sábado, 30 de setembro de 2017

Biblioteca Digital Unesp



Caro leitor, o blog História Mundi mantém o seu compromisso de ser uma ferramenta de estudo e pesquisa, não apenas para estudantes e professores, mas também voltado ao público em geral. O saber e o conhecimento devem ser cultivados no cotidiano, no dia a dia e de forma permanente. Na verdade, se constituem em instrumentos para lidarmos com a nossa própria vida e para que tenhamos meios de enfrentar as adversidades da mesma. 
Pois bem, nesse sentido colocamos hoje à disposição dos interessados mais uma dessas ferramentas: a Biblioteca Digital Unesp. Trata-se de uma grande iniciativa da Universidade Estadual Paulista (Unesp) para os estudiosos e pesquisadores. A seleção pode ser feita por meio das "comunidades": Hemeroteca (revistas, jornais), História de São Paulo (que inclui uma coleção formada por 95 volumes de manuscritos dos séculos XVIII e XIX, transcritos e impressos pelo Arquivo do Estado de São Paulo, a partir de 1894), Livros (como um dos volumes de "O Capital" de Karl Marx, em alemão, na imagem acima), Mapas (sobretudo da região litorânea de São Paulo e relacionados à aspectos da poluição) e Música (partituras). Também existem as "subcomunidades". Por exemplo, quem pesquisar em Hemeroteca terá as subcomunidades Canto Libertário (jornais, revistas, boletins e publicações produzidos por correntes do pensamento libertário nacional e internacional, como socialistas, comunistas e anarquistas), Instrumentos para pesquisa sobre impressos periódicos, Jornais em Língua Estrangeira, Periódicos Paulistas e as Publicações da própria Unesp. 


Entre as raridades do acervo estão várias edições da revista "A Cigarra", dirigida ao público feminino e que durou décadas. Como o exemplar que aparece na imagem acima, do dia 28 de setembro de 1917, portanto há exatamente um século e que traz na capa a figura do lendário tenor italiano Enrico Caruso, que excursionava pelo Brasil naquela época. 


Outro exemplar da mesma revista aparece na imagem acima, de 15 de abril de 1922, que tem como capa a atriz norte-americana Gloria Swanson. Sim, aquela que praticamente interpretou a si mesma no clássico do diretor Billy Wilder, "O Crepúsculo dos Deuses" (1950), no papel de uma atriz decadente do cinema mudo. 
Tudo isso você pode folhear e ler em seu próprio computador, celular ou tablet, sem precisar sair de casa. Como sempre fazemos, o endereço da Biblioteca Digital Unesp fará parte dos nossos Links Interessantes. 
O link da Biblioteca Digital Unesp:
https://bibdig.biblioteca.unesp.br/

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Promoção de Livros da Paco Editorial




Caro leitor, a Paco Editorial está com uma interessante promoção de 20% de desconto em seu catálogo na Amazon Brasil. São títulos que abrangem praticamente todas as áreas, como história, geografia, sociologia, economia, meio ambiente, ecologia, biologia, engenharia, medicina, entre outras. A editora tem por norma a publicação de trabalhos que tenham relevância nas suas respectivas áreas e prima pelos seus cuidados editoriais. A propósito, o livro deste que vos escreve faz parte desse mesmo catálogo, como vocês podem observar na chamada acima.
Para acessar o site da Amazon Brasil: 

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Imagens Históricas 23: Getúlio Vargas e Franklin Roosevelt em Natal (RN)




Caros leitores, como as aparências enganam! Tal afirmação não diz respeito às questões políticas da foto, as quais, na verdade, já se encontravam bem encaminhadas por ocasião desse encontro entre o presidente do Brasil, Getúlio Vargas e o seu colega norte-americano Franklin Roosevelt, como mostra a nossa Imagem Histórica de hoje, registrada na cidade de Natal, capital do estado do Rio Grande do Norte, no dia 28 de janeiro de 1943.
Bem, antes de nossa dissertação sobre o contexto histórico da imagem, vamos aos personagens que aparecem na mesma. Iremos nos ater aos que estão no jipe e ao oficial que se encontra do lado direito, em pé e de perfil. No banco do passageiro, na frente, temos o então presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, que usava uma tarja preta em seu braço direito, em função da queda de um avião de sua comitiva. No banco de trás, da esquerda para a direita, o presidente brasileiro Getúlio Vargas e ao seu lado, com um largo sorriso, o almirante Jonas Howard Ingram, que comandou a Quarta Frota Americana no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. Fora do jipe, como dissemos, no lado direito da foto, o general Robert Legrow Walsh do Comando de Transporte Aéreo do Exército Americano no Atlântico Sul. 


Durante muito tempo pairou uma dúvida a respeito da identidade do motorista do jipe. Segundo nos informa o blog Tok de História, trata-se do capitão David Channing Moore (foto acima), que entrou na USAAF (United States Army Air Force) em 1942. O oficial tinha formação universitária e teria trabalhado antes na empresa IBM. Após a guerra e tendo alcançado o posto de coronel, David Moore seguiu a carreira policial em Nova Iorque. Foi casado e pai de três filhos. 




Ao descrevermos o ambiente no qual a foto foi tirada (nas imagens acima, duas versões alternativas da mesma) temos a impressão de que o chefe de Estado visitante era Vargas e não Roosevelt, em função da presença de tantos militares norte-americanos. Na verdade, os dois presidentes iniciavam a inspeção da base norte-americana de Parnamirim Fields, em Natal (RN). A mesma foi fruto da cooperação entre os dois países no contexto da Segunda Guerra Mundial e serviu como ponto de apoio para as operações militares norte-americanas no norte da África e no Mediterrâneo. 
Contudo, por que afirmamos na introdução que as aparências enganam? Na verdade, era a aparência de um personagem que enganava: o presidente Getúlio Vargas. Na foto em questão, o mesmo estava sorrindo. Não se tratava de um sorriso espontâneo! Primeiro, porque não era de seu gosto ideológico ver o Exército dos Estados Unidos tão bem estabelecido em território nacional, algo não muito de acordo com os princípios de soberania de uma nação. Segundo, porque Vargas vivia naqueles dias um drama pessoal. Além do fato de estar andando com uma bengala, devido a um acidente automobilístico, o presidente vivenciava o agravamento do estado de saúde de seu filho caçula, Getúlio Vargas Filho, o Getulinho. E por uma triste coincidência, da mesma doença que deixou o presidente Roosevelt impossibilitado de caminhar: a poliomielite. Apenas cinco dias depois desse encontro com Roosevelt, Getulinho faleceu em São Paulo, aos 23 anos de idade. O pai chegou à capital paulista, a tempo de acompanhar os últimos momentos de vida do filho. O temperamento aparentemente frio de Getúlio foi submetido à prova com a perda e somente sua filha, Alzira Vargas (a Alzirinha) pode dar-lhe o apoio familiar necessário para seguir em frente. Consta que o presidente Roosevelt chegou a oferecer a Vargas a possibilidade de levar o jovem para os Estados Unidos, a fim de tentar outros tratamentos, mas o estado de Getulinho era irreversível. 


Bem, vamos agora contextualizar historicamente o encontro entre os dois chefes de Estado (acima, os dois presidentes conversam dentro de um destróier da Marinha americana, nesse mesmo encontro). Segundo nos relata o historiador Paulo Brandi em seu livro "Vargas: da vida para a história" (Zahar Editores, 1985), em janeiro de 1940, a gigante do aço americana United States Steel comunicou que não ia participar do empreendimento siderúrgico ambicionado pelo governo brasileiro, a fim de impulsionar o processo de industrialização do país, apesar de existir um parecer favorável de seus próprios técnicos. Em função disso, Getúlio Vargas, que encabeçava o governo ditatorial do Estado Novo (1937-1945), decidiu criar a grande siderúrgica como uma empresa nacional, embora com ajuda de capitais estrangeiros, sob a forma de empréstimos. 
Nos meses seguintes, o plano do governo brasileiro avançou, sendo escolhida a cidade de Volta Redonda (RJ), a meio caminho entre São Paulo e Rio de Janeiro, para abrigar a futura estatal. Ao mesmo tempo, solicitou ao embaixador brasileiro nos Estados Unidos, que iniciasse entendimentos para a obtenção de um grande empréstimo, algo entre 15 a 20 milhões de dólares, a fim de concretizar o projeto. Vargas desejava tirar o máximo proveito da chamada "Política de Boa Vizinhança" do governo dos Estados Unidos, cujo objetivo era impedir a América Latina de estabelecer relações mais estreitas com os países do Eixo (Itália, Alemanha e Japão). Sim caro leitor, estamos na fase inicial da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), caracterizada pelo avanço alemão na Europa e a expansão japonesa na Ásia. Os Estados Unidos estavam preocupados com um eventual ataque alemão ao Nordeste brasileiro, com tropas provenientes do norte da África, que estava sob a influência do exército germânico. 
Pois bem, o governo norte-americano, apesar de ter prometido a ajuda, relutava em concretizar o empréstimo. As negociações bilaterais já eram tidas como frustradas, quando aparece a habilidade política de Getúlio Vargas, em saber jogar com as forças que se digladiavam ao seu redor. Em um discurso pronunciado no dia 11 de junho de 1940, no encouraçado Minas Gerais, para uma platéia de altas patentes militares, Vargas teceu críticas aos regimes liberais e exaltou os países que se apoiavam nos valores nacionais, sem dar nome aos mesmos. Eis o trecho crucial do discurso, extraído da biografia escrita por Lira Neto "Getúlio: Do governo provisório à ditadura do Estado Novo 1930-1945" (Companhia das Letras, 2013):

(...) Assistimos à exacerbação dos nacionalismos, as nações fortes impondo-se pela organização baseada no sentimento de pátria e sustentando-se pela convicção da própria superioridade. Passou a época dos liberalismos imprevidentes, das demagogias estéreis (...). 

As reações foram imediatas! Nos Estados Unidos, o jornal New York Times interpretou a fala como sendo fascista e a Associated Press considerou que o presidente Vargas estava defendendo os ditadores, esquecendo-se que o próprio era também um ditador. No geral, o seu discurso era visto como sendo uma adesão ao Eixo, a ponto de Benito Mussolini enviar-lhe um telegrama, expressando admiração pelo líder brasileiro. 



Em Washington, o clima era de decepção e desapontamento com Getúlio, o qual teria capitulado diante dos germanófilos (admiradores da Alemanha) instalados em seu governo, sobretudo os generais Góis Monteiro, Eurico Gaspar Dutra (na foto acima, da esquerda para a direita, Dutra, Getúlio e Góis Monteiro, em agosto de 1945) e o chefe da Polícia no Distrito Federal Filinto Muller, o qual, aliás, tinha origem alemã. A suspeita pairava até mesmo sobre a família de Getúlio, uma vez que o seu filho mais velho, o médico Lutero Vargas, era casado com uma alemã. O embaixador dos E.U.A. no Brasil, Jefferson Caffery, demonstrava enorme preocupação com a posição do presidente Getúlio Vargas. 
Lembremos, mais uma vez, que em junho de 1940, a guerra caminhava para um avanço efetivo do Eixo, com a queda da França, a entrada da Itália e a Grã-Bretanha prestes a se tornar a próxima vítima da expansão do Reich alemão. Alguns dias depois, demonstrando contrariedade com a repercussão de seu discurso, Vargas reafirmou o seu pronunciamento, destacando porém, a necessidade do fortalecimento econômico e militar do Brasil, além de enfatizar a união dos países da América (pan-americanismo). Foi nesse momento, que o governo alemão acenou com a possibilidade de estabelecer uma cooperação e autorizou o seu embaixador no Brasil, Curt Prüfer, a conversar com Getúlio e entabular negociações. Berlim mostrou disposição em duplicar o comércio com o Brasil e ajudar na construção da tão ambicionada siderúrgica. E mais, o pagamento desta poderia ser feito em matérias-primas. Apenas uma ressalva, em função do bloqueio naval imposto pelos britânicos desde o início da guerra em 1939, tais acordos apenas poderiam ser concretizados após o final do conflito, com a vitória nazista (naquele momento, algo absolutamente viável)! Hitler exigia apenas que o Brasil mantivesse a neutralidade. A instrução do governo alemão ao seu embaixador: "Evite dar a impressão de que estamos correndo atrás dos brasileiros". Evidentemente, aguardar o fim da guerra era algo que não passava pela cabeça de Getúlio Vargas, uma vez que a margem de negociação e barganha de que dispunha estaria perdida, como bem salienta o biógrafo de Getúlio, Lira Neto, em livro já citado. A oportunidade tinha que ser bem aproveitada e o momento era aquele. 



Representantes do governo brasileiro, entre eles o ministro das Relações Exteriores Osvaldo Aranha (na foto acima, na Conferência de Chanceleres Americanos realizada no Rio de Janeiro, no início de 1942), um conhecido americanófilo (admirador dos Estados Unidos), insistiam junto ao governo norte-americano para que a promessa de ajuda financeira à siderúrgica nacional se tornasse algo mais concreto e objetivo.
Em setembro de 1940, veio a resposta, com a liberação dos 20 milhões de dólares previstos! Em abril de 1941 foi fundada a Companhia Siderúrgica Nacional, uma empresa de economia mista, mas constituída em sua maior parte com recursos do governo brasileiro. No mesmo ano, teve início a construção da mesma em Volta Redonda (RJ). Além disso, ainda no final de 1940, ficou acertada a formação de uma comissão militar mista Brasil-E.U.A., para planejar o reaparelhamento de nossas Forças Armadas. Importante lembrar que nesse momento, o Brasil mantinha a sua neutralidade e os Estados Unidos ainda não estavam diretamente envolvidos no conflito, cenário que iria mudar nos meses seguintes. Por outro lado, a decisão do governo norte-americano de apoiar o projeto siderúrgico do governo Vargas era um claro sinal de aproximação entre os dois países, embora o reaparelhamento das Forças Armadas brasileiras fosse uma questão pendente. 
Em 1941, Getúlio Vargas ainda manteria uma política pendular, acreditando que para manter o interesse norte-americano em estabelecer futuros acordos, era necessário que ainda "pairasse no ar alguma duvida sobre a posição do país", segundo relata o historiador norte-americano John W. Foster Dulles. Por exemplo, em 20 de abril de 1941, Vargas enviou um telegrama de felicitações a Hitler por seu aniversário e, ao mesmo tempo, negociava com o governo norte-americano um acordo para o suprimento de produtos estratégicos como borracha, diamantes, manganês, quartzo, que acabou sendo assinado. Isso significava que essas matérias-primas não seriam mais vendidas aos países do Eixo. Apesar disso, as desconfianças em relação a Vargas persistiram ao longo desse ano. 



Enquanto isso, o cenário da Segunda Guerra sofreu alterações, com o ataque alemão à União Soviética e o bombardeio japonês à Base Norte-Americana de Pearl Harbour, no Havaí, em 7 de dezembro de 1941. A guerra tornara-se, de fato, mundial. Os já citados países do Eixo contra os Aliados (na charge acima, da esquerda para a direita, os líderes aliados Winston Churchill da Grã-Bretanha, Roosevelt dos E.U.A. e Josef Stálin da União Soviética). Em outubro, outro acordo com os Estados Unidos foi firmado para o fornecimento de armas ao Brasil, pelo sistema do Lend and Lease Act (lei de empréstimo e arrendamento), aos países que sofressem algum tipo de agressão externa. O alvo da lei era claro: o Eixo! Após o ataque japonês ao Havaí, o governo brasileiro prestou solidariedade ao povo norte-americano.



Na III Conferência de Chanceleres das Repúblicas Americanas, realizada no Rio de Janeiro em janeiro de 1942, o governo norte-americano esperava uma posição unânime dos países latino-americanos contra o Eixo, mas enfrentou a resistência da Argentina e do Chile. O subsecretário de Estado americano Sumner Welles conseguiu apenas uma moção recomendando a ruptura com o Eixo (na foto acima, o embaixador norte-americano Jefferson Caffery, o subsecretário Sumner Welles  e o chanceler brasileiro Osvaldo Aranha, em janeiro de 1942). Mas, ao final da Conferência, veio a posição do governo brasileiro pelo efetivo rompimento. Os generais Dutra e Góis Monteiro se opuseram à medida, temendo represálias por parte do Eixo, que poderia vir através de uma agressão submarina contra a navegação de cabotagem (costeira). Dito e feito! Inicialmente, os ataques alemães não se realizaram no litoral brasileiro, mas para que isso ocorresse, era apenas uma questão de tempo. O ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Ribbentrop, utilizou o governo português como portador de um recado, advertindo o governo brasileiro para não participar da guerra ao lado dos Estados Unidos.
Em outubro de 1942, novos acordos foram firmados pelo governo brasileiro em Washington, com os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, para o fornecimento de minério de ferro através da Companhia Vale do Rio Doce (outra estatal criada por Vargas, naquele mesmo ano), financiamentos para a exploração mineral e para reativar a produção de borracha na Amazônia. O Brasil também teve asseguradas as exportações de café e cacau, mesmo nos momentos em que não fosse possível obter transporte para o envio desses produtos. Eram os chamados Acordos de Washington. Simultaneamente, Vargas tinha que apaziguar elementos de seu próprio governo, os que eram a favor e os que eram contra a aproximação com os Estados Unidos.
Os ataques contra navios brasileiros prosseguiram, sobretudo nas Antilhas (Caribe). Mas, em agosto de 1942, dois navios de cabotagem transportando centenas de passageiros, foram torpedeados e afundados por um submarino alemão, no litoral de Sergipe. Outros dois foram atacados pelo mesmo submarino no litoral da Bahia. Em apenas três dias, 610 pessoas morreram, número superior ao de soldados brasileiros mortos nos campos de batalha da Itália, quando do envio da Força Expedicionária Brasileira (FEB), em 1944. Manifestações contra o Eixo ocorreram em quase todo o país, o que serviu para ampliar o apoio e a popularidade de Getúlio Vargas. Por outro lado, essas mesmas manifestações trouxeram a tona a necessidade de mudar os quadros institucionais do país, pois afinal, o Brasil era um ditadura prestes a combater outras ditaduras. 


Em agosto de 1942, o governo brasileiro reconhece o "estado de guerra" contra a Alemanha e a Itália (na imagem acima, capa do jornal Folha da Noite, de 31 de agosto de 1942, destacando a medida do governo). 





Em novembro do mesmo ano, a Comissão Mista de Defesa Brasil-E.U.A., realizou os acertos para promover a defesa do Nordeste brasileiro e a cidade de Natal (RN) foi escolhida para sediar o Comando de Transporte Aéreo Norte-Americano, tendo um aeroporto especialmente construído para isso (nas fotos acima, aviões de carga na base americana de Parnamirim Fields, em Natal). Segundo John W. Foster Dulles, em pouco tempo, o aeroporto foi o mais movimentado do mundo. Outros postos estratégicos norte-americanos foram estabelecidos em Belém (PA) e no arquipélago de Fernando de Noronha.
O ano de 1942 marcou uma virada da Segunda Guerra em favor dos Aliados. Na Batalha de Stalingrado travada dentro da União Soviética, o Exército Vermelho conteve o avanço alemão e no norte da África, os Africa Korps de Hitler estavam praticamente derrotados. Portanto, a hipótese de um ataque alemão ao Nordeste do Brasil, via continente africano, estava definitivamente descartada. Em 1944, o governo brasileiro enviou soldados para os campos de batalha na Europa, através da FEB.




O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), orgão responsável, entre outras coisas, pela censura aos meios de comunicação, atuou na divulgação de imagens positivas a respeito da participação do Brasil no conflito, mostrando que a agressão alemã teria uma resposta (nas imagens acima, dois cartazes de divulgação do DIP). 
A entrada do Brasil na Segunda Guerra gerou efeitos positivos sobre a economia, acelerando o crescimento industrial e o acúmulo de reservas cambiais, em função da compra de matérias-primas estratégicas por parte dos aliados, apesar das dificuldades de acesso às importações de máquinas e equipamentos. Segundo dados fornecidos por Paulo Brandi em seu livro já citado, entre 1939 e 1942 a produção industrial aumentou 3,9% ao ano e entre 1942 e 1945 essa mesma produção cresceu 9,4% ao ano! A indústria pesada não se consolidou, mas a perspectiva de entrada em funcionamento da siderúrgica de Volta Redonda poderia reverter isso. Em 1943, foi criada a Fábrica Nacional de Motores (FNM) para garantir a manutenção e a produção de motores, em função da falta de reposição dos mesmos durante a guerra. A escassez de petróleo estimulou o uso do gasogênio como substituto da gasolina, obtido por meio de um aparelho que transformava, por oxidação incompleta, a madeira ou o carvão no citado gás, que podia ser empregado nos motores a explosão (utilizado em automóveis). A entrada de capitais privados norte-americanos também se intensificou. O planejamento governamental saiu fortalecido, com a criação da Coordenação da Mobilização Econômica, uma espécie de superministério com poderes especiais de regulação da economia, que teve inclusive, a participação de empresários, entre os quais Roberto Simonsen. Ainda em 1942, foi criado o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), órgão subordinado à Confederação Nacional da Indústria (CNI) e mantido pela contribuição obrigatória das empresas.


Nesse contexto ocorreu o encontro dos dois presidentes descrito no início desta postagem (na imagem acima, o encontro entre Vargas e Roosevelt foi destaque da capa do New York Times, no dia seguinte, 29 de janeiro de 1943). Roosevelt ainda discutiu com Vargas a participação do Brasil na criação de um futuro organismo internacional, a fim de preservar e promover a paz mundial. Sim caro leitor, seria a futura Organização das Nações Unidas (ONU). Contudo, terminada a Segunda Guerra Mundial em 1945, as ditaduras "cairam de moda" e as movimentações no sentido de promover a democratização do país cresceram. Sem dúvida, o próprio governo norte-americano teve influência nessas movimentações e Vargas percebeu isso, tanto que, já no início de 1945, tentou se antecipar, acenando com uma liberalização do regime, eleições para o final daquele ano e anistia aos presos políticos. Tudo isso não impediu a sua queda, até porque os sinais de insatisfação partiram também dos próprios militares que participaram da campanha contra o Eixo. E a própria desconfiança em relação a Getúlio Vargas, o qual, ao mesmo tempo em que acenava em direção à normalização democrática, parecia articular, nos bastidores, a sua permanência.
Mas, em que pese o fim da ditadura do Estado Novo (1937-1945), o legado deixado por esses anos se manteve, isso sem nos referirmos a todo o arcabouço da legislação trabalhista, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) criada em 1943. Como avaliar esse legado de forma mais racional, independente de ter sido feito por um presidente-ditador? Quais realizações necessitam ser mantidas em prol do interesse do povo brasileiro? São questões que ainda estamos discutindo, setenta e quatro anos depois do encontro entre os dois presidentes...
Para saber mais: 



Recomendamos uma boa leitura introdutória da chamada Era Vargas (1930-1945) e de sua vida. Trata-se do trabalho do historiador Paulo Brandi, "Vargas: da vida para a história", da Zahar Editores, publicado em 1983 (imagem acima). Além de abordar aspectos interessantes da vida de Getúlio, o trabalho analisa as questões econômicas, políticas e sociais desse período fundamental da história brasileira e que ainda repercute em nossas vidas. 
Crédito das Imagens:
Foto do motorista do jipe: https://tokdehistoria.com.br/2014/02/10/1943-quem-foi-o-motorista-do-jipe-de-roosevelt-e-vargas-em-natal/
Imagem principal de Getúlio e Roosevelt no jipe e foto de Dutra, Getúlio e Góis Monteiro: Getúlio Vargas. Série perfis Brasileiros escrito por Boris Fausto. Cia. das Letras, 2006.
Foto de Osvaldo Aranha na Conferência do Rio de Janeiro em 1942, da capa do jornal Folha da Noite, cartazes do DIP, : Coleção Nosso Século 1930/1945,Abril Cultural, 1980, pags. 212, 218 e 211.
Charge dos três líderes aliados: The Pictorial History of World War II de Charles Messenger. JG Press, p. 126. 
Foto de Jefferson Caffery, Sumner Welles e Osvaldo Aranha em janeiro de 1942. Getúlio Vargas: biografia política escrito por John W. F. Dulles. Editora Renes, 1967.
Capa do jornal New York Times de 29 de janeiro de 1943:
http://sunnycv.com/steve/WW2Timeline/Europe02.html
Fotos da base americana em Natal (RN):
https://tokdehistoria.com.br/2013/09/30/fotos-de-parnamirim-field-na-segunda-guerra-mundial/
Fotos alternativas do encontro entre Vargas e Roosevelt:
http://www.dw.com/pt-br/brasil-relutou-at%C3%A9-entrar-na-guerra-ao-lado-dos-aliados/a-18426613

domingo, 24 de setembro de 2017

II Encontro Meio Ambiente e Dimensão Histórica no IEA-USP




Caro leitor, neste dia 25.9 estaremos no auditório do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo para o segundo encontro onde debateremos o Meio Ambiente e a Dimensão Histórica (o primeiro foi realizado em 2015, imagem acima). A partir da década de 1970, as questões envolvendo os efeitos da acelerada industrialização sobre o meio ambiente ganharam grande destaque mundial, sobretudo após a realização da Conferência de Estocolmo em 1972. Desde a década anterior, a temática ecológica e ambientalista começou a ser agregada ao trabalho de historiadores, sociólogos, antropólogos e economistas, ou seja, tornou-se um assunto pertinente às várias disciplinas da área de humanidades. 
O encontro em questão, diz respeito a disciplina de História, uma vez que, por influência das novas correntes historiográficas, sobretudo da Nova História, vários temas que até então não eram tidos como preocupação dos historiadores, passaram a integrar o espectro de estudos dessa disciplina (como o cotidiano, as mentalidades, a cultura, entre outros). Os assuntos relacionados com as questões ecológicas e ambientais também passaram a fazer desse repertório novo de temas. 
Na década de 1960, principalmente nos Estados Unidos, historiadores como Roderick Nash, Donald Worster e Warren Dean, entre outros, têm colocado a temática ambiental como foco dos seus trabalhos, ao lado dos europeus Keith Thomas, Emanuel le Roy Ladurie e Simon Schama. No Brasil, os historiadores José Augusto Drummond, José Augusto Pádua, Sandro Dutra e Silva, Janes Jorge, Paulo Henrique Martinez, Jó Klanovicz, entre outros, também têm produzido trabalhos de enorme qualidade e que se tornaram referencias na área da História Ambiental. A abordagem é fruto da evidente necessidade de inserção do meio ambiente nos vários aspectos envolvendo a sociedade, na relação desta com a natureza, aliás percebendo-se esta ultima como tendo a sua própria dinâmica e não como algo imutável, mesmo nos momentos em que não há a interferência direta do homem. Nessa nova abordagem, a História percebe a necessidade de romper com certas barreiras e postulados relativos a marcos históricos, como os balizamentos cronológicos, documentais, políticos e territoriais. Por exemplo, determinados aspectos relacionados com a natureza não podem ficar restritos a um único país ou a uma só configuração territorial. 
Por outro lado, ainda persistem alguns desafios para a abordagem historiográfica das questões sociambientais e de como promover essa integração do ponto de vista conceitual (epistemológico, para usar um termo mais especializado). Da mesma forma, o diálogo interdisciplinar também é um dos componentes dessa mesma abordagem. 
Enfim, todos os leitores deste blog estão convidados a participar, ou diretamente comparecendo ao local do evento (para isso, é preciso se inscrever no link indicado abaixo), ou via internet, pois o encontro será televisionado. Um detalhe, este que vos escreve também irá participar...

Quando:
dia 25.09.2017
Local:
Sala de Eventos do IEA,
Rua da Praça do Relógio, 109, Bloco K, 5º andar, Butantã, São Paulo.
Horário: das 9:30 às 12:00 horas e das 13:30 às 17:30 horas. 
Programação das Mesas Redondas: 
9h30 Conhecimentos Históricos e Ambientais: Possibilidades de Ampliação dos Campos Investigativos 
Aline Vieira de Carvalho (UNICAMP)
Paulo Henrique Martinez (UNESP)
Sílvia Helena Zanirato (USP)
12h00 Intervalo para almoço
13h30 Estudos Aplicados de história Ambiental: Casos e Descasos da Relação Sociedade e Natureza no Processo Histórico Brasileiro
Dominichi Miranda de Sá (FIOCRUZ)
Janes Jorge (UNIFESP)
José Jonas Almeida (USP)
Informações (inscrições para quem for ao local): goo.gl/yLVuEF
Telefone de contato: 11 3091-1678
Evento com transmissão em: http://www.iea.usp.br/ao vivo

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Os Caminhos do Anhanguera: Cidades Históricas de Goiás




Nesta postagem estamos propondo mais um roteiro histórico. Vamos percorrer o caminho do bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, em viagem que se constitui numa verdadeira aula de história e que ajuda a entendermos como se deu o processo de ocupação de uma vasta área de nosso território, da cidade de São Paulo até praticamente as bordas da Amazônia, passando pelo Centro-Oeste do Brasil. A cidade de Goiás Velho foi fundada por ele (na foto acima, a Igreja Nossa Senhora da Boa Morte, cuja construção teve início em 1762). Mas, cuidado! De qual Anhanguera estamos nos referindo? O pai ou o filho? Bem, a rota percorrida pelos mesmos coincide, mas a fundação da antiga cidade de Goiás é atribuída ao Anhanguera filho. Não é por outro motivo que uma das mais importantes rodovias paulistas leva o nome de via Anhanguera, pois a mesma segue esse caminho. 



A historiografia nacional promoveu nas últimas décadas uma revisão a respeito do mito do bandeirante (no quadro acima, de Calmon Barreto, a representação tradicional dessa figura) e de como o mesmo correspondeu, em grande parte, a uma construção histórica, promovida principalmente pelos estudiosos paulistas do início do século XX, no sentido de destacar a iniciativa desbravadora dos ancestrais da antiga capitania de São Vicente (nome do território que correspondia a São Paulo, no início da era colonial). A crescente exaltação a essa figura correspondeu, na mesma proporção, à ascensão política de São Paulo durante a Primeira República (1889-1930). 



Sem a menor dúvida, as bandeiras alargaram o território brasileiro, mas também fizeram as suas vítimas, os índios aprisionados para serem vendidos como escravos e a perseguição aos africanos rebeldes, que resistiam ao cativeiro refugiando-se nos quilombos (como mostra o quadro acima, de Calmon Barreto). A trajetória dos bandeirantes é permeada pela violência, inclusive contra os padres jesuítas, os quais, a sua maneira, protegiam os índios nas conhecidas missões. A referência aos mesmos, que nos é dada nos documentos das outras áreas do Brasil colonial, não é das melhores, sendo muitas vezes difícil diferenciá-los de simples assaltantes ou ladrões! Por sua vez, a escassa população paulista da segunda metade do século XVI e do século XVII era, em geral, arredia ao controle institucional, tanto por parte do governo português como também da Igreja Católica, sobretudo em relação aos padres jesuítas (missionários da Companhia de Jesus), que condenavam a caça aos índios (preagem ou apresamento) para utilizá-los como mão de obra, muito embora não adotassem o mesmo critério protetor com relação aos africanos. Se levarmos em consideração a afirmação do historiador Luiz Felipe de Alencastro, os jesuítas toleravam e até estimulavam a escravização dos negros, para que os colonos não tivessem que recorrer aos índios, os quais deveriam permanecer sob os cuidados dos padres jesuítas. 
De qualquer forma, foi a partir desses pioneiros do sertão que tivemos o mapeamento de uma boa parte do nosso território; a ocupação de áreas que se situavam a oeste, muito além dos limites do Tratado de Tordesilhas (que separava os territórios portugueses e espanhóis desde os tempos da Expansão Marítima do século XV); a descoberta de ouro e o estabelecimento de povoamentos, muitos dos quais deram origem a importantes cidades brasileiras. 



Pois bem, um desses bandeirantes (palavra que, mais tarde, virou sinônimo de paulista) foi Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera pai (na foto acima, a casa onde teria vivido o Anhanguera, em Santana do Parnaíba, próxima à cidade de São Paulo). O primeiro integrante da família Bueno a chegar ao Brasil foi um tal de Bartolomeu Bueno, apelidado de o "Sevilhano", uma vez que o mesmo era procedente da cidade de Sevilha, na Espanha e chegou ao Brasil em 1582. Lembramos ao caro leitor, que nessa época teve início a chamada União Ibérica (também conhecida como Domínio Espanhol) promovida no reinado do rei Felipe II da Espanha, que assumiu o controle da coroa portuguesa, ampliando ainda mais o Império Espanhol. A "união" durou de 1580 a 1640, período no qual intensificou-se a presença de espanhóis na capitania de São Vicente. Esse primeiro Bartolomeu Bueno agregou Ribeira ao seu nome, uma vez que exerceu a função de carpinteiro de ribeira. De seu casamento com a paulista Maria Pires, o Sevilhano teve sete filhos, um dos quais foi  Amador Bueno da Ribeira, conhecido como o "Aclamado", pois na época do fim da União Ibérica, em 1641, alguns moradores da pequena vila de São Paulo (muitos de origem espanhola) chegaram a lhe oferecer o título de "rei", que o mesmo recusou, mantendo-se fiel à nova Dinastia de Bragança, que restaurou a autonomia de Portugal. Mas, foi o neto do Sevilhano, o já citado Bartolomeu Bueno da Silva, o primeiro a receber a designação de "Anhanguera". 


Bartolomeu Bueno residia em Santana do Parnaíba (SP) e foi deste pequeno povoado que, por volta de 1670, partiu a bandeira organizada por ele e formada por 150 pessoas, entre elas o seu filho adolescente, Bartolomeu Bueno da Silva Filho (que designaremos como Anhanguera II), o qual teria entre 12 e 15 anos (no quadro acima, de Calmon Barreto, Anhanguera pai e Anhanguera filho). Nessa época, estavam sendo intensificadas as buscas (prospecção) de metais preciosos no interior da colônia, o que não significa que os bandeirantes tenham deixado de lado o apresamento dos índios, aliás algo que era praticado há três gerações pela família Bueno. A maior parte dos integrantes das bandeiras era formada por índios e mamelucos (resultante da mistura de índios com brancos) recrutados para o trabalho pesado (carregadores), como cozinheiros e também como batedores (por conhecerem bem o sertão).
O trajeto percorrido por essa bandeira passava pelo Oeste Paulista, Triângulo Mineiro e a terra dos índios "Guyazes". Não, Bartolomeu Bueno não foi o primeiro a atravessar essas paragens. Desde o final do século XVI, os paulistas percorriam essas trilhas em busca de índios ou ainda atrás do mítico lago Dourado (local onde haveriam possíveis riquezas ou uma civilização desconhecida), o qual nunca foi encontrado.


Bartolomeu alcançou o rio Araguaia onde encontrou outra bandeira, a de Antonio Pires de Campos, que havia percorrido o atual Mato Grosso e que solicitou a Bartolomeu que o ajudasse a conduzir os seus índios cativos para São Paulo. Ao iniciar o retorno para as terras paulistas, Bartolomeu Bueno da Silva percorre o curso do rio Vermelho (na foto acima, trecho do rio que corta a cidade de Goiás Velho) e alcança a aldeia dos índios "Guyazes", com a esperança de encontrar ouro, principalmente segundo se supõe, após ter visto algumas índias dessa tribo com enfeites feitos com o valioso metal. 



Reza a tradição que, certo dia, ao deparar-se com um grupo desses índios às margens de um ribeirão, Bartolomeu os interrogou sobre a possível localização das minas. Sem conseguir uma resposta clara, o bandeirante utilizou um artifício para obter o que queria: ameaçou atear fogo nos rios! E para dar prova da ameaça, lançou água sobre um vaso e pôs fogo ao líquido, que na verdade, era álcool (na ilustração acima, de autoria de Vallandro Keating). Ao verem as chamas, os índios imediatamente teriam gritado:
- Anhanguera, Anhanguera!!!!!
Em uma tradução aproximada, algo como "diabo velho" ou "espírito mau". Claro, existem dúvidas sobre tal história, mas uma coisa é certa, os índios que acabaram dando nome a toda aquela região, o hoje estado de Goiás, foram as grandes vítimas dessa incursão do Anhanguera. Os mesmos revelaram o local onde existiria o ouro de aluvião (retirado do leito dos rios), mas mesmo assim, foram aprisionados e marcados a ferro quente, como gado. O Anhanguera tinha costume de fazer isso para registrar que os índios eram sua propriedade! No trato com o gentio (índios), o Anhanguera seguia o procedimento de seu pai Francisco Bueno, filho do Sevilhano. Há quem diga, como o escritor paulista Pedro Taques, o primeiro a exaltar as façanhas dos bandeirantes ainda no século XVIII, que o estratagema de colocar fogo na "água" deveu-se a outro bandeirante, Francisco Pires Ribeiro... Pode ser que Bartolomeu Bueno o tenha imitado. O Anhanguera retornou a São Paulo e não empreendeu nova expedição ao sertão de Goiás. A data exata de sua morte é desconhecida.



A preocupação maior das expedições bandeirantes, no início do século XVIII, era o ouro da nova capitania das Minas Gerais, que acabava de ser separada de São Paulo (acima, a exploração do ouro de aluvião, em quadro de Calmon Barreto). Contudo, quando esta área foi quase completamente devassada, a atenção voltou-se para Goiás. E olhem quem foi o protagonista dessa nova investida, Bartolomeu Bueno da Silva Filho, o Anhanguera II, anos depois de ter participado da viagem com o pai. Em 1722, após obter autorização do rei de Portugal Dom João V para empreender a bandeira, o Anhanguera II seguiu em direção ao sertão goiano. Sem poder custear sozinho a empreitada, associou-se a alguns parentes, entre eles o seu irmão Simão Bueno, os genros João Leite da Silva Ortiz e Domingos Rodrigues do Prado, o cunhado  Manoel Pereira Calhamares e mais dois sobrinhos. Padres também participaram da expedição. 



O número de integrantes dessa bandeira é controverso, talvez algo entre 150 e 160 homens. Documentos posteriores citavam que a expedição contava também com 39 cavalos, 152 armas, 20 índios, um número não revelado de escravos e vários cachorros. As armas levadas eram as mais variadas possíveis, incluindo arcabuzes (arma de fogo com cano curto), arco e flecha (usado tanto por índios como por brancos), sabre curto (usado em combate corpo a corpo) e o mosquetão (arma de fogo comprida, que lembra a espingarda moderna, porém muito pesada). Para proteger o corpo contra as flechas dos índios era comum o uso do gibão, uma proteção de couro grosso que cobria do pescoço à cintura (como aparece na ilustração acima, de autoria de Vallandro Keating) e ainda da gualteira, uma proteção de pele de anta sobre a cabeça.
Há muitas dúvidas em relação à data certa da partida dessa bandeira, talvez junho ou julho de 1722. José Peixoto da Silva Braga (que depois desertou da expedição) deixou um relato do trajeto do Anhanguera II. O caminho de "Goyazes" começava em Jundiaí, seguindo para outra povoação chamada Mogi-Guaçu. Depois, partia-se em direção a uma área de clareiras no meio da mata (as "campinas", que deram origem à cidade do mesmo nome), avançando sertão adentro até o rio Grande (atual divisa entre São Paulo e Minas Gerais). Os bandeirantes andavam aproximadamente dez quilômetros por dia. Era comum alguns integrantes das bandeiras pararem no caminho e iniciarem a plantação de roças, para dar provisão aos que iam adiante e também aos que retornavam. Algumas delas, de acordo com o tipo de produto que era cultivado, acabaram dando nome a vilas e futuras cidades, como Batatais, no interior de São Paulo. Diante da possibilidade da fome, da sede, da ameaça dos índios, sempre ocorriam deserções, como a do próprio Silva Braga. 






O Anhanguera II jurava que só voltaria para São Paulo após ter encontrado as minas. Em função de sua teimosia e arrogância, teria sofrido uma ameaça de motim, na qual poderia ter perdido a vida, não fosse a presença do genro Silva Ortiz. O objetivo do Anhanguera II era voltar ao exato local em que seu pai encontrara os índios Goyazes. O bandeirante conseguiu, finalmente, alcançar o curso do rio Vermelho e o local da tribo Goyá, em 1726, onde foi fundada Vila Boa de Goiás, hoje Goiás Velho (acima, Vila Boa em desenhos datados de 1751). 
Vários arraiais (assentamentos) surgiram para explorar o ouro do rio Vermelho. O Anhanguera II ainda retornaria a São Paulo em 1728, pretendendo cobrar do governador a promessa de ser nomeado superintendente das minas de Goiás. Repare o caro leitor, que, naquele momento, todo esse território pertencia a São Paulo e estava sob a jurisdição do então governador Caldeira Pimentel. Este reluta em conceder ao Anhanguera II as honrarias prometidas pelo seu antecessor, as quais estavam amparadas em decisão régia. Exatamente por isso, o velho bandeirante acabou recebendo os títulos de capitão-regente e superintendente-geral das minas de Goiás tendo ainda, entre outros, o poder de conceder sesmarias (terras). O Anhanguera II não teve nenhum pudor em aderir ao nepotismo, nomeando vários parentes para os principais cargos, entre os quais o genro Silva Ortiz, o que causou ressentimentos entre os seus companheiros. Por outro lado, existem controvérsias a respeito das acusações que partiram do governador de São Paulo, Caldeira Pimentel, em relação ao Anhanguera II e que diziam ter sido este um mal administrador. Caldeira Pimentel chegou a acusar o bandeirante de tentar organizar um levante dos paulistas em Goiás, semelhante ao ocorrido nas Minas Gerais com a Guerra dos Emboabas. De qualquer forma, o Anhanguera II caiu em desgraça perante as autoridades de São Paulo e foi destituído dos cargos que ocupava em 1733, pelo novo governador Luís da Távora, o Conde de Sarzedas e sendo intimado a pagar uma enorme quantidade de impostos que estariam em atraso. Sem os seus antigos poderes e pobre, Bartolomeu Bueno da Silva Filho, o Anhanguera II, faleceu em Goiás Velho, no dia 19 de setembro de 1740. 



Em 1736, Goiás Velho foi elevada à condição de vila administrativa recebendo o nome de Vila Boa de Goyaz e ainda pertencendo à Capitania de São Paulo. Em 1748 foi criada a Capitania de Goiás e nomeado o seu governador, Dom Marcos de Noronha, o Conde dos Arcos, que chegou na região cinco anos depois  (na pintura acima, Vila Boa de Goyaz em 1803). 
Bem, vamos agora à nossa sugestão para um belo passeio histórico! O roteiro que estamos propondo segue aproximadamente o trajeto do Anhanguera II e portanto deve ser feito por via terrestre. Claro, o eixo é a rodovia que carrega o seu nome (e de seu pai): a via Anhanguera. Vale lembrar os rios que devem ter se colocado no caminho do Anhanguera: rio Jundiaí, rio Mogi-Guaçu, rio Pardo, rio Grande e o caudaloso Paranaíba (na atual divisa dos estados de Minas Gerais com Goiás). Entre São Paulo e o Triângulo Mineiro sugerimos uma parada para descanso, ou em Ribeirão Preto ou em Uberaba, pois estão situadas quase a meio caminho. 
Embora seja uma cidade que não está associada à bandeira do Anhanguera, Araxá, no Triângulo Mineiro, merece uma visita. A mesma têm a sua origem na fase final do ciclo do ouro (na década de 1790) quando os primeiros povoadores buscavam alternativas ao declínio da mineração através da pecuária. A cidade guarda algumas referências a esse período, embora o seu crescimento desordenado e sem maiores preocupações na preservação de suas construções históricas, tenha absorvido o legado de seu passado. A cidade é muito associada à figura de uma mulher, que adquiriu projeção social na região no início do século XIX: Dona Beja. Analfabeta e mãe solteira, ficou conhecida por seus muitos amores, a ponto de sua vida ter inspirado uma novela, na década de 1980 (a personagem foi vivida pela atriz Maitê Proença).


A sua antiga residência (foto acima) abriga um museu que, no presente momento, está fechado para reparos, sem previsão de abertura. 



Outro local interessante é a fonte Dona Beja, no Barreiro, local onde se acreditava que a conhecida personagem costumava se banhar (na foto acima, azulejos pintados representando a personagem na Fonte Dona Beja). 






Se puder, visite em Araxá o Museu Calmon Barreto, que abriga as obras do artista de mesmo nome. Trata-se de um pintor acadêmico de grande qualidade, formado na Escola Nacional de Belas Artes (RJ) e que trabalhou no setor de desenho e gravuras na Casa da Moeda (RJ). Calmon Barreto foi também um grande ilustrador. O ponto alto de seu trabalho como pintor são as "marinhas" (paisagens a beira-mar) que revelam o enorme repertório de cores de sua paleta (como nos trabalhos mostrados mais acima). As pinturas históricas dos bandeirantes, mostradas nesta postagem, são de sua autoria. No final de sua vida retornou para Araxá, onde faleceu em 1994.



Ainda em Araxá temos a Igreja de São Sebastião (foto acima) onde se encontra um pequeno Museu Sacro. Como podemos observar, a construção está requerendo manutenção e restauro. 
Mas, retomemos a trilha do Anhanguera. Em direção a Goiás pelas BRs 452 e 153, rodovias que se encontram bem cuidadas e seguras, acesse em Goiânia a rodovia GO-070, que leva à cidade de Goiás Velho, que já foi capital do estado do mesmo nome. A cidade é simples, pacata, acolhedora e acessível a todos os bolsos.


No centro histórico, um marco importante, o local onde se encontra a "Cruz do Anhanguera", uma réplica da mesma (a original está no museus das Bandeiras). O monumento é a porta de entrada do centro histórico de Goiás Velho.


Sugerimos começar o passeio visitando a Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte (na foto aérea cima, a Igreja da Boa Morte, do lado esquerdo, na bifurcação), cuja construção teve início em 1762 e concluída em 1779. A mesma abriga em seu interior o Museu de Arte Sacra e as obras de um grande artista barroco: o escultor Veiga Valle. O artista viveu no século XIX e foi uma figura de grande projeção social, em uma época na qual os afrodescendentes não tinham oportunidades na sociedade, que ainda era escravista. Sua obra, de grande qualidade, ainda é pouco conhecida fora de Goiás e reflete a existência de um Barroco tardio, posterior ao mineiro da época de Aleijadinho. Consideramos a obra deste artista tão significativa, que merece uma postagem a parte e que deverá ser feita em breve.




Seguindo adiante pela mesma rua do Museu de Arte Sacra alcançaremos a Praça Doutor Brasil Caiado, onde iremos encontrar o Chafariz de Cauda, construído em 1778 e destinado originalmente aos animais (nas fotos cima, o chafariz no início do século XX e atualmente).


Quase em frente ao chafariz, encontramos o casarão histórico que abriga o Museu das Bandeiras (foto acima). Originalmente a Câmara Municipal da antiga Vila Boa de Goiás e Cadeia (na parte térrea), cuja construção teve início em 1761 e concluída em 1766. Trata-se de uma visita obrigatória! 





As condições dadas aos presos até a época em que foi desativada, em meados do século XX, eram absolutamente abomináveis, tendo os mesmos que conviver com a sujeira (não havia banheiro), além de enfrentar a presença de ratos e baratas (nas fotos acima, o portão e a cela coletiva).


Os relatos dos próprios presos mostravam as condições deploráveis da prisão (como no bilhete de um detento, requerendo um tratamento melhor por estar doente, na foto acima).



Por outro lado, o Museu das Bandeiras guarda relíquias preciosas da época da exploração do ouro, como instrumentos de garimpo: a conhecida bateia e as balanças para a pesagem das pepitas de ouro (respectivamente, nas fotos acima).






Instrumentos para castigar escravos, móveis do século XIX e entalhes em madeira feitos para igreja (respectivamente nas fotos acima) compõem o precioso acervo do Museu das Bandeiras, que também conta com um arquivo de documentos disponível para a pesquisa historiográfica.


O Palácio do Conde dos Arcos, construído no século XVIII, serviu de residência para os governadores da antiga Capitania de Goiás. Ainda serve de casa aos atuais mandatários do estado, quando estão de visita pela cidade e possui um acervo de peças e mobiliário aberto à visitação.


Outro local interessante para visitação é o Instituto Bertran Fleury, que abriga um acervo de livros e documentos que pertenceram ao ensaísta e historiador Paulo Bertran, o qual deixou uma grande obra referente à história e ao povoamento de Goiás. Dentro do mesmo, existe uma aconchegante pousada (Pousada Dona Sinhá), instalada em um casarão do século XVIII (foto acima). Aliás, recomendamos a mesma pelo seu ótimo ambiente, localização e preço acessível.



Para que o visitante possa fazer lanches rápidos ou para experimentar o tradicional "empadão" goiano, a dica é o antigo Mercado Municipal, que foi completamente remodelado para abrigar pequenas lanchonetes e lojas de artesanato (nas fotos acima, o Mercado Municipal antigo e restaurado). Portanto, uma boa opção de compras!




Claro, o passeio a Goiás Velho não poderia ser concluído sem uma visita à casa da poetisa e escritora Cora Coralina (1889-1985), cujo nome verdadeiro era Ana Lins dos Guimarães Peixoto (nas fotos acima, a casa onde viveu nos seus últimos anos e a simpática rua). 
Desde a sua juventude, Cora demonstrava aptidão para a atividade literária, mas foi a partir de 1980, quando começou a travar contato com o também escritor Carlos Drummond de Andrade, que a autora ficou conhecida do grande público e da crítica literária. A sua consagração veio com o prêmio Juca Pato, como Intelectual do Ano, em 1983. A sua casa, construída no século XVIII, abriga um museu para preservar a sua memória e encontra-se exatamente como estava até os últimos dias de vida da escritora, apesar de ter sido atingida por uma grande enchente em 2001.


Segundo dizem alguns historiadores, Cora Coralina (foto acima) seria octaneta do Anhanguera II.





Esta postagem faz uma homenagem à grande escritora e poetisa, deixando para o caro leitor uma pequeno texto, escrito em 1961, onde notamos o grande talento de Cora ao referir-se a coisas tão simples, como o milho. A leitura poderá ser feita na própria caligrafia de Cora Coralina, pois se trata de um manuscrito da própria autora (na sequência acima, as três páginas do texto "Oração do Milho", escrito em 1961). 


Nosso destino final nessa jornada histórica é Pirenópolis, mais conhecida como "Piri" (na imagem acima, maquete do centro histórico). A sua origem remonta ao ano de 1727, quando ficou conhecida como Arraial de Nossa Senhora do Rosário de Meia Ponte. Contudo, alguns estudiosos apontam o seu surgimento em 1731. Portanto, trata-se de mais uma povoação constituída na fase de exploração do ouro em Goiás. Alguns de seus fundadores eram bandeirantes ligados ao Anhanguera II, entre eles Urbano do Couto Menezes. Algo a ser melhor pesquisado é a forte influência de algumas tradições ibéricas na cidade (da parte de espanhóis ou catalães), a começar pelo próprio nome, uma referência aos montes Pirineus que separam a Espanha da França (nome também dado às elevações e formações rochosas próximas à cidade) e o festival das Cavalhadas, os quais nos referiremos mais adiante.





A primeira atração que desponta é a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, construída entre 1728 e 1732 e restaurada após um terrível incêndio ocorrido em 2002. Apesar do delicado trabalho dos restauradores, o que temos é o "esqueleto" arquitetônico da igreja, que mesmo assim, manteve o seu aspecto imponente e de referência do centro histórico (nas fotos acima, a Matriz no início do século XX e hoje).


A Igreja Nossa Senhora do Carmo (na foto acima o altar da mesma) erguida pelos escravos em 1750, abriga o pequeno, porém valioso Museu de Arte Sacra.



O acervo contém obras de grande significação no Barroco goiano (nas fotos acima, uma imagem de Santo Emídio, do século XVIII de autor desconhecido e Santa Tereza D'Ávila do escultor goiano Veiga Valle, feita no século XIX). 


Outro bom exemplo da arquitetura barroca local é a Igreja Nosso Senhor do Bonfim, que requer uma boa caminhada para alcança-la. 



No trajeto, o visitante é recompensado pelos belos exemplos da bem cuidada arquitetura das casas em estilo colonial (imagens acima).




Finalmente, as Cavalhadas (fotos acima)! Realizadas anualmente no mês de junho, em uma arena especialmente mantida para o evento, as mesmas marcam uma lembrança da conhecida Guerra de Reconquista entre cristãos e mouros (muçulmanos), travadas na Península Ibérica nos últimos séculos da Idade Média. Acredita-se que o evento tenha tido a sua origem em 1826, por iniciativa do padre Manuel Amâncio da Luz. Uma advertência aos espíritos mais sensíveis com relação aos animais, a maioria dos cavaleiros utiliza esporas para conduzir os cavalos, algo que não deve ser muito agradável, nem para quem assiste e nem para os pobres animais. Talvez os organizadores do evento possam rever o uso desse primitivo dispositivo para o futuro.
Ainda se desejar, o visitante de Pirenópolis pode desfrutar de um banho natural em uma das inúmeras quedas d'água existentes nos arredores da cidade. Uma excelente opção para encerrar a jornada...
Como chegar (partindo de São Paulo):
Até Araxá (MG): rodovia dos Bandeirantes, rodovia Anhanguera e MG 262 (pouco antes de Uberaba). 
Até Goiás Velho (GO): BR 452 (a partir de Uberaba), BR 153 e GO-070 (a partir de Goiânia).
Até Pirenópolis (GO): BR-070 (partindo de Goiás Velho). 
Sugestão de dias:
1 dia em Araxá, 4 dias em Goiás Velho e 3 dias em Pirenópolis. 
Crédito das imagens:
Fotos de Cora Coralina e de seu texto "Oração do Milho": Cora Coralina. Catálogo produzido pelo próprio museu da escritora. 
Todas as demais imagens: acervo do autor.