Liberdade, Liberdade! Seria esse o grito que se ouviria nas ruas de Vila Rica (hoje Ouro Preto) se o movimento fosse efetivamente deflagrado. Mas isso nem chegou a ocorrer. A Inconfidência Mineira ficou apenas nas confabulações, reuniões e conspirações. Contudo, muitos indivíduos dela tomaram parte de várias formas, sejam como simpatizantes, colaboradores, amigos dos participantes e sobretudo como elaboradores de um projeto um tanto imperfeito de país. A inspiração para isso veio dos princípios filosóficos do século XVIII ou Era das Luzes: o Iluminismo. As discussões e críticas feitas às monarquias absolutistas (baseadas na ideia de que o poder real têm origem divina), aos dogmas da Igreja Católica e aos obstáculos impostos para o livre comércio tiveram influência direta no movimento. Ao mesmo tempo, o êxito da experiência norte-americana na guerra contra o domínio inglês, entre 1776 e 1781, parecia tornar a possibilidade de rompimento com Portugal algo perfeitamente viável em termos práticos. O seu personagem mais conhecido acabou sendo representado na História como um mártir, com a aparência de Jesus Cristo (como no quadro acima "Tiradentes ante o carrasco" de Rafael Falco pintado em 1951, que atualmente se encontra na Câmara dos Deputados em Brasília).
A região das Minas Gerais havia prosperado com a exploração do ouro e dos diamantes no decorrer do século XVIII (na gravura acima Vila Rica, atual Ouro Preto no início do século XIX). Notem que essa prosperidade não significou fartura para todos. Como bem demonstrou a historiadora Laura de Mello e Souza a opulência conviveu com a pobreza, embora nos quadros de uma sociedade mais diversificada e urbanizada. Mas na segunda metade desse mesmo século apareceram os sinais de que os tempos de fartura tinham ficado para trás. O esgotamento das minas tornava-se evidente, menos para a Coroa Portuguesa, que acreditava que o contrabando e a evasão fiscal desviavam o ouro de seu destino correto: Portugal. Por isso, uma política de aperto nos impostos e cobrança de tributos em atraso foi aplicada pelas autoridades da metrópole portuguesa. Evidentemente tais medidas geraram descontentamento na população, sobretudo entre os integrantes da elite formada pelo processo de exploração do ouro, pelo crescimento das cidades, pela vida urbana e cultural dentro de uma sociedade mais complexa e heterogênea, quando comparada com a região açucareira do Nordeste. Lembremos, contudo, que a sociedade do ouro também teve por base o trabalho escravo.
Muitos dos filhos dessa elite foram enviados para as universidades europeias. Entre eles destacaram-se José Alvares Maciel, Domingos Vidal Barbosa e José Joaquim da Maia, cujas famílias eram estabelecidas em Minas Gerais e Rio de Janeiro. Estes jovens tiveram contato com sociedades literárias formadas por intelectuais, filósofos, professores universitários e possivelmente com a maçonaria, que na época ganhava força entre aqueles que difundiam as ideias iluministas e liberais na Europa.
José Joaquim da Maia foi um pouco além dos encontros intelectuais e solicitou uma audiência com o embaixador norte-americano na França, ninguém menos do que Thomas Jefferson, o autor da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América e futuro presidente da jovem nação (no quadro acima um retrato de Jefferson). Uma figura histórica contraditória aos olhos de hoje, ao escrever que todos os homens nascem livres e iguais, mas tendo em sua propriedade aproximadamente duzentos escravos. Além disso, manteve uma longa relação amorosa com uma escrava chamada Sally Hemings, aliás filha ilegítima do próprio sogro de Jefferson. A mesma lhe deu seis filhos!
No encontro com Jefferson, Maia foi direto ao ponto: haveria possibilidade de uma ajuda dos norte-americanos a um movimento de libertação no Brasil? Jefferson sugeriu um apoio moral, mas em termos materiais era complicado que os Estados Unidos, ainda em processo de consolidação interna, pudessem oferecer tal ajuda e se indispor com as monarquias europeias. Maia nem chegou a participar efetivamente da Inconfidência, falecendo em Portugal vitima de tuberculose em 1788. Mas o seu amigo José Alvares Maciel voltou ao Brasil discutindo a possibilidade de uma revolta contra Portugal.
O retorno desses estudantes brasileiros lançou, de modo efetivo, as sementes para o planejamento de um movimento separatista aproveitando do descontentamento reinante na região das Minas Gerais em relação às autoridades portuguesas. Maciel trouxe ao Brasil uma pequena coleção dos documentos importantes da Revolução Americana, entre os quais a Declaração de Independência dos Estados Unidos. Logo após desembarcar no Rio de Janeiro em junho de 1788, Maciel participou de um encontro na residência de seu concunhado, no qual estiveram o padre contrabandista José da Silva de Oliveira Rolim, proveniente do arraial do Tejuco (hoje Diamantina) e um certo alferes (segundo-tenente) da Guarda dos Dragões de Minas Gerais, chamado Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido como Tiradentes. Muitos estudiosos afirmam que nesse dia 23 de julho de 1788 nasceu a Inconfidência Mineira. Nesse encontro, Maciel relatou o contato de José Joaquim da Maia com Jefferson, a experiência revolucionária dos norte-americanos e a possibilidade apresentada pelas indústrias, caso viessem a ser implantadas no Brasil. O alferes Silva Xavier ficou com o livreto dos documentos da Independência dos Estados Unidos. Muitos laços de compadrio uniam esses indivíduos. Por exemplo, o comandante de Tiradentes, tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade era cunhado de Maciel.
Mas o que fazia Tiradentes no Rio de Janeiro? Como vimos na primeira parte desta postagem (Tiradentes e a Inconfidência dos Letrados parte 1) Joaquim José da Silva Xavier era um homem que buscava outras possibilidades de trabalho, além do seu humilde posto de alferes. Após 15 anos de carreira militar, com 40 anos de idade, Tiradentes permanecia na mesma patente militar com a qual iniciara a sua carreira (no quadro acima de José Washt Rodrigues, o "Alferes Tiradentes", a representação do herói inconfidente preferida pelos militares). Queixava-se abertamente de que era chamado para as missões mais arriscadas, mas na hora da promoção era preterido por outros colegas, talvez mais influentes.
Por isso, exercia também o ofício de dentista, vindo daí o conhecido apelido de Tiradentes (na foto acima, um boticão, instrumento usado no século XVIII para extrair dentes) e farmacêutico.
Naquele momento, Tiradentes (na foto acima, a casa que abrigou a farmácia mantida pelo alferes) estava oferecendo ao Governo Português no Rio de Janeiro os seus projetos de canalização dos rios Andaraí e Maracanã (córrego que deu nome ao famoso estádio de futebol, que foi construído tempos depois próximo ao mesmo), a construção de moinhos d'água e melhorias na área portuária. Tiradentes esperava poder auferir uma renda desses projetos. Contudo, os mesmos foram encaminhados ao Conselho Ultramarino e jamais foram aprovados. Muitos fornecedores de água e que mantinham moinhos na cidade também lhe fizeram oposição aos planos. Tal fato contribuiu para que o alferes se tornasse um homem ainda mais amargurado e insatisfeito com o controle português sobre o Brasil.
Embora fosse um participante ativo das reuniões e confabulações da Inconfidência, Tiradentes ainda sentia-se desconfortável por não pertencer à elite social da colônia. O que não significa dizer que fosse pobre! Vivia com relativo conforto e tinha rendimentos razoáveis. Por exemplo, no total dos bens sequestrados por Portugal após a prisão dos inconfidentes, o patrimônio de Tiradentes era superior ao de seu amigo e comandante na Guarda dos Dragões, o já citado Francisco de Paula Freire de Andrade.
Por incrível que pareça, José Alvares Maciel fez uma outra amizade na sua volta ao Brasil. Ninguém menos do que Luís Antônio Furtado de Castro do Rio Mendonça e Faro ou simplesmente Visconde de Barbacena, o novo governador das Minas Gerais. Nobre, formado em Coimbra e especialista em mineralogia, Barbacena viu em Maciel um homem culto e que poderia ajudá-lo em seu governo. As instruções dadas ao novo governador por Martinho de Melo e Castro, Secretário da Marinha e dos Domínios Ultramarinos de Portugal eram claras no sentido de dar prioridade à economia e ao aspecto fiscal (impostos). O Governo Português considerava que as gestões anteriores haviam negligenciado os interesses da metrópole. A Derrama (cobrança dos impostos do ouro em atraso) era peça importante da política de Barbacena, que assumiu em 11 de julho de 1788.
Cunha Menezes foi o alvo principal dos "disparos literários" de Gonzaga na obra Cartas Chilenas divulgadas de forma anônima na capitania das Minas em 1789. Sob o pseudônimo de Critilo, Gonzaga não poupa o governador Menezes, chamado de Fanfarrão Minésio, acusando o mesmo de ser corrupto, vendedor de cargos e de até promover orgias no palácio com "mocetonas, mariolas, michelas, donzelinhas". Coube a Cunha Menezes a construção do prédio da Câmara e cadeia de Vila Rica (na foto acima o prédio, hoje Museu da Inconfidência em Ouro Preto).
As críticas de Gonzaga ao Fanfarrão Minésio, ao que parece, faziam eco entre outras pessoas importantes da capitania. Como nos mostra o jornalista e escritor Pedro Doria, Tomás Antônio Gonzaga já havia tido vários desencontros com o antigo governador (na foto acima, a residência alugada de Gonzaga ao tempo em que era ouvidor de Vila Rica). Um deles envolvia o rico comerciante e contratador (arrecadador de impostos) João Rodrigues de Macedo. Por ter autorização do Governo Português para arrecadar impostos, Macedo era isento dos mesmos e costumava aplicar o dinheiro arrecadado em benefício próprio. Daí ter uma enorme dívida com o fisco. Macedo agia também como banqueiro e emprestou dinheiro para muitas pessoas importantes incluindo Alvarenga Peixoto, Claudio Manuel da Costa, Tiradentes (que morava há apenas 100 metros de sua casa), Domingos de Abreu Vieira (que batizou a filha de Tiradentes, Joaquina) e o ouvidor Gonzaga. Pela atuação suspeita na arrecadação dos impostos, Macedo sofreu vários processos por parte do Governo. Mas, o seu advogado era Claudio Manuel da Costa e o juiz Gonzaga. Todos os processos foram decididos em favor de Macedo. Em 1788 Tomás Antônio Gonzaga esgotara o seu mandato de ouvidor em Vila Rica e era transferido para Salvador na Bahia.
Gonzaga estava para se casar com Maria Doroteia Joaquina de Seixas, a célebre Marília de Dirceu de seus poemas. Na verdade era a Marília morena, pois teria existido outra, a Marília loira (nas fotos acima, os rostos de Gonzaga e Marília em imagens criadas na década de 1930).
Conversas, reuniões, confabulações... Em outubro de 1788 os principais personagens da Inconfidência encontravam-se em Vila Rica. O Visconde de Barbacena já era o novo governador e a decretação da Derrama começava a se tornar uma possibilidade real. A capitania das Minas Gerais tinha aproximadamente 320 mil habitantes, sendo metade formada por população livre e a dívida da capitania totalizava o equivalente a 8 toneladas de ouro, cabendo 46 gramas para cada habitante livre.
No dia 26 de dezembro de 1788 uma reunião importante ocorreu na casa do comandante dos Dragões, Francisco de Paula Freire de Andrade. Sim, o próprio comandante da guarda que deveria proporcionar ordem na capitania participava da conspiração! Nessa reunião além do dono da casa, conspiravam Alvarenga Peixoto (homem rico e também militar), o proscrito contrabandista de diamantes padre Oliveira Rolim, o vigário Correia de Toledo, homem muito rico e proveniente da Vila de São José, terra natal de Tiradentes (nas fotos acima, casario na antiga Vila de São José, atual Tiradentes e a antiga residência do vigário Toledo), Tiradentes e José Alvares Maciel. Mas havia também Tomás Gonzaga, Claudio Manuel da Costa e o padre de Mariana, Luís Vieira da Silva, dono da maior biblioteca da capitania. Este último era o núcleo intelectual da conspiração. Uma figura obscura, o magnata e contratante João Rodrigues de Macedo, amigo de todos e também agiota de todos, teria participado das reuniões? O segundo escalão era formado por outros contratadores, como Domingos de Abreu Vieira (compadre de Tiradentes) e Joaquim Silvério dos Reis.
Nessa e talvez em outras reuniões discutiu-se de tudo (no desenho acima de Ivan Wasth Rodrigues uma reunião dos inconfidentes). Qual país seria criado? Que forma de governo teria? Sim, uma república, mas de que tipo? Muito provavelmente seguindo o modelo presidencialista norte-americano, do qual o padre Luís Vieira da Silva conhecia bem pelos seus livros. Liberar as fábricas e fundições de ferro que eram proibidas pela rainha de Portugal, criar uma universidade em Vila Rica e estabelecer a capital, possivelmente, em São João Del Rey.
A bandeira com o triângulo vermelho (foto acima), representando a Santíssima Trindade e a frase latina do poeta romano Virgílio: Libertas Quae Sera Tamen (Liberdade Ainda Que Tarde). Uma questão delicada: a escravidão. Mantê-la? Libertar apenas os escravos nascidos no Brasil? Chamar os mesmos para a luta e prometer a eles o quê? A tendência também seria seguir o que fizeram os norte-americanos, manter a instituição, embora alguns inconfidentes nem tivessem escravos. Por outro lado, Alvarenga Peixoto falava em liberdade ao propor o que deveria estar escrito na bandeira dos inconfidentes, mas era dono de 132 escravos! Como já afirmamos, na mentalidade da época não era algo tão contraditório.
Finalmente, o que fazer com o governador (Visconde de Barbacena)? De acordo com o padre Correia de Toledo em seu depoimento, Tiradentes teria dito: "A maior ação, de maior risco e dificuldade, a quero para mim". A tal ação era prender o governador e sua família e, possivelmente, cortar-lhe a cabeça e exibir a mesma para a multidão em Vila Rica, aos gritos de "Viva a Liberdade" para tornar a rebelião um fato consumado! Alvarenga Peixoto insistia nessa ideia. A data do movimento seria o dia em que fosse decretada a Derrama, prevista por alguns inconfidentes para fevereiro de 1789. A senha: Hoje é o Dia do Batizado! Levantes simultâneos ocorreriam no Serro (Diamantina) e na Vila de São José (atual Tiradentes), área da Comarca do rio das Mortes. Nenhum documento ou papel desses planos, se é que existiram, sobreviveram. Sabemos de tudo isso por meio dos depoimentos dos participantes após a prisão dos mesmos.
A espera angustiante! Janeiro e fevereiro de 1789. Mais encontros e discussões entre os inconfidentes. E a Derrama não era decretada! Tiradentes corria em busca de informações nas casas de Gonzaga e do comandante Freire de Andrade, os quais se queixavam de sua indiscrição. Na Vila de São José, o padre Correia de Toledo aliciava Joaquim Silvério dos Reis, contratador de impostos que devia muito à Coroa Portuguesa.
O mês de março chegou e nada da Derrama. Tiradentes estava angustiado e queria ter informações sobre o movimento no Rio de Janeiro, onde tinha contatos. A impaciência do alferes já se tornava pública e quando bebia nas tabernas falava abertamente contra Portugal. "Fazem de nós negros" costumava dizer! No dia 12 de março de 1789, Tiradentes segue em viagem para o Rio, ainda com esperança de organizar o movimento na capital da colônia. Em Vila Rica apenas silêncio.
Finalmente a decisão do governador: não haverá Derrama! Tomás Antônio Gonzaga, desconfiado de que o Visconde de Barbacena já soubesse da conspiração, decide visitá-lo e até sondar o mesmo sobre a hipótese da adesão ao movimento! Mas Barbacena, astuto, procurou ganhar tempo e realizar algumas mudanças no comando da Guarda dos Dragões com oficiais de sua confiança. No dia 25 de março, Barbacena escreveu ao seu tio e vice-rei do Brasil (principal autoridade da colônia com sede no Rio de Janeiro) Luís de Vasconcelos e Sousa. Na correspondência, Barbacena afirmou que, por meio de uma denúncia, soube da existência de uma "sublevação entre os poderosos e magnatas" das Minas Gerais e do Rio de Janeiro, apontando o ex-ouvidor Tomás Antônio Gonzaga como um dos cabeças do movimento. De fato, 10 dias antes dessa carta, Barbacena já tinha conhecimento da conspiração. Na verdade houve mais de um denunciante.
Contudo, Joaquim Silvério dos Reis tornou-se o mais conhecido, talvez pelo benefício do perdão de sua enorme dívida (na imagem acima o coronel Silvério dos Reis). Em termos atuais, uma "delação premiada"! Nessa altura, a conspiração já estava abortada em Vila Rica. Na Vila de São José o padre Correia de Toledo ainda tentava obter adesões, como também Tiradentes na capital da colônia. O denunciante Silvério dos Reis foi enviado ao Rio de Janeiro, a mando do governador, para seguir os rastros do alferes e o vice-rei já estava informado sobre a presença de Tiradentes lá.
Ao que parece, o Visconde de Barbacena não desejava levar para a prisão tantos homens importantes da capitania das Minas. Mas não era essa a ideia de seu tio e vice-rei do Brasil! Na visão das autoridades portuguesas tratava-se de traição à rainha, falta de fidelidade à soberana de Portugal e crime de lesa-majestade. Daí a palavra "Inconfidência"! Nos idos de maio começam as prisões na capital. O vice-rei já havia mobilizado tropas portuguesas enviando-as para Minas Gerais.
Em um sobrado no centro do Rio de Janeiro, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, apesar de portar um bacamarte (espingarda de cano curto) nada pode fazer diante dos soldados que vieram prendê-lo (na imagem acima, o quadro de Antonio Parreiras de 1914 reconstituindo a prisão de Tiradentes). Tiradentes é conduzido para a Ilha das Cobras, onde também estava detido Silvério dos Reis, apesar de ter assinado a sua denúncia. No dia 30 de maio, em Vila Rica, ao acordar pela manhã exatamente uma semana antes de seu casamento, Tomás Antônio Gonzaga viu sua casa cercada pelos soldados e recebeu voz de prisão! Em 25 de junho foi a vez de Claudio Manoel da Costa que foi retirado de sua residência e do convívio com sua esposa, a escrava Francisca Arcângela. Em junho de 1789 os demais envolvidos também foram presos em Vila Rica e na Vila de São José. Uma Devassa (processo) foi aberta na capital da colônia e outra em Minas.
Em Vila Rica, a bela residência do contratante João Rodrigues de Macedo (conhecida como Casa dos Contos, na foto acima) foi alugada pela Coroa Portuguesa para abrigar os inconfidentes em função de não existirem cárceres suficientes.
Entre os presos nesse local estava Claudio Manuel da Costa, que prestou depoimento sob intensa pressão dando detalhes a respeito das reuniões e dos demais envolvidos. Abalado e deprimido teria cometido suicídio dois dias depois, em 4 de julho de 1789 (acima, um desenho de Ivan Wasth Rodrigues reconstituindo a cena e o cubículo da Casa dos Contos onde Claudio foi encontrado morto). Segundo sua biógrafa, a historiadora Laura de Mello e Souza, o poeta de fato se suicidou. Segundo o historiador inglês Kenneth Maxwell, em sua obra clássica "A Devassa da Devassa", Claudio sabia demais e sua morte foi oportuna para muitos dos envolvidos, inclusive para o proprietário da casa-prisão João Rodrigues de Macedo, que não foi acusado de participação no movimento e, possivelmente, para o próprio governador Visconde de Barbacena. A dúvida permanece!
Posteriormente, os presos que se encontravam em Vila Rica foram transferidos para o Rio de Janeiro e permaneceram incomunicáveis até a leitura da sentença final em 1792 (na imagem acima a pintura "Jornada dos Mártires" de Antonio Parreiras). De todos os inconfidentes, os que mais prestaram depoimentos foram Tiradentes e o padre Oliveira Rolim. A situação dos presos na fortaleza da ilha das Cobras, em plena baia de Guanabara, era angustiante. Tiradentes fora interrogado em maio de 1789 e só no ano seguinte voltaria à presença de seus inquiridores. Muitos permaneceram dignos e íntegros em seus depoimentos, entre eles Tomás Gonzaga e o padre Vieira da Silva. Não assumem as culpas, mas não incriminam ninguém. Outros contam o que sabem. Alvarenga Peixoto em sinal de arrependimento esboça elogios à Coroa portuguesa. Tiradentes assume a sua participação no quarto depoimento em janeiro de 1790. Réu confesso e sem demonstrar arrependimento, segundo o jornalista Pedro Doria.
Finalmente, em 18 de abril de 1789 saiu a sentença para os 34 réus. Desses, três morreram no cárcere (inclusive Claudio Manuel da Costa). Joaquim Silvério dos Reis foi liberado após um ano de prisão. Catorze inconfidentes foram condenados à forca, sendo que destes nove eram tidos como líderes do movimento, praticamente aqueles que já citamos anteriormente. A sentença foi lida aos mesmos e cenas de desespero foram observadas entre os réus, os quais não sabiam de uma decisão da rainha determinada dois anos antes.
Para Joaquim José da Silva Xavier não bastava apenas a forca. Após a execução, o seu corpo deveria ser esquartejado e cada parte exposta nos locais onde o mesmo teria proferido seus discursos sediciosos (na imagem acima o Tiradentes esquartejado do pintor Pedro Américo em uma pintura de 1893).
Os seus bens foram confiscados, a casa onde residia em Vila Rica derrubada e o chão da mesma salgado para que nada mais nascesse no local (na foto acima o local e a placa indicando onde se localizou a residência de Tiradentes). A sua família, filhos e netos foram declarados infames!
Caro leitor, não dê crédito a uma lenda que correu (e ainda corre) afirmando que outra pessoa (um preso comum) teria sido executada no lugar de Tiradentes e de que este teria fugido para a Europa. Ao que parece, tal história teria sido contada entre os integrantes da maçonaria no século XIX, mas é completamente desprovida de fundamento (na foto acima, as travas da forca utilizada na execução de Tiradentes).
Filhos(as)? Pelo menos sabemos de uma. Um processo movido por uma tal Antônia Maria do Espírito Santo, amante do célebre inconfidente, demandava a devolução de uma escrava e de seus dois filhos menores, parte do confisco dos bens de Tiradentes quando de sua prisão. Maria alegava que a escrava lhe fora doada e não pertencia mais ao alferes. Por meio desse processo soube-se que Tiradentes teve uma filha com Antônia Maria chamada Joaquina. O alferes chegou a prometer casamento à mesma. Os dois tiveram um relacionamento entre 1786 e 1787, quando Antônia tinha 16 anos e ele quase 40! Posteriormente, Tiradentes alegou que Antônia tinha comportamento inadequado, sobretudo quando de suas ausências de Vila Rica e desfez o compromisso. Contudo, sabe-se que não deixou a mãe e a filha desamparadas.
O alferes batizou Joaquina, deu uma escrava para a mãe e uma casa para poderem morar (na foto acima, a residência onde morou Joaquina, filha de Tiradentes). Em um recenseamento efetuado em 1804 a casa continuava em poder de Antônia Maria e Joaquina residia na mesma junto com a mãe. Sabe-se que Antônia provavelmente não era negra e seu pai havia sido funcionário público em Vila Rica. Quanto a Joaquina, infelizmente, não há informações sobre a sua vida. Pelo fato das mulheres adotarem o sobrenome do marido foi impossível localizar a mesma nos registros. A história da descendência de Tiradentes, com base nos documentos, se encerra no censo de 1804.
Joaquim José da Silva Xavier era um homem de seu tempo, boêmio, namorador e frequentava bordéis. Em um deles prometeu a uma prostituta que arrumaria uma vaga para o filho desta na Guarda dos Dragões e alardeou isso para muitas pessoas (aliás como era o seu costume...). O concubinato era comum na sociedade mineira no final do século XVIII e onde as mulheres tinham poucas possibilidades de conseguir uma união estável. Na fase da decadência do ouro, muitos homens abandonaram a região e simplesmente largaram as concubinas, muitas das quais caiam na prostituição. O processo movido por Antônia Maria mostrava que Tiradentes tinha escravos, assim como Alvarenga Peixoto e outros inconfidentes. Mas, a Inconfidência não falava em liberdade? É preciso entender a qual liberdade clamavam os inconfidentes: a liberdade política! Apesar disso, Tiradentes foi um dos poucos a defender o fim da escravidão entre os rebeldes.
Como já observado aqui, Tiradentes também não era um homem absolutamente pobre. Entre os seus objetos pessoais apreendidos constava um relógio, algo que uma pessoa comum não utilizava naquela época (na foto acima, o relógio Elliot que pertenceu a Tiradentes).
Um Tiradentes idealizado a semelhança de Jesus Cristo. Nenhum retrato do alferes chegou até nós, apenas algumas descrições vagas nos Autos da Devassa: aspecto rude, bigode e alguns cabelos grisalhos (como na reconstituição acima feita para o livro do jornalista Pedro Doria). O Tiradentes que conhecemos hoje e que está no imaginário popular foi fruto do movimento republicano do século XIX, que o concebeu como o seu mártir e herói, da mesma forma que necessitava de uma nova bandeira e de um hino. Por isso, uma face condizente com essa condição de mártir foi estabelecida assemelhando o alferes a Jesus. Tiradentes não foi executado com barba, mas com a cabeça raspada, o que era comum em uma execução na forca! Joaquim José da Silva Xavier também teve a sua imagem associada ao nacionalismo dos tempos do Estado Novo (1937-1945) liderado por Getúlio Vargas, que mandou trazer os restos mortais dos inconfidentes que foram banidos para a África. Enfim, Tiradentes foi um homem comum para o seu tempo e com os anseios e valores de sua época. Exatamente aí reside a sua dignidade...
Para saber mais:
1789: A historia de Tiradentes e dos contrabandistas, assassinos e poetas que lutaram pela independência do Brasil de Pedro Doria. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira 2014 (na foto acima capa do livro).
Crédito das imagens:
Quadro retratando Thomas Jefferson: História das Civilizações. Volume IV. Abril Cultural, 1975, p. 182.
Imagens extraídas da Coleção Grandes Personagens da Nossa História, Abril Cultural, 1969: quadro "Alferes Tiradentes" de J. Washt Rodrigues, p. 227; boticão usado para extrair dentes, p. 222; quadro "Tiradentes ante o carrasco", p. 234; Tiradentes esquartejado de Pedro Américo, p. 236; quadros "Jornada dos Mártires" e "A Prisão de Tiradentes" de Antonio Parreiras, p. 231; relógio de Tiradentes, p. 223.
Quadro da rainha D. Maria I e as travas da forca de Tiradentes: Museu da Inconfidência. Ouro Preto, 1995, pags. 115 e 113.
Fotos do atual Museu da Inconfidência, gravura de Ouro Preto no início do século XIX, da casa que abrigou a farmácia de Tiradentes e da casa de sua filha Joaquina: Ouro Preto: Museus. Com fotografias de Dimas Guedes. Ouro Preto Editora, 2014. Pags. 176, 180, 42 e 43 respectivamente.
Cubículo onde foi encontrado morto Claudio Manuel da Costa: Laura de Mello e Souza. Claudio Manuel da Costa. Coleção Perfis Brasileiros. Cia. das Letras, 2011.
Desenhos de Ivan Wasth Rodrigues: História do Brasil em Quadrinhos. Editora Brasil-América, pags. 42 e 43.
Desenhos representando Joaquim Silvério dos Reis e o possível rosto de Tiradentes: do já citado livro de Pedro Doria.
Demais fotos: acervo do autor.
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