É uma imagem atual, mas já podendo ser considerada histórica. As covas rasas abertas no maior cemitério da América Latina, o de Vila Formosa na zona leste de São Paulo, tomaram quase metade da primeira página do conhecido jornal estadunidense The Washington Post, na edição do último dia 2 de abril. Infelizmente, essa fama repentina do cemitério deve-se à pandemia do coronavírus ou covid-19 como é chamado pelos cientistas. Mas a necrópole (palavra grega que significa "cidade dos mortos"), termo mais técnico e sofisticado para cemitério, já ostentava números que a tornaram famosa aqui e no exterior. Os seus 763000 m² a colocam como a segunda maior do mundo, abaixo apenas do cemitério islâmico de Wadi-us-Salaam (Vale da Paz na tradução literal) no Iraque, que existe há mais de 1400 anos. São mais de 100 mil túmulos e algo equivalente em ossários (também chamados de "gavetas", pois são organizadas de forma vertical). No total, mais de 1,5 milhão de sepultamentos já foram feitos na necrópole de Vila Formosa, desde a sua fundação em 1949. No ano de 1976, o cemitério sofreu uma ampliação, o que levou ao surgimento do Formosa II, quando adquiriu o tamanho que ostenta hoje. Atualmente (mas, antes da pandemia do coronavírus) são realizados em média 275 sepultamentos mensais ou algo em torno de 70 sepultamentos diários.
A necrópole é conhecida também por abrigar os mortos de origem mais humilde, ou as classes C, D e E, de menor renda. Daí o predomínio das covas rasas (imagem acima), exatamente as que aparecem na capa do The Washington Post. Em outros cemitérios da cidade de São Paulo, como Araçá e Consolação, predominam os mausoléus e túmulos familiares, geralmente dos tradicionais clãs paulistanos. Portanto, existe um acentuado recorte social na maior metrópole brasileira até mesmo para a ultima morada de seus habitantes.
O cemitério da Vila Formosa também guarda as suas histórias. Por exemplo, a de uma menina brutalmente assassinada aos 5 anos de idade, chamada Débora Campo de Oliveira. No início da década de 1980 ela foi morta e esquartejada pela própria vizinha, que sentia ciúmes do marido, por este tratar a criança como se fosse filha. Seu túmulo (foto acima) é ponto de peregrinação e a mesma é tida como "santa" pelos populares que visitam o local. Muitos afirmam terem alcançado graças devido à intervenção da menina. Curioso é que em outras necrópoles da capital paulista também encontramos essas figuras tornadas "santas", mesmo naquelas não tão "populares". É o caso de Felisbina Muller, que faleceu em 1938 vítima das agressões do marido, no cemitério da Quarta Parada e de Antonio da Rocha Marmo, falecido em 1930 aos 12 anos, vítima de tuberculose, no cemitério da Consolação. Há também casos estranhos e pitorescos na Vila Formosa, como o de um indivíduo que foi encontrado deitado dentro de uma cova e perguntado sobre o que fazia ali, respondeu que desejava ficar para sempre ao lado do irmão, já enterrado no local. Ou ainda de uma mulher que em 2010 cometeu suicídio diante de um jazigo de indigentes, ingerindo veneno de rato.
Nos "anos de chumbo" da ditadura militar, entre 1969 e 1974, pelo menos 11 presos políticos assassinados pelos órgãos de segurança do governo vieram parar nessa necrópole, com identificação adulterada, segundo apurou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) em 2014. Entre os que estiveram sepultados lá, embora temporariamente, estava o guerrilheiro Carlos Marighella, ex-integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e líder da Ação Libertadora Nacional (ALN) grupo de oposição armada à ditadura, assassinado por policiais de São Paulo em 1969.
A necrópole de Vila Formosa possui a quarta maior área verde do município de São Paulo (como mostra a imagem acima) e por isso já foi alvo da especulação imobiliária. Em 1986, na gestão do prefeito Jânio Quadros, chegou a ser anunciado um plano de loteamento do local para fins residenciais, que ficou conhecido como "Projeto Poltergeist", em referência ao filme de terror estadunidense, onde uma família é assombrada por espíritos que estavam enterrados no terreno da residência. A ideia não saiu do papel. Mais recentemente, em 2015, a administração do prefeito Fernando Haddad chegou a projetar a criação de um parque e uma área de proteção ambiental, uma vez que, como registramos acima, o cemitério dispõe de um enorme espaço verde. Algo que poderia ajudar até na conservação do próprio cemitério. Mas o plano não foi adiante nas gestões posteriores, as quais projetaram a privatização dos cemitérios de São Paulo.
O atual prefeito, Bruno Covas, alegou em entrevista concedida no momento em que esta postagem estava sendo redigida, que essas covas rasas que aparecem no jornal estadunidense, são abertas todos os anos após o termino do período das chuvas, um procedimento normal, não tendo relação com a pandemia do coronavírus. Devemos lembrar que é praticamente certo que os casos da doença estão subnotificados, em função do atraso nos testes para detectar o covid-19, portanto não condizem com a realidade do momento. Há informações na mídia de que o cemitério da Vila Formosa já se encontra com um movimento de sepultamentos bem acima do normal.
Talvez, passada a pandemia, os gestores municipais pensem em um aproveitamento adequado dessa área e que a mesma não seja apenas o "cemitério dos pobres". Este que vos escreve tem a sua avó materna, dona Sebastiana do Amaral, como uma das ocupantes dessa gigantesca necrópole, em uma gaveta (na foto acima, os ossuários ou gavetas do cemitério), que eu mesmo não sei mais localizar nesse gigantesco labirinto de ossos...
Crédito das imagens:
Capa do The Washington Post:
https://www.facebook.com/fernando.morais.1612
Demais imagens:
https://www.terra.com.br/notícias/brasil/cidades/
Bela reportagem que chama atenção sobre um tema que muitas vezes passa despercebido e que precisa de um pouco mais da preocupação de todos principalmente o poder público pela sua importância no dia a dia de cada um,a começar pela segurança manutenção e limpeza. Parabéns por mais uma excelente prestação de serviço.
ResponderExcluirObrigado Silvio!!!!!!!!
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