O blog História Mundi reproduz um depoimento acompanhado de comentários da psicóloga (e também historiadora) Heloísa Lima (cuja página recomendo muito a visita) a respeito de um assunto delicado nas nossas universidades e no meio acadêmico: o suicídio. Casos recentes ocorridos na Universidade de São Paulo (USP) chamaram a atenção para o problema, o qual necessita ser compartilhado e discutido. O fato é revelador das circunstâncias e situações a que são submetidos os nossos jovens diante da necessidade de cumprir prazos, de atender aos orientadores e sobretudo, ter de se manter durante os anos de graduação, mestrado e doutorado sem o auxílio de bolsas, cada vez mais escassas. Muitos ainda tem que trabalhar e ao mesmo tempo realizar estudos que muitas vezes demandam uma carga enorme de leituras, ida a instituições (museus, jornais, arquivos públicos...) e viagens, as quais têm um enorme custo. Este que vos escreve sabe perfeitamente bem o que é isso. E o pior, sem encontrar uma perspectiva clara de trabalho após quase uma década de especialização (contando apenas mestrado e doutorado). Como mencionei antes, o problema não se restringe à pós-graduação, pois tenho relatos de casos na própria graduação. A situação tenderá a se agravar com o recente anúncio dos cortes de verbas e da possibilidade aventada por alguns candidatos a presidente de cobrar pela pós-graduação, mesmo aquelas oferecidas pelas instituições públicas.
Eis o texto na íntegra:
QUANDO A UNIVERSIDADE FAZ MAL (DEPOIMENTO)
"Eu queria ter os lábios sábios
E poder saber dizer palavras belas
E como um pintor achar, prender as cores
Entre flores luminosas, amarelas."
In: Desesperança - de Zeca Baleiro.
"Apesar de não ter tido um contato mais próximo com as seis pessoas cujos suicídios tive conhecimento durante minha formação acadêmica - e dentro da mesma faculdade - todos eram, de alguma forma, meus conhecidos.
Estudei na USP por mais de 12 anos, incluindo graduação, mestrado e doutorado. Durante este tempo, fui gestão de Centro Acadêmico, DCE e participei de laboratórios de pesquisa.
Então, em doze anos de formação, perdi seis conhecidos para o suicídio.
A cada dois anos a gente notava que algum colega simplesmente sumia. Aí, conversando com amigos dele, perguntávamos: 'E fulano...?' Era quando descobríamos que ele havia se matado há alguns meses.
Esses casos da USP não são divulgados. Mas todo mundo que ficou muito tempo lá e fez colegas ou amigos, fica sabendo de algum.
Desde que entrei, em 2005, soube de dois estudantes de graduação que se mataram, três de pós-graduação (sendo que um se suicidou dentro do laboratório onde desenvolvia seus estudos) e um professor.
É importante ressaltar que este grupo incluía gente que tinha boas notas, além de um bom desempenho acadêmico. A maioria não tinha bolsa de estudos. Apenas um contava com este recurso. E todos reclamavam da solidão, da falta de verbas e apoios.
Na academia, nós somos forçados à dupla jornada, especialmente quando não temos acesso à bolsa. O estudante que tenta obtê-la e não consegue, precisa trabalhar. Aí trabalha 40 horas da semana para se sustentar. Depois chega à faculdade e trabalha outras 40.
Assim sendo, não sobra tempo para amigos, para família, para nada. E se tiver bolsa, fatalmente sofrerá com a pressão no sentido de fazer bons relatórios.
Muitos institutos da Universidade não dão nenhuma prorrogação caso as experiências não adquiram resultados considerados 'satisfatórios'. Desta forma, a pessoa vê sua vida acadêmica permanentemente em cheque. E muita gente não consegue suportar a tensão.
O pior é que mesmo que você faça tudo "certo', de acordo com o esperado, a perspectiva de seguir trabalhando com pesquisa é bastante pequena. No Brasil, trabalhar na área de formação e pesquisa tem se tornado um luxo. O estudante, o pesquisador, que quiser dedicar sua vida para a ciência e para o conhecimento, vê seus sonhos, suas esperanças, sua vida material, suas amizades e relações familiares, sendo jogadas no lixo. E para quê?
Infelizmente, se ele não tiver uma espécie de senso de dever aliado a uma enorme tenacidade, se não contar com uma rede de apoio (familiar ou de amigos), fatalmente sucumbirá.
No meu caso, durante a graduação e o início do mestrado, minha rede foi o partido do qual fazia parte. A seguir, minha esposa e minha família.
Quase todo mundo que eu conheço na academia tem algum tipo de distúrbio mental, em geral causado pelo estresse. Mesmo os professores. Vivem em constante pressão, com risco de perder verbas de pesquisa, que sabem que é o que fará a diferença entre ajudar ou não seus alunos, concluir ou não seu projeto.
Afora este cenário perturbador, percebo que existe também uma questão envolvendo a famigerada competitividade acadêmica e que é muito mais complexa do que imaginamos. No meu ponto de vista este tema está mais ligado à falta de perspectivas do que propriamente ao problema de vaidade e disputa em si.
Vou tentar me explicar.
(1) Acho que a competitividade entre alunos é mais um mito do que uma realidade. Se formos olhar com cautelas, são poucos os casos de roubo de artigos, passagens de perna, etc;
(2) A relação entre alunos que participam de laboratórios e grupos de pesquisa, apesar de eventuais rivalidades acadêmicas (quem tem mais artigo, quem tem melhores notas), costuma ser de cooperação. Se você folhear os agradecimentos das dissertações e teses, a maioria agradece a colegas que os ajudaram;
(3) No entanto, a competitividade como mito tem impacto negativo nas pessoas. Isso porque os estudantes passam a desconfiar até dos colegas que os estão ajudando, com medo de uma traição futura que pode nunca ocorrer. Daí, no lugar de formar uma rede de apoio, o aluno cria uma espécie de paranoia e começa a acreditar que todos aqueles que se aproximam dele, na verdade, querem sabotá-lo. Isso, sem dúvidas, desanima qualquer um;
(4) O problema da competitividade, na verdade, não é entre alunos. É entre linhas do estudo. Em quase todas as áreas temos, no Brasil, o seguinte fenômeno: existe uma linha majoritária que está nos conselhos de avaliação de bolsas, bancas de ingresso, etc. E existe uma linha minoritária (às vezes duas) principal que fazem oposição à linha majoritária. Assim, na economia, por exemplo, temos os ortodoxos e os keynesianos disputando, seguidos pelos marxistas teóricos. Toda vez que um estudante submete um projeto, existe grande chance de que seja avaliado por um membro da linha rival. Isso se acirra por conta das bolsas serem limitadas. O resultado é que só tem bolsa mesmo para as duas linhas principais - e isto depende da sorte;
(5) Essa competição entre as linhas são reproduzidas dentro de cada unidade das universidades, criando espécies de torcidas organizadas. Alunos deixam de falar com colegas por conta de qual linha pertence;
(6) Se você é de uma linha minoritária que sequer tem apoio de qualquer uma das duas ou três principais, como é o meu caso, suas perspectivas na universidade implica a eterna luta por afirmação. Mesmo depois de se doutorar, o aluno sabe que passará alguns anos desempregado, pois as bancas de avaliação dos concursos certamente darão prioridade para estudantes das linhas majoritárias;
(7) O próprio governo e a sociedade brasileira acabam adotando mais ou menos o pensamento da linha majoritária. Isso faz com que todos os projetos que não estejam de acordo com essa linha sejam sumariamente descartados como hipótese de aplicação;
(8) O problema é que, na academia, uma linha não é majoritária por possuir maior número de apoios ou melhores argumentos. Na verdade, ela é majoritária por possuir adeptos em postos chaves de avaliação. O que significa que a linha majoritária, na verdade, é seguida apenas por uma minoria. Consequentemente, cria-se uma casta, uma elite, que fica com todas as bolsas e financiamentos, enquanto a maioria fica desamparada;
Hoje, encontro mais facilidade de participar em pesquisas internacionais do que de ter reconhecido meu trabalho aqui no Brasil.
Algo similar acontece em todos os âmbitos dentro da universidade.
Suicídio, enfim, é um grande tabu na nossa sociedade. Muitas famílias não querem que seja revelado e temos que respeitar essa vontade. A tragédia fere todo mundo, mas sem dúvida são os familiares e os amigos íntimos os que mais sofrem.
E o país inteiro perde."
Apoena C. Cosenza é pesquisador do laboratório de Economia Política e História Econômica (LEPHE) e membro de sua coordenadoria na função de Secretário-Auxiliar do Presidente da Coordenadoria.
COMENTÁRIOS
O pesquisador acima nos oferece um comovente relato que desvela uma profunda sensibilidade e impressionante lucidez diante do contexto apresentado.
Sem dúvida nenhuma, a dita "vida acadêmica" no Brasil, hoje em dia, é uma fonte inesgotável de sofrimento.
No início de 2017, a chocante notícia de que, entre os alunos da Faculdade de Medicina da USP, foram registrados seis episódios de tentativas de suicídio, sem contar o ato de um doutorando que tirou a própria vida dentro do Instituto de Ciências Biomédicas, a comunidade científica parecia ter acordado para um problema muito pouco discutido e menos ainda veiculado.
Mas os eventos continuaram ocorrendo e, aparentemente, nenhuma investigação séria e significativa foi feita ou publicada desde então.
Na semana passada, uma médica do Hospital Universitário (localizado dentro do campus da USP e que vive hoje uma das piores crises desde sua criação, quando chegou a ser uma referência de excelência no atendimento) também se matou ingerindo doses letais de medicamentos.
E não estamos considerando sequer as ocorrências em que a família escolhe esconder a natureza da morte ou aquelas implicando as demais universidades brasileiras, que parecem mesmo não se importarem com a saúde mental de seus integrantes.
É certo que o número de estudantes (e também professores e funcionários) que revelam problemas na área mental, tem aumentado muito e sem nenhum tipo de controle ou auxílio.
É indiscutível a existência de uma insuportável pressão sobre os que saem da universidade com enormes dívidas e/ou desempregados e sem perspectiva de uma colocação no mercado de trabalho.
É profundamente alarmante que o número de suicídios dos membros das universidades tenha aumentado tanto nos últimos tempos. O estigma em relação à estas questões parece ser também bastante forte dentro do corpo docente.
É preciso que ações sejam tomadas para impedir que as pessoas cheguem ao nível de desespero que as remeta a tirarem suas próprias vidas como única solução. Em muitas situações, o suicídio é evitável. E sem dedicação, seriedade, recursos e financiamento adequados, estas taxas não serão reduzidas.
Ainda que alguns gestores insensíveis teimem em reafirmar a ideia absurda de que saúde mental não é atribuição da universidade, o bem-estar dos membros ativos dela não pode se transformar numa reflexão perigosamente tardia, sob pena de aniquilarmos a formação das próximas gerações.
Fundamental esclarecer que estão envolvidos, neste tipo de adoecimento, tanto causas individuais, quanto biológicas e ambientais. Assim, a universidade tem obrigação de criar e oferecer um espaço saudável, considerando que não existem dúvidas de que relações tirânicas, ambiente opressivo, cargas horárias desumanas, assédios e abusos constantes junto à uma total ausência de suporte, representam riscos evidentes à saúde mental do sujeito que habita este meio.
Os estudantes chegam às universidades já ansiosos e preocupados com o nível de cobrança acadêmica e com falta de esperanças num horizonte mais promissor. Isto significa, em suma, nenhum tipo de crença no futuro.
A notícia de que o governo do estado de São Paulo passará a cobrar pelos cursos de pós-graduação e de que o MEC suspenderá as bolsas de estudos, deve aprofundar o desespero de quem ainda acreditava no desenvolvimento científico e tecnológico do país.
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Crédito das imagens:
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