terça-feira, 16 de março de 2021

A última entrevista de Luís Carlos Prestes


A mais importante liderança comunista de toda a história do Brasil, o capitão Luís Carlos Prestes (1898-1990), concedeu uma entrevista para a revista Cadernos do Terceiro Mundo no início de 1990 (possivelmente em fevereiro), pouco antes de sua morte, ocorrida em 7 de março daquele mesmo ano (na foto acima, Prestes em 1945). Trata-se da sua derradeira contribuição como militante da luta dos trabalhadores em prol de um país justo e igual. O "Cavaleiro da Esperança" como ficou conhecido, contava com 92 anos e ainda demonstrava a sua enorme lucidez e firmeza de princípios que caracterizaram a sua trajetória política, desde os tempos da Coluna Prestes (na segunda metade da década de 1920) na luta contra os coronéis (classe dos grandes proprietários de terra) da Primeira República (1889-1930). Sua firmeza também pode ser observada com relação às críticas e observações da realidade brasileira, que em muitos aspectos são atuais, como a fraca organização do nosso proletariado e a atuação superficial dos partidos ditos de esquerda, no sentido de fortalecer tal organização.

Nessa entrevista, Prestes tece várias considerações a respeito do cenário político do Leste Europeu, que vivia naquele momento (final da década de 1980) a turbulência desencadeada pelas reformas do então líder soviético Mikhail Gorbatchev, designadas pelos nomes de perestroika (a reestruturação econômica) e glasnost (transparência política), as quais estavam sendo executadas na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O Muro de Berlim, que separava a Berlim comunista da Berlim capitalista, já havia caído e nos países comunistas da Europa Oriental os antigos governantes leais às orientações de Moscou começavam a ser substituídos por lideranças reformistas. No ano seguinte ao da entrevista, a própria União Soviética deixou de existir, fato que Luís Carlos Prestes não chegou a assistir e nem a prever. Aliás, quem previu? Hoje, Gorbatchev é visto com enorme desconfiança por parte daqueles que defendem o regime socialista e o legado soviético, de ter sido uma liderança de pouca envergadura e que não foi capaz de empreender o programa de mudanças mantendo a organização das antigas repúblicas soviéticas. Em várias declarações recentes, o próprio Gorbatchev têm ressaltado que não era necessário o fim da União Soviética para o encaminhamento das reformas. 


Naquela ocasião, no entanto, Prestes via Gorbatchev como aquele que poderia conduzir mudanças, as quais implicariam na correção dos rumos do bloco comunista, por meio de um retorno aos ideais de Vladimir Lênin (1870-1924), líder da Revolução Russa. De acordo com Prestes (acima, em um desenho de Portinari de 1952), um desses ideais era o de promover a democracia socialista. Josef Stálin (1878-1953), sucessor de Lênin, teria se desviado desses ideais, por meio de um governo de força, de mudança radical e de imposição dogmática do Estado como gestor único de toda a economia. Prestes afirmava que a coletivização ampla da terra foi um erro e que a pequena propriedade poderia conviver perfeitamente dentro do socialismo, da mesma forma que a pequena indústria. A revolução socialista significava também aproveitar aquilo de útil que o capitalismo criou e que deveria ter sido incorporado ao socialismo.


Este que vos escreve conheceu pessoalmente Luís Carlos Prestes (acima, na época da Coluna em 1928) e ouviu de sua boca a afirmação de que "Stálin foi um louco". Depois de condenar historicamente o estalinismo (que Prestes não confunde com socialismo), o velho líder comunista ressaltou a confiança no avanço em direção ao socialismo, como pensado por Lênin e na vigência do Pacto de Varsóvia (a aliança militar dos países comunistas, que se contrapunha à OTAN, liderada pelos Estados Unidos). Aliás este último ponto foi várias vezes assinalado por Prestes, pois a ausência do Pacto de Varsóvia poderia significar a volta dos anseios expansionistas da Alemanha Ocidental (que era capitalista, enquanto a Alemanha Oriental era comunista) em direção ao Leste Europeu, sendo portanto, uma ameaça aos países da região. Em função disso, o entrevistado acreditava piamente que essa aliança ajudaria esses países a não se desviarem do socialismo. Como sabemos, o Pacto de Varsóvia se dissolveu em 1991 e muitos dos antigos membros do bloco comunista aderiram à OTAN, hoje um bloco associado aos interesses geopolíticos estadunidenses. O curioso é que o grande obstáculo atual à expansão da OTAN é a própria Rússia, herdeira maior da antiga União Soviética. 

Com relação ao Brasil, como já assinalamos, muitas das criticas de Luís Carlos Prestes ainda são pertinentes. O país não teria uma tradição consistente na formação dos partidos políticos, que sempre surgiram guiados por conveniências momentâneas e não por ideias. Uma consideração especial ao Partido dos Trabalhadores (PT) e à sua liderança mais conhecida, Luís Inácio "Lula" da Silva. Para Prestes, o PT apesar de agregar uma quantidade razoável de militantes operários, não educava as massas na ideologia do proletariado, no marxismo. Prestes considerava Lula um operário talentoso, mas que precisava ler e estudar mais o pensamento marxista-leninista, a fim de que se tornasse uma liderança verdadeiramente revolucionária. Rompido com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), nos últimos anos de vida Prestes declarou voto em Leonel Brizola, do Partido Democrático Trabalhista (PDT), inclusive na eleição presidencial de 1989, a primeira após a ditadura militar. 



Enfim, uma entrevista feita no calor da hora das transformações pelas quais o mundo passava no final da década de 1980, nos momentos finais da Guerra Fria (polarização entre capitalismo e comunismo) e de seus reflexos aqui no Brasil. Claro, como sempre deixaremos ao leitor as conclusões (acima, Prestes em um desenho de Álvarus de 1929). Mas me permito antecipar algumas observações. O marxismo é um instrumental indiscutível de analise da realidade moderna, mas que tem sido nas últimas décadas negligenciado. Não há outra teoria, pelo menos por enquanto, que melhor tenha dissecado a engrenagem do sistema capitalista do que a de Karl Marx (1818-1883) e de seus seguidores. Da mesma forma que é impensável estudar a formação da vida no planeta sem Charles Darwin ou em querer entender a mente humana sem Sigmund Freud. Isso para não entrarmos no campo da Física com Albert Einstein. Apesar disso, conceitos como luta de classes, ideologia, imperialismo e revolução foram simplesmente retirados dos compêndios e teses acadêmicas, por razões não muito bem formuladas, uma vez que os fenômenos aos quais se aplicam estão aí, aos nossos olhos. Outros postulados teóricos, muitos dos quais válidos e pertinentes, acabaram por colocar de lado o legado marxista que vai às raízes das transformações históricas e que tem uma abrangência interpretativa enorme, embora muitas vezes utilizado de modo superficial e dogmático, aliás como assinala Prestes em sua exposição. 

A entrevista aqui reproduzida foi conduzida pelo editor Procópio Mineiro da revista Cadernos do Terceiro Mundo. As observações explicativas entre parênteses são nossas, bem como as fotos. Sem mais delongas, vamos a ela: 


Como é possível explicar a crise atual dos países europeus?

Stálin foi um dirigente de grande prestígio. Teve um cargo de dirigente, de secretário-geral do Partido (Partido Comunista da URSS) e presidente da União Soviética durante muitos anos. Teve, pois, uma influência muito grande. Assim, esse período ficou conhecido por nós, comunistas, como estalinismo, que foi a orientação adotada por ele. Na época, nós o conhecíamos como secretário do partido, e, internacionalistas que éramos e somos, nós o apoiávamos. Hoje, porém, estamos convencidos, com as informações que dispomos, de que o estalinismo cometeu muitos erros na aplicação do marxismo. 

Que tipos de erros de interpretação? 

Em primeiro lugar, ele negou totalmente o capitalismo. Stálin entendeu que o socialismo precisava negar totalmente o capitalismo. Entendia que o socialismo, do ponto de vista dialético, era a negação completa do capitalismo. Dialeticamente, o socialismo prevê o aproveitamento de uma parte do capitalismo, a parte boa do capitalismo. A transição social de uma sociedade a outra prevê a conservação na sociedade nova de parte da orientação da sociedade anterior e a negação da outra parte. O processo dialético é isso. A dialética não é a negação total do passado, mas uma transição, a passagem de uma etapa a outra. Stálin tinha uma concepção da dialética que era sectária, extremista, que via o socialismo como negação absoluta do período capitalista, quando não é isto. Era um erro. Por outro lado, Stálin adotou à frente do Partido determinadas posições que se revelaram falsas. Sobre a agricultura, por exemplo. Ele queria toda a agricultura coletivizada. Não é possível, na prática. Há outras formas de exploração compatíveis com o socialismo que não seja a coletivização. Esta forma determinou que as kolkhozes, as unidades coletivizadas, abarcassem massas imensas, um excesso de gente, para cuja administração se precisava de uma burocracia tremenda. E a burocracia, como sempre ocorre, traz o privilégio, traz a injustiça. 


E na indústria, o que ocorreu? (acima, Prestes em 1934)

Para a indústria, por outro lado, ele levantava a bandeira da estatização. Toda a indústria deveria ser estatal. E há muitos setores industriais que, preferivelmente, não devem ser estatais, mas ramos livres. Nos serviços, igualmente. Aquelas orientações equivocadas levaram a resultados errôneos, que só começaram a ser revistos após a morte de Stálin e, principalmente, agora sob a liderança de Mikhail Gorbatchev, que está trazendo modificações muito profundas para a orientação social, política e econômica da União Soviética. O que houve foram erros na aplicação do marxismo. Aquilo não era o marxismo. Muitos confundem, portanto, o estalinismo com o socialismo. Aquilo não era o socialismo, mas a negação do socialismo. Isto, porque é inerente ao socialismo a democracia. Não pode haver socialismo sem democracia. Não havendo liberdade, não havendo democracia, não havia, portanto, propriamente socialismo. O regime socialista está, na verdade, sendo construído agora na União Soviética, sob uma tendência inteiramente nova, que vem sendo defendida pelo atual governo soviético. E a nova orientação se baseia, de início, na democracia, na verdade, isto é, na glasnost, isto é, a transparência, que é a verdade. É necessário dizer ao povo a verdade. Lembro que, no período em que vivi na União Soviética (1971-1979), notei como os livros que eram dados à juventude não ensinavam a verdade sobre a história da União Soviética. Eram deturpados. À juventude deve-se ensinar a verdade. Se você não sabe a verdade histórica, o passado, não pode calcular nem prever o futuro. Você vai partir de informações e premissas totalmente falsas do processo. Era um dos erros que se cometiam. Agora, a glasnost veio para dizer a verdade ao povo, foi uma das primeiras medidas adotadas pelo camarada Gorbatchev. Mostrar a realidade, deixar os jornais falarem franco, dizerem a realidade.

Ao lado da glasnost, veio a perestroika. Qual o sentido dessa transformação? 

A perestroika é a reconstrução do país, a reestruturação, com base em princípios efetivamente marxistas, deixando de lado o marxismo de Stálin, que era apenas estalinismo, que era falho, soluções errôneas. O objetivo, portanto, é substituir aqueles princípios por orientações realmente marxistas, de acordo com a realidade e a objetividade histórica. Ou seja, a perestroika trabalha sobre a realidade objetiva do país. Esta é a linha que está sendo retomada na União Soviética e no campo socialista em geral. É claro que se trata de um processo complexo, muito complicado, basta ver o que está ocorrendo no dia a dia. Alguns países do Leste Europeu vivem situações de grande perturbação, com movimentação das massas, e agora precisam entrar em ordem, reorganizar a vida. 

Este processo, que envolve grande agitação social, não ameaça o socialismo, como informam os jornais ocidentais?

Todos esses países tem um objetivo: o socialismo. Nenhum deles luta contra o socialismo. Outro fator notável neste processo é que nenhum deles renuncia ao tratado de Varsóvia (Pacto de Varsóvia), que significa a unidade com a União Soviética. Precisam do apoio soviético. São países cujos territórios pertenceram à antiga Alemanha. Sem apoio soviético, podem vir a sofrer reivindicações territoriais, porque a Alemanha Federal (antiga Alemanha Ocidental) é mais forte. É o aliado soviético que garante a integridade territorial deles.



Um dos aspectos levantados pelos estudiosos nos assuntos soviéticos é que o despertar do sentimento nacionalista no bloco do Leste Europeu teria como conclusão o rompimento desse relacionamento especial com Moscou. O sr. nega essa possibilidade? (acima, Luís Carlos Prestes sendo diplomado senador pelo PCB em 1945)

Ainda não se falou em fim do Pacto de Varsóvia. Pelo contrário, todos necessitam do Pacto de Varsóvia, que serve para eles como uma garantia de estabilidade. Não há perigo nesse terreno. O que se especula é sobre o abandono do marxismo. Mas, o que ocorre é uma volta ao marxismo, uma volta ao leninismo, podemos dizer. As lições de Lênin foram abandonadas por Stálin e seus seguidores. Nos sete anos a que sobreviveu à Revolução de Outubro, pois veio a falecer somente em janeiro de 1924, Lênin deixou grandes ensinamentos sobre como dirigir o Estado socialista que ia se afirmando. Em determinados momentos, até mesmo como retornar ao capitalismo. Quando a União Soviética atravessou o momento difícil da guerra civil contra a burguesia e a aristocracia - uma luta muito dura - Lênin teve de adotar uma série de medidas disciplinares e fiscais e não vacilou em tomar medidas de cunho capitalista, transitórias, mas necessárias para assegurar a estabilidade do momento. Era o lema de dar um passo atrás, para depois dar dois passos à frente. Foi uma grande lição. Lênin mostrou sempre uma grande flexibilidade na aplicação do marxismo. Isto, porque o marxismo é a negação do dogmatismo. Marxismo não é dogma. É a ciência que se aplica a determinada realidade. Se a realidade muda, é preciso mudar a aplicação. O marxismo não é uma ciência que impõe soluções. As soluções dependem das condições concretas de cada momento. Num país aplica-se de uma forma, em outro, a maneira será diferente, dependendo da situação concreta de cada um. Tal flexibilidade Lênin possuía na aplicação do marxismo: ele era até audacioso nesse processo. Se precisasse tomar medidas que pareciam um retorno ao capitalismo, ele as adotava, sem hesitar. Sabia que seria um passo transitório para manter a estabilidade, seja na política, seja no desenvolvimento econômico do país. Tal ensinamento foi abandonado por Stálin e seus seguidores. Só agora, com Gorbatchev, se retoma aquela política de Lênin. Toda a política de Gorbatchev mostra esse retorno ao leninismo, nunca o abandono do socialismo e retorno ao capitalismo, como tenta insinuar a burguesia. Trata-se da retomada do marxismo, sem os desvios estalinistas. 

É notável que, apesar do engessamento do marxismo imposto por Stálin, sempre sobreviveu um pensamento marxista criativo e contestador daquela situação. A que atribui esse vigor?

Ao marxismo. O marxismo não é dogma, é uma ciência que se aplica à realidade objetiva de cada momento. Não se pode fazer no Brasil a aplicação do marxismo, se não se fizer um exame objetivo da realidade brasileira. Só este exame indica o que se fazer, até o ponto que se pode ir, que passos podem ser dados. Não fazer isso, agir dogmaticamente, esse foi o erro de Stálin. Ele queria criar o socialismo do zero. Mas, o socialismo surge em consequência da evolução do capitalismo. É o capitalismo evoluindo que leva ao socialismo. O processo econômico do capitalismo, a medida que ele se desenvolve, desemboca no socialismo. Não se pode precipitar isso, nem desconhecer a realidade objetiva que leva para lá. A lei fundamental do capitalismo, elaborada por Marx, indica que o capitalismo, à medida que se desenvolve, determina a acumulação da riqueza nas mãos de uma minoria cada vez menor e a miséria para massas cada vez maiores. Esta é a evolução do capitalismo. São as massas miseráveis que se transformam em coveiras da burguesia, devido à miséria cada vez maior. É a lição de Marx. 



O processo de acumulação é um velho conhecido nosso, aqui no Brasil. (acima, Prestes senador em 1946)

Sim, veja no Brasil, a riqueza vai toda para as mãos dos monopólios. A burguesia brasileira que ganha dinheiro é aliada dos monopólios, caso contrário não ganharia. Ermírio de Moraes é aliado dos monopólios, o que explica como ganha dinheiro.

Além de ter seus próprios monopólios...

É lógico, é evidente. É aquela lei da evolução do capitalismo: crescente concentração da riqueza em mãos de poucos e difusão da miséria para massas cada vez maiores. É muito claro o quadro brasileiro: basta comparar os lucros dos monopólios e qual a intensidade da miséria das massas. É um quadro inerente ao capitalismo, é uma fatalidade histórica do capitalismo, não pode haver capitalismo sem a ocorrência dessa lei. Não se trata do caráter dos indivíduos. Não são os indivíduos que são maus: o regime capitalista é que leva a essa situação de extrema riqueza de poucos ante a extrema miséria da grande massa da população.

A contestação dos erros do estalinismo não poderia levar, no quadro atual, a uma ameaça real ao socialismo, apesar da sobrevivência do pensamento marxista coerente? 

A aplicação do marxismo em cada momento pode estar sujeita a erros. Tudo depende da rapidez com que se corrigem os erros, para não deixar que se sucedam. Stálin achava que aquilo que ele defendia era verdadeiro marxismo. No caso da agricultura, como já vimos, ele insistiu no erro da coletivização. Hoje, existem fazendas estatais, existem famílias que arrendam terras e outras formas de produção rural - e todas são tão compatíveis com o socialismo quanto os kolkhozes. Por que impor a estatização a toda indústria, como ele impôs? Hoje, numerosos setores e serviços já funcionam completamente independentes do Estado. 



A versão dominante na imprensa ocidental é a de que as transformações no Leste Europeu expressam um fracasso do socialismo. Qual o saldo destes pouco mais de 70 anos de socialismo? (foto acima, da esquerda para a direita, o poeta chileno Pablo Neruda, Prestes e o escritor Jorge Amado)

Na aplicação pratica do socialismo sempre se está sujeito a cometer erros. E erros foram cometidos. Agora estão pagando por esses erros. Mas, o processo atual é de correções. Repito que é importante notar que nenhum dos países socialistas está pregando, por exemplo, a dissolução do Pacto de Varsóvia, o afastamento em relação à União Soviética ou a separação do campo socialista. Nenhum daqueles países pretende voltar ao capitalismo. Todos aqueles países já conquistaram uma etapa de uma sociedade socialista. Depois que se experimenta isso, não se volta atrás, não. Quem pôde viver em regime socialista, não aceita mais as condições do capitalismo, pois seria negar o valor de um nível mais alto, da sociedade diferente que já alcançaram - uma sociedade igualitária, onde não existe a exploração do homem pelo homem. Note que inúmeros alemães orientais, que tinham emigrado para o lado ocidental, acabaram retornando. Era essencial para eles retomar aquele convívio de base socialista. Não há perigo de um retorno ao capitalismo, pois todos aqueles países querem seguir adiante na construção do socialismo, corrigindo os erros e resolvendo seus problemas de acordo com suas respectivas realidades objetivas. No caso da Polônia, por exemplo, o país segue seu caminho próprio. Lá ocorreu que o Partido Comunista cometeu muitos erros e logo depois convocou eleições. Ora, se um partido comete excesso de erros e convoca eleições, naturalmente vai perder. Foi o que ocorreu. O povo votou no Solidariedade. Mas, o Solidariedade não tem quadros para dirigir o país, eles são quadros sindicalistas. Assim, tiveram que entregar os ministérios mais importantes para o Partido Comunista, que dispõe de quadros preparados para a administração. 

Na Polônia, existe uma ação especial da Igreja Católica.

A igreja tem, de fato, uma ação particular, principalmente quanto à pequena propriedade, que está preservada até hoje devido à igreja. Não se pode tocar na pequena propriedade, porque se cria um problema religioso muito sério. Então, o governo polonês precisa manter esse sistema, até que, pela educação progressiva, pela elevação do nível de consciência social do povo, isso se modifique naturalmente, sem choque, sem ruptura com a igreja.


O Solidariedade é força eleitoral inegável. Ao mesmo tempo, o PC polonês se renova. Haverá um instante de encontro entre as duas forças? (acima, Prestes em 1959)

Seria uma temeridade tentar predizer o caminho que se seguirá. Todos aqueles povos estão em efervescência. Estão surgindo novos partidos, o PC desapareceu, na prática, devido a sua impopularidade, aos erros que cometeu - isto não só na Polônia, mas também na Hungria, na Alemanha Democrática, etc.. O PC está sendo refundado e o processo de renovação avança. Mas, nenhum deles abandona o Pacto de Varsóvia, pois sabem que esta aliança é que lhes dá garantia de integridade territorial. Sem o Pacto de Varsóvia, a Alemanha Federal pode tentar apossar-se de qualquer um desses países, que já foram território alemão - Polônia, Hungria, parte da Tchecoslováquia. 



Pelo que sovietólogos consideram - muitos estudos são de décadas passadas - o processo por que passa o Leste Europeu é não só sadio, como natural e necessário. Afirmavam já naquele tempo que a renovação política do bloco soviético seria uma etapa necessária, por força do desenvolvimento econômico e social que experimentaram os países socialistas. Segundo tais teses, países industrializados ou em avançado processo de industrialização, aquelas sociedades socialistas já não suportariam o processo político autoritário que marcou a implantação e a primeira fase do regime. Assim, glasnost e perestroika seriam passos necessários, sem os quais se daria um descompasso estrutural entre regime e sociedade. Adotar o pluralismo e institucionalizar o princípio da divergência - as bases da vida democrática - seriam mudanças profundas, mas nunca o abalo do socialismo naqueles países. O sr. concorda? (foto acima, Prestes em Moscou na década de 1970)

Acho que tal tese não corresponde à realidade. Isto, porque o país do bloco socialista onde há mais democracia é justamente a URSS. Lá já se aplicam, de fato, os princípios democráticos, há eleições frequentes. Ninguém mais democrata que o camarada Gorbatchev. 

Como o sr. analisa a participação política do povo brasileiro?

O nível de organização da classe operária brasileira é ainda muito baixo. Talvez não tenhamos mais que 10% da classe operária organizada. Não passa disso. Os sindicatos estão vazios. Veja, por exemplo, o Sindicato dos Metalúrgicos do Rio, que é um dos mais organizados: congrega apenas uma parcela insignificante do total de metalúrgicos. Isso ocorre também em S. Paulo. E só há movimento sindical nos grandes centros. Veja as centrais sindicais, mesmo a CUT. Passam-se meses e meses, sem qualquer luta concreta pela melhoria do padrão de vida dos trabalhadores, que hoje vivem em miséria absoluta. Quem pode hoje viver no salário mínimo? É a fome. Vivo no Rio de Janeiro desde os seis anos de idade e posso afirmar, com segurança, que nunca vi tanta miséria e tanta fome. Em agosto passado (1989), o salário mínimo era de 120 cruzados novos, que correspondiam a 30 dólares. Portanto, o salário mínimo no Brasil era de 30 dólares, apenas. No mesmo mês, o salário mínimo na Espanha, o menor da Europa capitalista, era de 500 dólares; na França, 560; nos Estados Unidos, 800 dólares. Nós temos o menor salário mínimo do mundo. Em 1985, nosso salário mínimo era de 600 cruzeiros, um terço do que deveria ser. E continua a cair, anos após ano.


A fraca organização dos trabalhadores no Brasil não seria uma decorrência do baixo nível de reflexão teórica dentro de nossos partidos progressistas? Parece ser um fato que não temos pensadores que produzam, continuamente, reflexões sobre a realidade para orientar a ação política. (foto acima, Luís Carlos Prestes em seu retorno do exílio em 1979 e do lado direito sua segunda esposa Maria Prestes)

No Brasil, é preciso reconhecer que não há prática de partidos políticos. Os partidos são aleatórios, surgem num determinado momento e logo desaparecem. Não há tradição de partidos políticos no país. Isso influi na má organização dos trabalhadores, no atraso e na ignorância política. O pior mal da classe operária brasileira é seu atraso cultural, o analfabetismo. Quem não é analfabeto, é apenas semi-alfabetizado. Ficam sem condições de lutar por seus próprios interesses. Naturalmente, a ignorância da classe operária é mantida pelos próprios governos. Os governos fazem questão de manter a classe operária longe da educação, porque quanto mais ignorante, mais o trabalhador estará distante da luta política por seus interesses. Falta ao Brasil um partido revolucionário, que eduque as massas. Temos aí dois partidos comunistas, que já não têm nada de comunistas. Apenas o nome (trata-se do PCB e do PC do B). E mesmo o nome agora querem abolir. 

Qual a tarefa atual dos socialistas no Brasil? 

A primeira é cuidar da elevação do nível de consciência política e ideológica dos trabalhadores. Sem isso, não se avançará na organização do povo para a defesa de seus interesses. O atraso é muito grande. Basta lembrar que a classe operária brasileira não dispõe de um periódico que seja seu. Há jornaizinhos, quase folhas volantes, sobre os quais a pessoa passa a vista, rapidamente, e não extrai nada de mais útil. Não há uma imprensa operária em seu sentido próprio. No caso do PCB (Partido Comunista Brasileiro), há o jornal "Voz da Unidade", que leio toda semana, mas sem nunca encontrar algo que seja de utilidade ao trabalhador. O Partido Comunista deve ter como tarefa principal educar as massas operárias, elevar seu nível de consciência. Enquanto não fizer isso, permanecerá como uma minoria para ditar regras, mas sem qualquer influência. Para ligar-se às massas, é preciso saber levantar os interesses das massas. E são elementos completamente desligados das massas. Quem sabe quem é o presidente do PCB hoje? Ninguém conhece, ninguém sabe o que ele faz, em que se distingue como dirigente de um partido revolucionário. O outro partido comunista é o do João Amazonas (Partido Comunista do Brasil, antiga dissidência do PCB). O João Amazonas é um cabeça parada. É um metafísico por excelência. O que aprendeu na escola do partido (PCB), lá por 1951-52, ele cristalizou na cabeça e não mudou mais.



Como o sr. frisou bem, cada agrupamento progressista tem seu instrumento de divulgação, mas de penetração reduzida. Não se chega nunca a uma colaboração que viabilize um órgão de comunicação capaz de se transformar num instrumento do trabalhador. (foto acima, Prestes e sua filha a historiadora Anita Leocádia Prestes em 1989)

É preciso colocar como meta elevar o nível de consciência dos trabalhadores. Veja o PT (Partido dos Trabalhadores). Tem uma camada operária maior, mas é um partido que não tem a ideologia do proletariado. No Brasil, ninguém nasce socialista. Todos nós nascemos sob a influência da ideologia burguesa e nela somos criados. Mesmo a família operária tem a ideologia burguesa como a predominante. Mas, o trabalhador tem de lutar para substituir tal ideologia pela do proletariado. No caso do PT, isto não ocorre nem com o dirigente máximo, o Lula, que é um operário talentoso, mas que desconhece totalmente a ciência do proletariado. Lula precisaria estudá-la, para mudar sua ideologia burguesa e adotar a do proletariado. O partido dele não é do proletariado. O PT é um partido burguês como qualquer outro. Como diferença, tem apenas um maior número de operários, o que não o torna um partido operário. Para adquirir a ideologia do proletariado, é preciso estudá-la. Mas, em lugar de dar o exemplo, Lula se recusa a fazê-lo. Toda critica que faço ao Lula é com o objetivo de levá-lo a estudar o marxismo. Mas, ele acha que quero destrui-lo. O que pretendo é que ele adquira a ideologia do proletariado e exerça a função de líder de um partido que pode se transformar em revolucionário, do proletariado.


Mesmo em camadas progressistas, penetrou o vírus do anti-marxismo. (acima, Prestes em 1990, pouco antes de sua morte)

É o que ocorre naquela ala intelectual do PT. Há trotsquistas, Convergência Socialista - são inimigos do marxismo. Dentro do PT há gente inteiramente contrária à ideologia do proletariado. De qualquer maneira, é o partido mais avançado hoje. Quanto ao PDT (Partido Democrático Trabalhista) de Briola, carece de ideologia e não tem organização. O próprio Brizola não se interessa por organizar o partido, talvez porque imagine que o partido organizado pode passar por cima dele. Por aí você vê que não tenho ilusões a respeito do quadro partidário brasileiro. Mas, entendo que o PDT é o partido que pode realizar grandes coisas, devido à liderança e às qualidades de Brizola, tem muito de caudilho, mas é patriota com intensidade, é um homem que quer avançar e em determinadas circunstâncias é o melhor candidato. Agora mesmo, aqui no Rio de Janeiro, sem dúvida Brizola é o melhor candidato ao governo estadual, em outubro.

É possível que a frente progressista gerada pelo segundo turno das eleições presidenciais resulte numa ação conjugada, que leve a projetos comuns, como o de estabelecer uma imprensa capaz de romper o bloqueio de comunicação?

Acho que o único sintoma positivo nesse sentido é a aproximação entre nós, do PDT, e o PT. Se estes dois partidos se mantiverem unidos, isso significará uma força importante. Brizola tem grande influência em diversos estados, enquanto o PT obteve ótimos resultados. Se o PDT e o PT se unirem em torno de uma plataforma comum, unitária, podem se transformar numa força política capaz de obter vitórias decisivas e exercer influência positiva nos rumos políticos do país (fim). 

Entrevista concedida à revista mensal Cadernos do Terceiro Mundo, nº 129. Rio de Janeiro, Editora Terceiro Mundo Ltda., 1990, pags. 48-52. 

Crédito das imagens: 

Prestes em 1945; em 1934; recebendo o diploma de senador em 1945; com o poeta Neruda e o escritor Jorge Amado em 1946  e com a filha Anita Leocádia: Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro de Anita Leocádia Prestes. São Paulo: Boitempo, 2015.   

Fotos de Prestes em 1959 e em Moscou na década de 1970: Wikipédia.

Caricatura de Álvarus e no retorno do exilio em 1979: Prestes: lutas e autocríticas. Dênis de Moraes e Francisco Viana. Petropólis: Editora Vozes, 1982.

Prestes na época da Coluna em 1928: Getúlio Vargas: biografia política. De John W. F. Dulles. Rio de Janeiro: editora Renes, 1967. 

Prestes em 1990: Cadernos do Terceiro Mundo, nº 129. Rio de Janeiro, Editora Terceiro Mundo Ltda., 1990, pag. 48. 

Prestes por Portinari: 

https://ceppes.org.br/nossa-historia/herois_da_al/quem-somos

Um comentário:

  1. F a n t á s t i c o!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
    Tirando suas prediçoes equivocadas sobre o leste europeu, perfeito!!!
    Hj, vendo o q ele disse do lula e dos partidos de esquerda, vemos pq o pobre não vota nessa gente. Seus interesses não são pra melhorar a vida do povo e sim usa´lo como pretexto. E aqui fica minha revolta. prefiro inimigos declarados que falsos amigos. Tchau Lula.

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