Brasil, mas para as consumidoras privilegiadas, pois a novidade não era acessível a todos os bolsos (ou melhor bolsas). O produto não nasceu tão moderno como conhecemos agora. Vamos dizer assim, foi resultado de uma evolução. Antes do modelo simples e compacto que existe atualmente, tivemos o "cinto Modess" como aparece no Anúncio Antigo de hoje. Mas tinha "vantagens" pois era ajustável e anatômico como diz o próprio material publicitário. A mulher atual talvez não tenha ideia do percurso cumprido pelo produto até chegar ao que é agora. Isso porque não faz tanto tempo assim (antes da década de 1930) e o que existia era uma toalhinha ou pano reutilizável! 
O Anúncio Antigo acima foi publicado na revista "O Cruzeiro" de 21 de outubro de 1950, página 52. 

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Jesus: um personagem da história parte final




Caro leitor (a), na primeira parte desta postagem procuramos assinalar algumas conclusões dos historiadores e demais pesquisadores a respeito do Jesus histórico (na imagem acima, da catacumba de Calisto em Roma, Jesus representado como "Bom Pastor", século III d.C.). A cidade natal de Jesus não era Belém, ele não nasceu no dia 25 de dezembro, não pertencia à família do rei David, não existiu presépio e nem reis magos. Jesus tinha irmãos e possivelmente irmãs, como atestam os próprios Evangelhos (além dos relatos do historiador Flávio Josefo, que escreveu no final do século I d.C.). Portanto, a virgindade perpétua de Maria (ela teria subido aos céus sem ter tido relações sexuais) proclamada pela Igreja Católica séculos depois, tornou-se uma questão controversa. Destacamos mais uma vez que esses estudiosos não tratam do Jesus ressuscitado ou do Cristo (messias) relacionado à fé religiosa. Então, o que há de verdade histórica sobre Jesus? Bem, temos mais informações a respeito da sua vida adulta do que dos seus primeiros anos, embora não existam vestígios materiais diretamente relacionados a ele. Por outro lado, nas últimas décadas foram encontradas evidências concretas sobre vários personagens do Novo Testamento. Herodes, o Grande, o sumo-sacerdote Caifás e o procurador (governador) romano Pôncio Pilatos tiveram as suas existências confirmadas por achados arqueológicos, os quais também comprovam a pratica da crucificação. Escritores da antiguidade e que não travaram contato entre si mencionam Jesus em vários livros. E ainda podemos reconstituir a sociedade da Palestina no século I da nossa era, a fim de situar historicamente várias passagens da vida do nazareno. 



De acordo com o especialista em assuntos religiosos Reza Aslan, é surpreendente que se saiba algo sobre a figura de Jesus, pois existiam muitos outros personagens como ele na Palestina naqueles tempos (na imagem acima, figura de orante, na catacumba de Priscila, Roma, século III). Indivíduos que se apresentavam como profetas, pregadores e messias perambulavam na região, sendo muitos deles lembrados no Novo Testamento. Teudas (citado no Segundo Livro de Atos) tinha 400 seguidores quando Roma o capturou e lhe cortou a cabeça. Na mesma época em que Jesus nasceu, 4 a.C. (antes de Cristo), um camponês que atendia pelo nome de Atronges e que se autoproclamou "rei dos judeus", também foi executado pelas autoridades romanas. Alguns anos depois, outro pregador chamado de "o Samaritano" foi crucificado por ordem do governador romano Pôncio Pilatos. E claro, temos também o mais conhecido deles (depois do próprio Jesus): João Batista (de quem falaremos mais adiante). 


A situação da Palestina (acima o mapa da região no tempo de Jesus) favorecia o surgimento desses movimentos. Os camponeses viviam em extrema pobreza, assolados pela ameaça de perderem as suas terras e ainda submetidos a impostos pelos governantes locais (no caso da Galileia onde viveu Jesus, o governante era Herodes Antipas) e pelo Império Romano, em um autêntico caso de sobrecarga tributária. Na época do nascimento de Jesus a Galileia conheceu a rebelião de um tal de Judas, que levantou a população contra Roma. A repressão foi violenta, centenas foram executados e os sobreviventes escravizados. No plano religioso, podemos afirmar que existiam vários "judaísmos" no tempo de Jesus. Flavio Josefo identificou 24 seitas judaicas, sendo que nenhuma se impôs sobre as demais. Contudo, quatro correntes tiveram importância e podem ter influenciado Jesus (embora ele não pertencesse a nenhuma delas):

- saduceus: sacerdotes de linha conservadora, de origem aristocrática (proprietários de terras) e complacentes em relação à presença romana na Palestina, exerciam controle sobre o Sinédrio (conselho dos sacerdotes em Jerusalém). Seguidores da Torá (cinco primeiros livros da Bíblia Hebraica: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio). Teriam sido os principais responsáveis pela condenação de Jesus;

- fariseus: grupo constituído por rabinos (mestres ou sacerdotes) e estudiosos (escribas), os quais eram responsáveis pela interpretação da Torá para a população. Acreditavam na imortalidade da alma e na ressurreição do corpo, influenciando o cristianismo. Jesus os criticava por darem importância maior ao formalismo das Escrituras do que ao seu conteúdo;

- essênios: movimento sacerdotal que rompeu com as autoridades do Templo de Jerusalém (sobretudo os saduceus) e mantiveram uma vida de isolamento nas proximidades do mar Morto, em Qumran. Consideravam-se os únicos judeus purificados e aptos à salvação. Rejeitavam os bens materiais e a propriedade privada. Atribui-se a esse grupo os "manuscritos do mar Morto" (ver primeira parte desta postagem);

- zelotas: lutavam pela libertação de Israel (ou Palestina) do domínio estrangeiro. Pregavam a absoluta obediência ao Deus único. Dispostos a recorrer à violência se necessário, para alcançar os seus objetivos. 

Jesus era alfabetizado? Pouco provável, sobretudo sabendo-se que 97% dos camponeses judeus não sabiam ler e nem escrever, apesar das menções de Lucas a respeito do debate travado por Jesus com os rabinos no Templo de Jerusalém quando tinha apenas 12 anos e da leitura de trechos de Isaías na sinagoga de Nazaré, a aldeia de Jesus (onde na verdade, não existia sinagoga). Jesus não teve acesso a uma educação formal na pobre Galileia, o que não significa que fosse uma pessoa inculta. Segundo o linguista Frederico Lourenço havia na Antiguidade o hábito da leitura em voz alta, sendo desconhecida a leitura silenciosa que se pratica hoje. Os textos eram escritos para serem ouvidos e mesmo as pessoas que não sabiam ler podiam participar das audições públicas, como as que eram realizadas nas sinagogas ou em reuniões que contavam com a presença de um mestre rabino. Os Evangelhos também foram escritos exatamente com essa finalidade, serem lidos em voz alta, aliás, como se faz até hoje. 


Na antiga Palestina, a língua oficial era o hebraico (conhecida dos escribas e dos estudiosos das Escrituras judaicas), compreendido de modo rudimentar pela população. O idioma do cotidiano era o aramaico (no fragmento acima do século I aparece o nome "Jesus", muito comum na época, na grafia hebraica). Para o leitor ter uma ideia, a diferença entre o hebraico e o aramaico é quase a mesma que existe entre o espanhol e o português de hoje. O aramaico foi a língua de Jesus de Nazaré e podemos perceber isso por meio de algumas falas que permaneceram nos Evangelhos, como no caso da filha de Jairo, a qual Jesus teria trazido de volta à vida:

E segurando-lhe a mão, disse: "Talitha koum", isto é, traduzido, "menina, digo-te: levanta-te!"
(Marcos 5:41)

Jesus não era loiro e nem tinha os olhos azuis característicos dos europeus. Seus traços deviam ser próprios dos semitas, grupo étnico que inclui judeus, árabes e outras populações do Oriente Médio. Provavelmente era moreno, com olhos e cabelos castanhos escuros, sobrancelhas grossas e nariz adunco (curvo). Sua altura deveria ser de baixa para média para os padrões atuais. 



Em algum momento, aproximadamente quando alcançou os 30 anos, Jesus deixou a sua família, a sua casa e a pequena Nazaré para ir ao encontro de João Batista. Vestido com roupa de pelo de camelo, um cinto de couro prendendo as vestes, alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre, João Batista apresentava-se à semelhança do profeta Elias. Andou pelas margens do rio Jordão (foto acima) afirmando que o fim estava próximo, sendo por isso caracterizado como um pregador apocalíptico. Ao mesmo tempo, anunciava a existência de um poder transcendental que iria se fazer realidade por meio da vitória do bem sobre o mal, onde o céu e a terra se confundiriam para sempre: o Reino de Deus! Além disso pregava a partilha dos bens materiais e realizava o batismo como forma de preparar o indivíduo para a grande mudança. Muitos afirmam ter sido o Batista um ex-integrante dos essênios, pois algumas de suas praticas identificavam-se com essa seita (como o ritual da purificação pela água ou batismo). Contudo, sua pregação não era voltada para um único grupo, mas aberta a todos os judeus.
O batismo de Jesus por seu provável mentor João Batista é considerado um fato histórico, embora não tivesse sido algo confortável de ser descrito pela tradição cristã, uma vez que presumia a superioridade do segundo sobre o primeiro. Os Evangelhos resolveram a questão em favor de Jesus. João Batista teria nascido de uma mulher estéril enquanto Jesus de uma virgem, algo que carrega um valor simbólico muito maior. 



No batismo de Jesus há a intervenção do Espírito Santo por meio de uma pomba (como na imagem acima, de um mosaico do século V de Ravena, na Itália). Contudo, em nenhum momento o Batista reconhece explicitamente Jesus como o messias. João Batista foi executado por ordem de Herodes Antipas entre os anos 28 e 30 d.C. (depois de Cristo), pois temia que o pregador subvertesse a população da Galileia. Sua morte dispersou os seus seguidores, sendo que alguns deles podem ter acompanhado Jesus (como André e Filipe).



Jesus teve dificuldades em ser ouvido em Nazaré, mesmo entre os seus familiares. Mas a vila de Cafarnaum mostrou-se bem mais receptiva às sua palavras (acima, ruínas da sinagoga de Cafarnaum). 




Situada às margens do mar da Galileia com aproximadamente 1.500 habitantes, a maior parte formada por agricultores e pescadores, Cafarnaum perdeu a sua importância após a construção de Tiberíades, nova capital de Herodes Antipas (nas fotos acima, o mar da Galileia no início do século XX e restos de barco da época de Jesus, encontrado nesse mar, durante uma seca em 1986). Lá Jesus reuniu um bom número de seguidores galileus, muitos deles pescadores, como Simão (depois chamado de Pedro), seu irmão André, Tiago Maior e João (filhos de Zebedeu). O Evangelho de Lucas nos informa que seriam 72 discípulos ao todo. Jesus dialogava com as mulheres e as aceitava como discípulas. A mais conhecida foi Maria da aldeia de Magdala ou simplesmente Maria Madalena. A tradição católica a transformou em uma prostituta, mas ela era, na verdade, um das pessoas mais leais a Jesus. 
Entre os seguidores havia, sem dúvida, um núcleo de discípulos mais próximo a Jesus, talvez os 12 apóstolos que ficaram conhecidos, embora lembremos que este número tem grande significado para o judaísmo. A comunidade organizada em torno de Jesus constituía um "novo Israel", com novos patriarcas para substituir os 12 filhos de Jacó das antigas Escrituras. A questão é saber se a instituição dos 12 apóstolos vem do tempo de Jesus ou se trata de uma criação posterior dos primeiros cristãos. Para muitos estudiosos, a segunda hipótese é a mais provável.




Jesus tornou-se um pregador itinerante e que fazia uso de frases simples, diretas ou recorrendo às parábolas, narrativas contadas a partir de situações reais, por meio das quais são transmitidos ensinamentos. As mesmas remetiam ao cotidiano da vida camponesa e ao ambiente ecológico da Galileia (acima o lírio e a figueira, que faziam parte da antiga flora palestina, em gravuras do Jardim Botânico de Kew em Londres), como a do semeador, do joio e do trigo, dos lírios do campo e da figueira:

Da figueira aprendei a parábola. Quando o ramo dela já se tornou tenro e começam a despontar as folhas, ficais a saber que o verão está próximo. Assim também vós, quando virdes todas essas coisas, sabeis que Ele está próximo, às portas.
(Mateus 24:32)



Jesus participava de refeições coletivas, ao contrário de seu mentor João Batista, o que levou os seus detratores a chamarem-no de glutão, beberrão e amigo dos pecadores (na imagem acima, banquete eucarístico pintado na catacumba de Priscila, Roma, século III d.C.). Segundo John Dominic Crossan, um dos maiores especialistas no estudo do Jesus histórico, na visão antropológica, a refeição coletiva (comensalidade aberta) era uma forma primária de se estabelecer e manter relações humanas, por meio de obrigações mútuas de interdependência e reciprocidade (dar e receber). Nas condições normais da época as refeições estabeleciam linhas divisórias que separavam os grupos sociais. Porém, com Jesus as mesmas eram praticadas de forma aberta, de modo igualitário e sem discriminações com doentes (considerados impuros), pobre, mendigos e em relação às mulheres solteiras (vistas como prostitutas se estivessem na companhia de outros homens). Jesus desejava reconstruir a comunidade camponesa tendo por fundamento a igualdade e a solidariedade.


E os milagres? A palavra vem do latim miraculum e significa algo que causa admiração e espanto. Mas Jesus não falava latim e não conhecemos nenhuma palavra em aramaico com esse significado preciso (na imagem acima, de uma catacumba romana do século III d.C., mulher é curada ao tocar nas vestes de Jesus). Nos Evangelhos aparecem vários termos que são traduzidos por "milagre", como a palavra grega semeion que significa "sinal" e "imagem". De qualquer forma sinais, prodígios ou milagres eram parte fundamental da pregação de Jesus e tinham o propósito de anunciar a chegada do Reino de Deus. Já se tentou uma explicação lógica e racional para essas curas. Segundo Reza Aslan trata-se de um exercício inútil querer formular explicações científicas para cada um dos 27 milagres registrados nos Evangelhos. Ao historiador cabe entender como as pessoas reconheciam essas ações excepcionais. A opção "procure um médico" não existia para 99% da população. Os milagres faziam parte do cotidiano e percebidos como algo possível para as vítimas de enfermidades. As doenças de pele eram as mais visíveis e imediatamente associadas à impureza, como previstas nas Escrituras judaicas. Contudo, nesse aspecto cabem observações. A tradução (lembrando que os Evangelhos foram escritos em grego) das palavras gregas lépra e sara'at para hanseníase (lepra verdadeira) foi um erro, pois as mesmas faziam referência a qualquer doença de pele (micose, manchas, feridas...). A lepra verdadeira era conhecida por outro termo: eléphas
Jesus não foi o único a curar enfermos e expulsar demônios (exorcismo) naqueles tempos, inclusive fazendo uso de práticas mágicas, como encantamentos, fórmulas ensaiadas, cuspidas e súplicas repetidas, como neste caso descrito por Marcos:

E trazem-lhe um surdo-mudo e pedem-lhe que imponha a mão sobre ele. E levando-o em privado para longe da multidão, Jesus meteu os dedos dele nos ouvidos dele e, cuspindo, tocou-lhe na língua. E olhando para o céu, suspirou e diz-lhe: "Ephphatha", que quer dizer "abre-te!". E logo se abriram os ouvidos dele e soltou-se a prisão da sua língua e falava corretamente.
(Marcos 7: 32-35)



As curas e exorcismos não eram bem recebidas pelas autoridades do Templo em Jerusalém (na foto acima, ruínas de Betânia, lugar de residência de Lázaro, que teria sido ressuscitado por Jesus). Os doentes, os coxos, os leprosos (ou com doenças de pele), os "possuídos", mulheres menstruadas ou aqueles afetados por fluídos corporais não tinham autorização para entrar no Templo e participar do culto, a não ser que passassem por um processo de purificação. Os atos de cura realizados por Jesus (inclusive aos sábados, dia de descanso para os judeus), de graça e sem qualquer contribuição (como um sacrifício) fugiam ao controle sacerdotal. Em resumo, eram vistos pelos sacerdotes como uma ameaça.
Jesus pretendia criar uma nova Igreja? Em nenhum momento ele se manifestou em relação a isso, apresentando-se como um judeu dirigindo-se a um público judeu. O versículo de Mateus no qual Jesus indica Pedro como aquele responsável por construir uma "igreja", foi traduzido do grego ekklêsia que tinha apenas o significado de "assembléia" ou uma simples reunião de discípulos. "Igreja" (palavra que veio, de fato, do grego ekklêsia) como edifício ou construção de caráter religioso é uma realidade que só apareceu no século IV d.C.. Esse conteúdo serviu mais tarde para legitimar Pedro como o bispo de Roma ou primeiro papa.
Nos Evangelhos, a vida de Jesus é apresentada como cumprindo passo a passo o que estava estabelecido nas Escrituras judaicas, pois isso o colocava na condição de messias (mashiac em hebraico, que significava o ungido) o escolhido por Deus para libertar o país do domínio estrangeiro e restaurar a realeza de Israel. Sua entrada em Jerusalém durante a Páscoa ou Pessach (festividades que lembravam a fuga dos judeus do Egito ou Êxodo) não foi diferente e Jesus a fez montado em um jumento, como estabelecido na fala do profeta Zacarias.


O Templo de Jerusalém era o centro econômico, político e religioso da Palestina (na foto acima, detalhe do mesmo em uma maquete moderna). Nele eram realizados os sacrifícios diários (utilizando bois, carneiros e pombos) e a cobrança dos tributos. Os animais que eram sacrificados tinham que estar de acordo com as normas previstas na Torá (sobretudo no Levítico) e muitos não eram aceitos para o ritual. Nesse caso, os fiéis deviam comprar os animais fornecidos pelo próprio Templo e criados pelos grandes proprietários ligados às famílias sacerdotais. Os preços eram regulados pela procura. Para o leitor ter uma noção, em épocas festivas, o pombo (o animal mais barato) podia alcançar até 100 vezes o seu preço normal!


Para essas transações uma única moeda era aceita: a tetradracma tíria (emitida na cidade fenícia de Tiro, atual Líbano e que aparece na imagem acima). Além disso, os cambistas cobravam 8% de ágio para fazer a conversão das demais moedas para a moeda tirense. O Templo funcionava como uma verdadeira instituição bancária. Daí o episódio da fúria de Jesus contra os "vendilhões do Templo" (descrito nos quatro Evangelhos) e tido como um acontecimento real, que o colocou de vez em rota de colisão com as autoridades sacerdotais (saduceus). Nesse episódio, Jesus não ofereceu a outra face para que fosse agredida, ao contrário, ele virou as mesas dos cambistas!



O ambiente de Jerusalém era diferente do da Galileia, mais vigiado e fechado (acima, moeda com o rosto do imperador Tibério e origem da expressão "a César o que é de César"). A prisão de Jesus foi imediata e ocorreu após a ceia com os Apóstolos, por ordem dos sacerdotes e com os guardas do Sinédrio (conselho dos sacerdotes), independentemente de considerarmos verídica ou não a traição de Judas Iscariotes. Contudo, os Evangelhos nos relatam algo estranho, um dos discípulos de Jesus empunhou uma espada no momento da prisão no terreno de Getsêmani e feriu um dos guardas sacerdotais na orelha. O Evangelho de João identifica esse discípulo: Pedro! Lucas amenizou o incidente, pois nesse Evangelho Jesus cura a orelha da vítima. Mas fica a pergunta: os discípulos andavam armados? Estariam os mesmos preparando uma resistência contra a prisão de Jesus? De qualquer forma, os discípulos fugiram como se não houvesse mais a possibilidade de reação. 


O nazareno foi levado preso ao Sinédrio onde o sumo-sacerdote Caifás o interrogou a respeito de suas supostas intenções de destruir o Templo. Sobre este personagem não há dúvida de sua existência (acima, o ossuário de Caifás). Jesus é acusado também de blasfemar (atentar contra a divindade) ao sugerir ser o filho de Deus. Muitos estudiosos afirmam que por ser época das festividades da Páscoa, o Sinédrio não podia ter se reunido, o que não impediria um encontro informal na casa de Caifás. Além disso, a festividade atraia muitos peregrinos a Jerusalém o que poderia criar um clima tenso, uma vez que se comemorava uma libertação ocorrida no passado, mas tendo no presente a realidade do domínio romano, por isso havia o temor das autoridades. Finalmente, não há porque questionar historicamente o parecer dos sacerdotes contra Jesus. Segundo os historiadores André Chevitarese e Pedro Paulo Funari, Jesus contrariou interesses e desafiou as autoridades do Templo, já a partir do momento de sua entrada em Jerusalém. 




Posteriormente, Jesus é levado diante do procurador ou prefeito da Judeia (governador romano) Pôncio Pilatos, para que a pena fosse referendada. Existe um achado arqueológico que confirma a existência desse personagem. Uma lápide de pedra dedicada ao imperador Tibério foi encontrada em 1961, na cidade de Cesareia Marítima, com uma inscrição em latim "Pôncio Pilatos. Prefeito da Judeia" (imagens acima). Pilatos governou a Judeia (centro da Palestina e onde está Jerusalém) do ano 26 até 36 d.C. e o sumo-sacerdote Caifás ocupou o cargo de 18 a 36 d.C., algo que sugere um grande entrosamento entre os dois. 



O governador ficou conhecido por sua crueldade além dos limites (condenou centenas à morte), talvez o motivo de sua queda no ano 36 d.C. (na foto aérea acima, vestígios ainda existentes de um acampamento militar romano às margens do mar Morto, na Palestina, atual Israel). Com ele caiu também Caifás. No entanto, os Evangelhos dão a entender que a pena aplicada a Jesus não partiu da sua vontade, pelo contrário, Pilatos teria insistido com os sacerdotes que ele nada fez de grave. Há dúvidas se Jesus esteve mesmo diante de Pôncio Pilatos, pois este não participava de julgamentos. As execuções eram feitas apenas com a sua autorização, talvez escrita, sem estar diante do condenado. Além disso, os dois não falavam a mesma língua. Por sua vez, o episódio envolvendo bar Abbas, também conhecido por Barrabás, carece de qualquer fundamento. Não há nenhum registro histórico do costume citado nos Evangelhos de soltar um prisioneiro na Páscoa ou em qualquer outra festividade, sobretudo alguém condenado à morte e de atribuir tal escolha à população local. A maior parte dos estudiosos concordam que, ao tempo em que os Evangelhos foram escritos (séculos I e II d.C.), o alvo principal da evangelização eram os cidadãos romanos e a elite intelectual do Império. Daí o fato de tratarem com maior cuidado as autoridades de Roma e de retirar a responsabilidade das mesmas na condenação de Jesus. Muito provavelmente isso ocorreu no caso de Pilatos. 


A pena estabelecida, a crucificação, era de acordo com as leis romanas, dada aos piores inimigos e aos rebeldes, sendo vista na época como exemplar e ultrajante. Era uma forma clara de intimidação (acima, cabeça do imperador Tibério, que governava Roma na época da crucificação de Jesus). Há vários registros da aplicação dessa pena, como na famosa revolta de escravos liderada por Espártaco na Itália, no ano 71 a.C. e também na Palestina (e pelo próprio Pilatos). Dezenas e até centenas chegavam a ser crucificados ao mesmo tempo (como foi o caso de Jesus, executado com dois outros indivíduos).





Em 1968 foi encontrada em Jerusalém a unica evidência arqueológica conhecida de um crucificado, um osso de calcanhar furado por prego, que estava dentro de um ossuário. O nome do indivíduo: Yehohanan filho de Hagkol (nas fotos acima, o osso com o prego e o ossuário). Trata-se de um judeu, com idade entre 24 e 28 anos e executado no século I da nossa era, ou seja, no tempo de Jesus. Por que apenas uma evidência foi encontrada de crucificação, sendo que os relatos apontam até centenas de execuções? Porque na grande maioria dos casos, os corpos não eram retirados da cruz, permanecendo no local até serem devorados por abutres e cães comedores de carniça. Era também uma forma de impedir que o túmulo (caso o condenado tivesse um) se tornasse local de peregrinação. Essa descoberta comprovaria o mesmo caso ocorrido com Jesus, da família ter tido autorização para levar o seu corpo a uma sepultura, o que era raro.


O osso do calcanhar foi examinado no Departamento de Antiguidades de Israel e pela Escola de Medicina da Universidade Hebraica de Jerusalém, o que permitiu reconstituir com maior precisão a crucificação de Jesus. A mesma é diferente das representações consagradas na arte ao longo dos séculos. Os seus pés foram pregados nas laterais de um poste de madeira e as suas mãos amarradas junto a uma viga transversal (como na ilustração acima). 



Antes o condenado era açoitado e às vezes poderia ter as pernas quebradas, o que aumentava a crueldade da pena (acima chicotes incrustados com pedaços de metal e osso utilizados na época pelos romanos). Os Evangelhos de Mateus e Marcos replicam o que seriam as últimas palavras de Jesus proferidas em aramaico:

Por volta da hora nona, Jesus gritou com voz grande, dizendo:
Êli Êli lema sabakhthani?
Isso significa: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?".
(Mateus 27: 46)

Apenas as mulheres presenciaram a sua agonia na cruz (no Evangelho de João, também estava o "discípulo amado"), sendo que algumas o acompanhavam desde a Galileia. Maria Madalena era uma delas. Apesar das controvérsias, a morte de Jesus ocorreu em aproximadamente 30 d.C. segundo a maioria dos estudiosos. 



Bem, deste fato em diante temos o aspecto envolvendo a Ressurreição, que pertence ao campo da fé e dos estudos mais diretamente relacionados com a teologia (no mosaico acima do século VI d.C., Jerusalém e ao centro a Igreja do Santo Sepulcro). A grande questão que ainda se relaciona com a história é o fato de, entre tantos que surgiram naquele momento profetizando, transmitindo mensagens, realizando curas e exorcismos, apenas Jesus teve o seu nome lembrado e perpetuado por séculos. 
Jesus jamais rompeu com o judaísmo, mas desejava reinterpretá-lo. Os vínculos de Jesus com a tradição das antigas Escrituras judaicas foram mantidos por seu irmão Tiago, que liderou os primeiros cristãos em Jerusalém após a morte do nazareno. No livro Antiguidades Judaicas de Flavio Josefo, que foi escrito aproximadamente em 94 d.C., Tiago é citado como irmão de Jesus e teria sido morto por apedrejamento. Até este momento, o cristianismo era mais uma entre as várias seitas judaicas existentes na Palestina. A grande transformação veio pelas mãos de Saulo ou Paulo de Tarso, que promoveu a divulgação dos ensinamentos de Jesus aos gentios (não judeus), sobretudo as populações que viviam dentro do Império Romano. Paulo "internacionalizou" o cristianismo. Jesus de Nazaré começava a se transformar em Jesus "Cristo"  (da palavra grega khristós, que significa messias). Paulo não o conheceu pessoalmente, mas foi o primeiro a escrever sobre ele, antes dos próprios Evangelhos. Após o ano 70 d.C., quando os romanos destruíram Jerusalém na revolta judaica, o centro do movimento cristão transferiu-se para outras cidades greco-romanas como Alexandria, Corinto, Éfeso, Damasco, Antioquia e a própria Roma. O cristianismo começou o seu processo de romanização, perdendo muito de seu conteúdo mais radical dos tempos de Jesus. O que veio depois é uma longa história que deixaremos para uma próxima oportunidade...
Para saber mais:


O estudioso da história das religiões Reza Aslan, iraniano radicado nos Estados Unidos, traz em seu livro "Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré" (editora Zahar, 2013) uma tese polêmica, ao classificar Jesus como um nacionalista judeu e revolucionário, um autêntico zelota. Bem diferente daquele estabelecido posteriormente por Paulo, desvinculado da Judeia e romanizado, o Jesus Cristo. Ao propor esse raciocínio, o autor faz uma boa síntese do Jesus histórico e daquilo que se sabe a respeito desse importante personagem. A tradução ficou a cargo de Marlene Suano, especialista em História Antiga e professora da USP. Uma leitura muito agradável, que não esgota o assunto, mas é um bom começo para se aprofundar no tema. 

As citações dos Evangelhos foram tiradas de: Bíblia. Novo Testamento. Os quatro evangelhos. Traduzido do grego por Frederico Lourenço. Companhia das Letras, 2017.
Crédito das imagens:
Jesus Bom Pastor:
http://professor.ufop.br/sites/default/files/celiomacedo/files/arte_paleocrista_i.pdf
Mulher curada ao tocar nas vestes de Jesus: Wikipédia
Mapa da antiga Palestina: 
Bíblia. Novo Testamento. Os quatro evangelhos. Traduzido do grego por Frederico Lourenço. Companhia das Letras, 2017.
Fotos dos lírios, da figueira e do mosaico de Jerusalém no século VI: A Bíblia. Volume I. Coleção Grandes Império e Civilizações. Edições del Prado, 1996, páginas 68 e 64 respectivamente. 
Foto das ruínas de Betânia: A Bíblia. Volume II. Coleção Grandes Impérios e Civilizações. Edições del Prado, 1996, página 185. 
Fotos do rio Jordão e do acampamento militar romano: Os Povos da Bíblia de Joseph Rhymer. Melhoramentos, 1990, páginas 82 e 70 respectivamente. 
Fotos do fragmento com o nome de Jesus, da maquete do Templo de Jerusalém, das moedas de Tiro, do ossuário de Caifás, da lápide de pedra dom o nome de Pilatos, do calcanhar e do ossuário do judeu crucificado: Tesouros da Terra Santa: do rei David ao cristianismo. Catálogo de exposição no Masp. Páginas 77, 65, 71, 87, 89, 90 e 91. 
Banquete eucarístico do século II d.C.: História da Arte Salvat, volume 3, 1978, página 4. 
Fotos da mulher orante, do batismo de Jesus no mosaico de Ravena, da sinagoga de Cafarnaum, do mar da Galileia, do barco encontrado no mar da Galileia e dos chicotes romanos: Jesus e os apóstolos. Edição especial da National Geographic. Editora Abril, 2015, páginas 40, 13, 44, 62, 63 e 58 respectivamente.
Desenho do Jesus crucificado:
httpponderavel.blogspot.com201401jesus-o-homem-invisivel.html
Moeda com o rosto do imperador Tibério e sua cabeça de perfil : Roma Imperial en el Museo Nacional de Bellas Artes. Buenos Aires, MNBA, páginas 121 e 38 respectivamente.

quinta-feira, 5 de julho de 2018

Revista Leituras da História: Tábua Peutinger em sala de aula




Caro leitor, na Revista Leituras da História 114, edição de junho, uma matéria assinada por nós sobre a Tábua Peutinger serviu de conteúdo para uma aula de história sobre o Império Romano. Como descrito no e-mail enviado à redação da revista (imagem acima) pela professora Jeane Lopes de Santo André (SP), o texto foi útil para despertar a curiosidade a respeito das dimensões da Roma Antiga, em uma turma de alunos adolescentes. Nós do blog História Mundi ficamos muito contentes e recompensados com a utilização de um material de nossa lavra em aula. Destacamos ainda que é possível navegar pelo mapa original na Wikipédia (em inglês). 
O blog História Mundi procura se constituir em uma ferramenta para os professores das áreas de humanidades, no que diz respeito ao ensino e à pesquisa. E aguardem, na edição de agosto teremos uma surpresa para os leitores do blog e da conceituada revista, cuja leitura recomendamos. Aliás a edição de julho (capa acima) já está nas bancas... 

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Anúncio Antigo 57: Elefante branco



O Anúncio Antigo acima nos faz lembrar uma expressão muito utilizada atualmente. Com certeza o caro leitor já ouviu falar em "elefante branco". A referência diz respeito a algo inútil e geralmente de grandes proporções, difícil de guardar ou manter. Ao que parece, a famosa expressão tem origem no antigo reino do Sião (atual Tailândia) no sudeste da Ásia, onde os elefantes albinos (brancos) eram mantidos pelos monarcas como um sinal de que governavam com justiça e de que o reino teria paz e prosperidade. Muitos afirmam que essa tradição estaria também associada ao nascimento de Sidharta Gautama, mais conhecido como Buda, uma vez que a sua mãe teria tido um sonho com um elefante branco na véspera do parto. 


Os elefantes brancos eram considerados sagrados naquele reino (na imagem acima, pintura tailandesa do final do século XIX, representando o animal). Exatamente por isso, ganhar um deles de presente do monarca era uma honraria, mas ao mesmo tempo também um problema. O indivíduo (geralmente um cortesão) que o recebesse não podia recusar o presente ou dar o animal para outra pessoa. Também não era permitido utiliza-lo para o trabalho (afinal era sagrado), devendo o dono cuidar, alimentar e manter o elefante de forma impecável, inclusive no cuidado com os seus pelos. Portanto, era uma despesa sem retorno. Em 1861, o então rei Rama IV instituiu uma honraria conhecida como a Ordem do Elefante Branco, que passou a ser concedida pelo governo do Sião a pessoas de grande notabilidade (e que não incluía o animal). Aliás, vale lembrar que nessa mesma época o Reino do Sião possuía algo em torno de 100.000 elefantes. Hoje o número varia entre 2000 a 3000 animais na moderna Tailândia, ou seja, a espécie está ameaçada. 
Atualmente muitas construções ou obras foram (e são) caracterizadas como elefantes brancos. Aqui no Brasil alguns estádios construídos para a Copa do Mundo de 2014 carregam essa fama, como por exemplo, o Estádio Mané Garrincha (em Brasília), a Arena Pantanal (em Cuiabá), a Arena da Amazônia (em Manaus) ou a Arena das Dunas (em Natal), pelo fato do futebol não atrair tantos torcedores nessas cidades, o que dificulta a manutenção das arenas. Algo que não é privilégio do Brasil, pois em Portugal vários estádios construídos para o Campeonato Europeu de 2004 também se encontram na mesma situação. Bem, ainda temos o complexo olímpico construído para as Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro. 
Uma máquina dispendiosa, um eletrodoméstico sem grande utilidade, um automóvel de grande porte e cuja manutenção é custosa, também podem ser considerados elefantes brancos. É exatamente isso que o anúncio mais acima procura lembrar para aqueles que estão prestes a adquirir ou trocar o seu veículo automotor. Por exemplo, será que o mesmo cabe na vaga? Parece um aspecto óbvio, mas para os condomínios residenciais é uma questão grave, pois muitos moradores não fazem esse cálculo elementar. 
O Anúncio Antigo de hoje foi publicado na revista Galileu Especial nº 2, Editora Globo, de julho de 2003, no verso da contracapa. 
Crédito das imagens:
Pintura tailandesa do século XIX: Wikipédia.

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Jesus: um personagem da história primeira parte



Nas últimas décadas, historiadores e pesquisadores de várias disciplinas tem desenvolvido trabalhos que deram novo embasamento aos estudos referentes à figura do chamado Jesus histórico. Exatamente em função disso, podemos afirmar que há poucas razões para se duvidar da sua existência. Contudo devemos esclarecer o leitor que o Jesus ao qual nos referimos não é o Cristo (messias em grego) estabelecido posteriormente por seus seguidores, mas o personagem real proveniente das camadas baixas do campesinato e que procurou adequar a tradição da religião judaica (afinal de contas, ele era um judeu) ao contexto da dominação romana sobre a Palestina, no século I da nossa era (na imagem acima, Jesus representado como pastor nas catacumbas de Priscila, em Roma, no século III). Por isso, não trataremos aqui das questões que envolvam a fé e a crença nos quesitos aplicados àquele que depois foi chamado de  "O Filho de Deus".
Durante séculos, a figura de Jesus não era separada dos temas referentes à religião cristã, ou seja, fazia parte do domínio exclusivo da teologia (estudo da natureza do divino, seus atributos e sua relação com os homens). Por outro lado, muitos aspectos de sua trajetória despertavam dúvidas e desde o século II surgiram tentativas para se conseguir uma síntese coerente dos quatro Evangelhos (contidos no Novo Testamento e que constituem as mais importantes narrativas sobre Jesus), sem êxito. Com o Iluminismo, no século XVIII, teve início a tarefa de se promover a leitura crítica desses textos, tendo por base a razão e a verificação empírica (prática) dos fatos lá descritos. Trata-se daquilo que foi denominado de " A Primeira Busca pelo Jesus Histórico". Nessa linha de raciocínio, o escritor Ernst Renan (1823-1892), em seu livro "A Vida de Jesus" publicado em 1863, considerou os Evangelhos como tendo pouco conteúdo de valor histórico e suas narrativas como sendo fatos sem explicação à luz da razão. 
No início do século XX, o erudito (indivíduo culto e de grande saber) Albert Schweitzer (1875-1965) que se destacou em vários campos do conhecimento (foi inclusive agraciado com o Prêmio Nobel da Paz de 1952), escreveu "A busca do Jesus Histórico", publicado em 1906, no qual faz um balanço crítico dos estudos anteriores referentes ao tema e uma avaliação literária importante dos quatro Evangelhos, onde pode perceber a permanência no material escrito de uma oralidade expressa em frases curtas e na repetição de palavras. Muitas dessas falas representam o que há de mais autêntico no que se refere ao personagem. Mas ao final, Schweitzer concluiu que Jesus seria uma figura por demais estranha e enigmática para aqueles que viviam no século XX, aconselhando que a melhor coisa a fazer seria deixar o seu estudo de lado.  
Na década de 1950 ressurgiu o interesse em situar Jesus dentro de uma perspectiva histórica, naquilo que ficou conhecido como a "A Segunda Busca pelo Jesus Histórico". Günther Bornkamm em seu livro "Jesus de Nazaré" (de 1956) estabeleceu alguns fatos tidos como inquestionáveis: Jesus era um judeu proveniente da aldeia de Nazaré; foi batizado por João Batista; sua língua era o aramaico e seu pai era um carpinteiro (embora não no sentido moderno dessa profissão). No final do século XX tivemos um boom no que se refere às pesquisas a respeito do Jesus histórico, sobretudo a partir de um grupo de pesquisadores, principalmente norte-americanos, que ficou conhecido como o Seminário de Jesus (1985). Nesse momento, dentro de uma abordagem multidisciplinar, com a contribuição de vários ramos do conhecimento, entre os quais a sociologia, a antropologia, a linguística, a teologia e a própria história, buscou-se contextualizar a figura de Jesus e ordenar as fontes disponíveis para pesquisa. 




No que se refere às fontes escritas, temos os Manuscritos do Mar Morto, descobertos a partir de 1947 nas cavernas de Qumran no deserto da Judeia (nas fotos acima, as cavernas e manuscrito do Livro de Isaías, do século I a.C.). Esses documentos eram constituídos de cópias dos textos da Bíblia hebraica e das normas de conduta da comunidade dos "essênios", grupo dissidente do judaísmo que se formou como reação à presença estrangeira na Palestina e às autoridades do Templo de Jerusalém. Nesses manuscritos, ao contrário do que se esperava inicialmente, não há nenhuma referência a Jesus. Contudo, algumas das práticas dos essênios teriam influenciado João Batista (pregador que batizou Jesus) e mesmo o cristianismo primitivo. 



Os Evangelhos "apócrifos" ("ocultos" em grego), os quais não são aceitos oficialmente pelas igrejas cristãs, também se constituem em importante fonte de informações a respeito do Jesus histórico. Boa parte desse material foi encontrado em 1945, na localidade de Nag Hammadi no interior do Egito, onde estavam guardados papiros com 52 textos diferentes datados a partir do século II, entre os quais o chamado Evangelho de Tomé (nas fotos acima, parte desses pergaminhos e a primeira página desse Evangelho). Na década de 1970 todo esse material foi traduzido para as línguas modernas. Além desses textos descobertos no século XX, temos também os livros do historiador judeu Flavio Josefo e os trabalhos dos escritores romanos que fazem referência a Jesus (Tácito, Suetônio e Plínio, o Jovem). 
Algumas descobertas arqueológicas também contribuíram para trazer informações mais precisas, não diretamente a respeito de Jesus, mas dos personagens que foram seus contemporâneos, como veremos adiante. 


Sem dúvida, os Evangelhos (palavra de origem grega e que significa "boa nova") atribuídos (importante destacar isto) a Mateus, Marcos, Lucas e João (na foto acima, o Evangelho de Lucas em um papiro de aproximadamente 220 d.C.) são as fontes mais conhecidas. Esses quatro livros constituem os textos canônicos, isto é, a lista de livros considerados inspirados pelas igrejas cristãs. Em geral, acredita-se que o evangelho de Marcos se constitui no mais antigo dos quatro, tendo adquirido forma escrita por volta do ano 70 da nossa era, quatro décadas após as morte de Jesus. Aliás os textos de Marcos, Mateus e Lucas apresentam muitas características em comum, daí a razão pela qual são conhecidos como os Evangelhos "sinóticos" (palavra que significa "com a mesma visão"). 


O evangelho de João foi escrito décadas depois (entre os anos 90 e 110) e possui características distintas dos demais (na foto acima, fragmento do Evangelho de João datado de aproximadamente 150 d.C.). Já os Atos dos Apóstolos (Cartas ou Epístolas) possuem datas diversas, variando dentro de um período que vai do ano 64 até o ano 85 d.C. (depois de Cristo). As Cartas de Paulo são as mais antigas, inclusive antecedendo o próprio evangelho de Marcos. Os estudiosos ainda aceitam a existência de uma fonte oculta nos evangelhos de Mateus e Lucas conhecida pela denominação de "Fonte Q" (da palavra alemã quelle, que significa fonte). Quando esses dois evangelistas não coincidem com Marcos é porque os mesmos teriam recorrido à fonte Q. 
A escrita dos quatro Evangelhos que compõem o Novo Testamento, está inserida no contexto da cultura helenística, marcada pela forte influência grega (helênica) mesclada com elementos culturais provenientes do Oriente. Tal influência se fez presente no leste do Mediterrâneo desde o tempo das conquistas de Alexandre, o Grande no final do século IV a.C. (antes de Cristo). Não é por outra razão que os Evangelhos foram escritos originalmente em grego, que se tornou uma espécie de língua internacional da época (como o inglês hoje). Por outro lado, tais textos nos remetem a personagens bem diferentes dos antigos poemas mitológicos, com os seus deuses e heróis, como também das obras dos grandes filósofos gregos (Platão, Aristóteles). Nos Evangelhos ouvimos falar de pastores, pescadores, agricultores e também daqueles que eram desprezados por serem provenientes das camadas mais baixas da sociedade, ou ainda por suas deficiências físicas e de saúde (leprosos, paralíticos, cegos, doentes mentais entre outros). Ah, não nos esqueçamos das figuras femininas, não rainhas e princesas, mas as mulheres da vida real e do cotidiano. Os Evangelhos não foram pensados para serem uma documentação da vida de Jesus em termos históricos. Na verdade, eles se constituem em testemunhos de fé e escritos pelas comunidades dos primeiros cristãos. Como afirma o estudioso Reza Aslan, os Evangelhos nos informam sobre o Jesus Cristo e não sobre o Jesus homem. 


E a Palestina, região onde Jesus nasceu? No ano 63 a.C. a mesma foi submetida ao controle do Império Romano pelas tropas do general Pompeu (imagem acima). De início, a estratégia romana foi a de estabelecer um governo local como forma de exercer o poder indireto e arrecadar tributos. Os romanos apoiaram a ascensão ao trono de Herodes, o Grande, cujo reinado durou de 37 a.C. até 4 a.C., como um rei-cliente (aliado) de Roma. Herodes foi um monarca cruel, sobretudo com os seus rivais e inimigos, mantendo controle inclusive sobre o conselho de sacerdotes (Sinédrio) do Templo em Jerusalém. Ao mesmo tempo, mostrou-se leal a Roma e à sua cultura, a qual procurava transplantar para a Palestina através de grandes obras. Essa verdadeira romanização cultural não era vista com simpatia por boa parte do povo judeu. 



Entre as obras de Herodes destacamos a fortaleza de Herodion, situada a 12 quilômetros de Jerusalém e onde foi encontrada a urna funerária que teria contido os seus restos mortais (nas duas imagens acima, a fortaleza e a urna descoberta em 2007). Além dessa construção, temos também a cidade de Cesareia Marítima, no litoral da Palestina (às margens do Mediterrâneo) e outras grandes fortalezas, entre elas Massada, foco de uma heroica resistência dos judeus contra Roma na rebelião dos anos 67-73 d.C. (depois de Cristo). 




Cesareia era dotada de um aqueduto para o fornecimento de água e de um Circo para as corridas, no melhor estilo da arquitetura romana (respectivamente nas imagens acima). A cidade abrigou posteriormente os governadores (ou procuradores) enviados por Roma, entre eles Pôncio Pilatos, que teve a sua figura associada à crucificação de Jesus.



Herodes também remodelou o Templo de Jerusalém, símbolo maior do antigo judaísmo (na foto acima, a maquete moderna que reconstitui a edificação). Amparado no poder militar romano, Herodes estabeleceu o controle político sobre os judeus por mais de três décadas, até falecer em 4 a.C., fato que trouxe grande instabilidade na região, o que obrigou ao deslocamento das tropas romanas da Síria para por fim à luta pela sucessão do falecido rei. De acordo com o historiador Simon Schama, a morte de Herodes deixou uma classe pobre ao desamparo com o fim das grandes obras e suscetível às futuras pregações dos cristãos, os quais afirmavam que os pobres teriam maior probabilidade de ir ao céu do que os ricos. 


Novamente sob a tutela do governo romano, agora com o imperador Augusto, procedeu-se à partilha do reino de Herodes entre os seus filhos: Arquelau (com os territórios da Idumeia, Judeia e Samaria), Filipe (com a Transjordânia) e Herodes Antipas (com a Galileia e Pereia). No mapa acima podemos observar esses territórios que constituíam a antiga Palestina. 


A partilha ainda não foi suficiente para restaurar a ordem mantida no tempo do rei Herodes (na foto acima, feita por satélite, a área no entorno do mar Morto, com a Judeia na margem esquerda e o rio Jordão na parte superior). Em função disso, o imperador Augusto decidiu transformar a área central da Palestina (Judeia e a cidade de Jerusalém) em uma província governada diretamente por Roma no ano 6 d.C., mantendo os outros territórios que eram administrados por Filipe e Herodes Antipas (incluindo a Galileia, onde viveu  Jesus).


O nascimento de Jesus (ou Yeshua, como aparece acima na grafia hebraica) é associado nos Evangelhos à época da morte do rei Herodes, fato que comprovadamente ocorreu no ano 4 a.C., como observamos anteriormente. Portanto, podemos situar o seu nascimento entre os anos 6 a.C. e 4 a.C., o que nos leva a um fato aparentemente paradoxal, o de que Jesus nasceu antes de Cristo! A respeito do dia do nascimento existe uma verdade incontestável: não foi em 25 de dezembro. As fontes conhecidas não mencionam essa data e nem mesmo a época do ano em que Jesus nasceu. No ano 525 a Igreja Católica instituiu a comemoração nesse dia para coincidir com outras festividades pagãs (não cristãs), entre elas o nascimento do Sol Invencível (ou Sol Invictus em latim), no momento em que esses cultos eram assimilados ao cristianismo. 
Jesus era filho de um carpinteiro? A palavra grega tekton, traduzida nos evangelhos como carpinteiro, tinha o significado mais apropriado de construtor civil ou mesmo pedreiro, um ofício normalmente transmitido de pai para filho naquele tempo. Portanto, Jesus deve ter exercido a mesma profissão de José. O Império Romano era constituído por várias organizações sociais agrárias, caracterizadas por uma enorme desigualdade separando as classes superiores (aristocráticas) das classes inferiores (campesinato). Jesus pertencia a esta última e a sua profissão era associada a esse mesmo segmento em outros documentos da época. 
A respeito da gravidez virginal da progenitora de Jesus, Maria, existem várias observações apontadas pelos estudiosos. Apenas nos evangelhos de Mateus e Lucas há referências sobre o assunto. Mateus cita o profeta Isaías para fundamentar a condição da virgindade da mãe de Jesus quando engravidou:

eis que a virgem terá no ventre um filho e o parturirá; e chamá-lo-ão pelo nome de Emanuel, o que significa Deus conosco. (Mateus 1,23)

De acordo com Frederico Lourenço, tradutor e especialista em línguas clássicas, no original hebraico do Antigo Testamento (cujo texto foi recebido dos judeus) atribuído a Isaías, é utilizado o termo almah que não têm o significado de "virgem". Na versão grega do Antigo Testamento essa mesma palavra foi traduzida por parthenós, que designa uma mulher solteira, a qual pode (ou não) ser virgem. Portanto, Isaías não se referiu exatamente a uma virgem e apenas fez alusão ao nascimento do filho do rei hebreu Acaz (que veio a se chamar Ezequias). De qualquer forma, Mateus e Lucas concordam que Maria era noiva de José quando ficou grávida, ressaltando Lucas que a gravidez deu-se por obra do Espírito Santo.


Os adversários do cristianismo criticaram a concepção virginal de Jesus, divulgando que tal ideia serviria para encobrir a condição de bastardo do recém-nascido (acima, possível imagem de Maria com o menino Jesus, das catacumbas de Priscila, Roma, século III). O filósofo Celso, que viveu no século II da nossa era, foi mais longe, ao afirmar ter ouvido de um judeu que o verdadeiro pai de Jesus seria um soldado romano de nome Panthera e que portanto, a criança era fruto de uma relação ilegítima! Trata-se de uma informação implausível e sem confirmação em outras fontes. Contudo, é possível que tais rumores já existissem no tempo de Jesus. Para confirmar isso, os estudiosos citam uma passagem do evangelho de Marcos, que menciona o momento em que Jesus começou a pregar em Nazaré, quando um morador local identificou-o:

Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? (Marcos 6,3)

Chamar um primogênito judeu através do nome materno não era comum na antiga Palestina, sendo considerado algo escandaloso. O indivíduo deveria ser designado tomando como referência o nome paterno, ou seja, Jesus teria que ser reconhecido publicamente como "o filho de José". Aliás, nada sabemos a respeito do destino deste último personagem. Pela leitura dos Evangelhos somos levados a concluir que José já tivesse morrido quando Jesus iniciou o seu ministério (suas pregações) na idade adulta. 


Jesus teve irmãos? É pouco provável que tenha sido filho único, pois isso era incomum nas famílias camponesas, que necessitavam de braços para o árduo trabalho na terra (o pastoreio ainda é presente na moderna Palestina, como mostra a foto acima). O Evangelho de Marcos cita o nome de quatro de seus irmãos, como também menciona a existência de irmãs. Muitos alegam que o termo "irmão" poderia significar também primo. Contudo, a palavra grega adelphos (utilizada nesse Evangelho) significa irmão no sentido literal do termo. A dúvida é se esses irmãos seriam também filhos de Maria ou de uma união anterior de José. 
Atualmente os estudiosos são quase unânimes em considerar o local de nascimento de Jesus como sendo a pequeníssima aldeia de Nazaré. A colocação nos Evangelhos de Mateus e Lucas da cidade de Belém ocorreu no sentido de estabelecer a ligação de Jesus com a linhagem da família do rei David e dos desígnios proféticos de que o enviado de Deus viria desse lugar: 

Também José subiu da Galileia, da cidade de Nazaré, até a Judeia, a cidade de Davi que se chama Belém, pelo fato de ele ser da casa e da linhagem de Davi, para se recensear com Maria, sua esposa, estando ela grávida. (Lucas 2, 4-6)



Lucas faz referência a um recenseamento (levantamento do número de habitantes) promovido por ordem do imperador Augusto (acima, moeda de ouro com o rosto desse imperador de perfil), ocorrido quando Quirino era governador romano da Síria, fato esse que teria obrigado José e Maria a se dirigirem até Belém, supostamente a cidade de origem de José. De acordo com um dos maiores estudiosos do Jesus histórico na atualidade, John Dominic Crossan (um dos integrantes do Seminário de Jesus), Quirino apenas se tornou governador no ano 6 d.C., uma década após o nascimento de Jesus. O tal recenseamento de fato ocorreu, porém depois da deposição de Arquelau (um dos herdeiros de Herodes, o Grande já mencionado na partilha dos territórios) como governante da Judeia, no momento em que Roma estabeleceu o governo direto dessa província. O censo imperial incluía as populações da Judeia, Idumeia e Samaria, mas não da Galileia (onde viviam José e Maria), que estava sob a administração de Herodes Antipas (outro herdeiro de Herodes, o Grande). Com base em outros recenseamentos feitos pelo governo romano, os indivíduos eram registrados em seu local de residência e de trabalho (onde pagavam os seus impostos) e não no local de nascimento, como sugere Lucas. Tais inserções tiveram que ser feitas nos Evangelhos, pois era inconcebível na tradição judaica considerar um homem pobre proveniente da esquecida e periférica Galileia, como sendo o Messias (Cristo). João deixa isso claro nesta passagem: 

Outros diziam "Este é o Cristo". Mas outros ainda diziam: "Da Galileia não vem o Cristo, pois não? Não diz a Escritura que o Cristo vem da semente de Davi e de Belém, a aldeia de onde era Davi?" (João 7:41-42)

Portanto, em termos históricos, fica sem sentido a narrativa do extermínio dos meninos (Massacre dos Inocentes) nascidos em Belém por ordem do rei Herodes, a fim de impedir que Jesus (anunciado como rei dos judeus) vivesse, como também a fuga de sua família para o Egito. Não há nenhuma evidência histórica, fora o Evangelho de Mateus, de que Herodes tenha ordenado tal matança, muito embora tivesse a fama de sanguinário (teria eliminado três de seus filhos envolvidos na luta pela sucessão do trono). O relato de Mateus seria uma adequação de Jesus com a figura de outro enviado de Deus, Moisés, cuja sobrevivência ao nascimento teria ocorrido em circunstâncias semelhantes (ver a nossa postagem "Moisés, Ramsés II e o Êxodo").



Outro episódio ainda associado ao nascimento de Jesus refere-se aos magos, os quais não são referidos como "reis" no Evangelho de Mateus (o único a menciona-los) e muito menos tinham nomes próprios, tradição que se formou séculos depois por influência dos Evangelhos apócrifos (na foto acima, lamparina de azeite utilizada ao tempo de Jesus). Nem mesmo temos certeza de que fossem três magos, algo que foi deduzido pelo fato de terem levado três presentes ao recém-nascido (ouro, incenso e mirra). O termo "mago", tinha o significado de sábio ou mesmo astrólogo na antiga tradição persa e a inclusão dos mesmos no evangelho de Mateus servia para referendar a vinda de Jesus na condição de enviado de Deus. Da mesma forma, a descrição mais detalhada do local de nascimento com a manjedoura e a adoração dos pastores é encontrada apenas no Evangelho de Lucas, o qual ficou conhecido como "o evangelista do Presépio".





Embora não tenhamos praticamente nenhuma informação a respeito da infância de Jesus, a mesma deve ter sido semelhante à de muitas crianças que viviam na Galileia. A aldeia de Nazaré devia comportar algo em torno de 100 famílias no início do século I e não era sequer conhecida nos documentos da época. As escavações arqueológicas (nas fotos acima, a atual Nazaré e escavações efetuadas na parte central da cidade) não encontraram nenhum vestígio de sinagoga (templo judaico), de fortificação, de um banho público ou de rua pavimentada que fosse da época de Jesus.  A casa em que viveu devia ser igual a de um camponês pobre, com chão de terra batida, teto com estrutura de madeira coberto com palha e paredes de pedra. Os moradores poderiam contar com um pátio e um pedaço de terra para cultivo. Cada nazareno era um agricultor e também criava os seus próprios animais, sendo o estrume recolhido para fertilizar a terra. A aldeia tendia para a autossuficiência. 





A alimentação básica era constituída de pão, azeitona (e o seu derivado, o azeite) e vinho (nas fotos acima, forno para assar o pão e moenda para produção de azeite, ainda hoje presentes na região). Eventualmente as famílias podiam contar com lentilhas refogadas, nozes, frutas, queijo e iogurte. A carne bovina era rara, sendo o peixe mais comum em função da proximidade com o mar da Galileia (na verdade um lago). Os esqueletos encontrados de antigos habitantes da região mostram deficiência de ferro e proteínas, com sinais de artrite. A mortalidade infantil era alta e a expectativa de vida alcançava apenas os 30 anos (idade aproximada de Jesus quando foi crucificado). Em toda a antiga Palestina, apenas nas classes privilegiadas os indivíduos podiam alcançar os 50 ou 60 anos. 



Além da vida árdua no trabalho rural, os camponeses podiam ser requisitados para obras governamentais, como na cidade de Séforis localizada a apenas 6 quilômetros de Nazaré (ver mapa mais acima), onde Herodes Antipas (filho de Herodes, o Grande) erguia edifícios no estilo greco-romano (na foto acima, ruínas de Séforis). É possível que Jesus e seu pai tenham colaborado nessas obras. Além do trabalho pesado, os moradores da Galileia ainda contribuíam com tributos para Herodes Antipas e também para Roma. 
A trajetória de Jesus, até o momento em que se encontra com outro pregador (entre os vários que existiam na época) chamado João Batista, se constitui em um grande mistério. Jesus era alfabetizado? Teve algum tipo de formação religiosa junto aos rabinos ou mestres das sinagogas judaicas? Teria sido ele um discípulo de João Batista e que depois resolveu seguir o seu próprio caminho? Quais os demais grupos religiosos e políticos que existiam na Palestina ao tempo de Jesus? Todas essas questões iremos discutir na segunda parte desta postagem...
Para saber mais:


Como leitura a respeito do Jesus histórico recomendamos o trabalho "Jesus Histórico: Uma Brevíssima Introdução" da Kline Editora, escrito por dois dos maiores especialistas no assunto aqui no Brasil, os historiadores André Chevitarese (da UFRJ) e Pedro Paulo Funari (da Unicamp). Nesse livro temos um levantamento dos principais estudos feitos até o momento, das fontes utilizadas para a pesquisa e do que se sabe em termos concretos sobre essa figura ímpar da história. Além disso, o livro traz uma ótima bibliografia para aqueles que desejarem se aprofundar no tema. 
As citações da Bíblia foram tiradas de: Bíblia. Novo Testamento. Os quatro evangelhos. Traduzido do grego por Frederico Lourenço. Companhia das Letras, 2017.
Crédito das Imagens:
Jesus representado como pastor e Maria com o menino Jesus: História da Arte, Salvat Editores, 1978, volume 3, páginas 2 e 5 respectivamente. 
Foto do papiro com o Evangelho de Lucas, das cavernas de Qunram e do manuscrito de Isaías: Testamento: os textos sagrados através da história de John Romer. editora Melhoramentos, 1991.
Mapa da Palestina no século I: Zelota: A Vida e a Época de Jesus de Nazaré de Reza Aslan. Zahar Editores, 2013, página 9. 
Cabeça de Pompeu e do aqueduto de Cesareia: História das Civilizações, volume I. Abril Cultural, 1975, páginas 208 e 239. 
Foto do templo de Jerusalém:
http://prophecyreviewtoday.blogspot.com/2013/09/the-temple-of-doom.html
Moeda de ouro com o rosto do imperador Augusto: Roma Imperial en el Museo Nacional de Bellas Artes. Buenos Aires, MNBA, página 43. 
Nome de Jesus em hebraico: Jesus de David Flusser. Editora Perspectiva, 2010, página 1. 
Escavações em Nazaré:
http://blogdonata.blogspot.com/2011/01/primeira-casa-da-epoca-de-jesus-e.html
Hipódromo de Cesareia:
http://geografianovest.blogspot.com/2009/02/herodes-o-tumulo-do-rei-reflete-sua.html
Fotos do fragmento do Evangelho de João, da biblioteca de Nag Hammadi encontrada em 1945, da fortaleza de Herodes (Herodion) e do mar Morto feita por satélite: A Bíblia (volume I). Coleção Grandes Impérios e Civilizações. Edições del Prado, 1996, páginas 20, 62 e 102 respectivamente.
Ossuário de Herodes, o Grande:
http://espanol.cntv.cn/program/Noticiario/20130219/102025.shtml
Fotos da moderna Nazaré, do pastor na Palestina atual, da lamparina de azeite, do forno de pão e do moedor de azeite: A Bíblia (volume II). Coleção Grandes Impérios e Civilizações. Edições del Prado, 1996, páginas 137, 143 e 144. 
Ruínas de Séforis:
https://crossexamined.org/tale-two-kings-part-2-king-jesus/