sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Da literatura para a TV: a novela Gabriela versão 2012



A terceira transposição para a televisão do romance de Jorge Amado, "Gabriela, Cravo e Canela", escrito em 1958, parece refletir aspectos que não apareciam nas versões anteriores ou mesmo na obra literária do grande escritor. Claro, estamos em 2012 e o formato atual da telenovela exige cenários mais sofisticados, ambientes mais luxuosos, mesmo impróprios para o contexto da época, como no caso da boate Bataclan, que mais se assemelha aos cabarés da velha Chicago dos tempos de Al Capone do que a Ilhéus da década de 1920. Belas mulheres muito bem vestidas, loiras, olhos azuis, brancas e poucas mulatas ou negras, como seria o mais natural. Afinal estamos na Bahia. A personagem Gabriela da obra de Jorge Amado era mulata, como também a Glória do coronel Coriolano. No que se refere ao Bataclan, poucas referências são feitas ao mesmo no livro, como também no que diz respeito a Maria Machadão e às moças que ficavam sob o seu comando. As cenas mais sensuais e tórridas, além de algumas ousadias impensáveis para a época entre os personagens amantes são recursos de imagens para atrair a audiência do horário das onze horas. O livro transmite uma sensualidade mais suave, uma vez que não conta com o recurso da imagem. Daí a importância da literatura, fazer o leitor imaginar ou "viajar" no ambiente descrito pelo autor. Ainda faço uma outra observação com relação ao Bataclan descrito no livro, não era a única boate de Ilhéus. Existiam outras casas inclusive para os mais desafortunados, como os jagunços ou os tripulantes dos barcos que passavam pela cidade. As garotas desses outros cabarés não eram tão belas ou bem vestidas como as do Bataclan.





E aos amores? Bem, a novela atual dá um grande destaque. O Dr. Osmundo e Sinhazinha, Malvina e o professor Josué e depois com o engenheiro Rômulo, o mesmo professor Josué e Glória, o Dr. Mundinho e Jerusa e claro, Nacib e Gabriela. Ainda era pouco. Walcyr Carrasco acrescentou a personagem Lindinalva, desconhecida no universo literário de Jorge Amado e a qual, da condição de "boa moça", acabou se prostituindo. Trata-se de um declínio social muito improvável de ocorrer nas circunstâncias da sociedade de Ilhéus. 
A personagem Malvina às vezes parece perder um pouco a sua rebeldia e o seu amor pelos livros, tão claro na obra  original. Ah, o engenheiro Rômulo Vieira também não se revela à altura dos sonhos progressistas de Malvina, como ocorrera também com o professor Josué. Rômulo era apenas um galanteador e que já tivera problemas no Rio de Janeiro envolvendo-se com outras mulheres. Malvina pensa na fuga desse universo fechado, hipocritamente recatado e conservador da sociedade de Ilhéus. Foi ela que pensou em se atirar ao mar e não a improvisada personagem Lindinalva. Será que Malvina irá concretizar a ideia de morar em uma grande cidade, trabalhar, estudar e ser independente como ocorre no romance de Jorge Amado? 
Não seria possível hoje iniciar a trama logo com o crime do coronel Jesuíno Mendonça perpetrado contra Osmundo e dona Sinhazinha. Foi preciso um fio condutor até o desfecho, com os encontros às escondidas do casal adúltero e a inclusão da empregada bisbilhoteira e aproveitadora. A propósito, bem no final do livro, a justiça irá prevalecer e Jesuíno será condenado no tribunal. 
Em tempos como os de hoje, em que a política anda tão desprestigiada e o público parece fugir desse assunto, nada mais lógico do que a versão de 2012 obedecer a esse procedimento. A luta entre o poder estabelecido e a oposição parece ter perdido um pouco da força que tinha no formato literário e mesmo na versão televisiva de 1975. A novela "Gabriela" de 2012 já não necessita ser um simulacro da luta da oposição contra os poderosos que estaria existindo na vida real, uma vez que nesta os opositores e os poderosos são tão parecidos entre si. Não era assim em 1975 quando foi produzida a versão anterior de "Gabriela", por exemplo. Onde está o personagem Capitão, o grande rival do coronel Ramiro Bastos até a chegada de Mundinho e que irá auxilia-lo no confronto com os coronéis? 
O doutor Mundinho Falcão, vindo do Rio de Janeiro, mas com raízes econômicas e familiares em São Paulo, inclusive com negócios vinculados ao café, representava no universo de Jorge Amado um estilo mais renovador, moderno e progressista. Mundinho trazia a ideia de substituir a força pela lei, o casamento por obrigação pelo casamento por amor, a imprensa submissa por uma imprensa mais livre (na verdade, não tão livre assim), o provincianismo pelo cosmopolitismo, o assassinato em nome da honra pela justiça com base na lei. Em resumo, a política oligárquica pela democracia liberal burguesa. Mundinho tinha interesse em outras mulheres, como por exemplo, Anabela. O romance discreto com Jerusa era apenas um pano de fundo da luta política. Na versão atual de "Gabriela", a política é que é o pano de fundo. 



Jorge Amado, como um bom integrante do velho Partido Comunista Brasileiro (PCB) acreditava na superação da etapa "feudal" da vida brasileira pelos novos ares trazidos pela Revolução de 1930. Um estilo de vida mais burguês começava a chegar em Ilhéus. O hábito de tomar banho de mar era apenas um desses aspectos trazidos pelos de fora, Mundinho, Osmundo e Rômulo. Esse enfoque era temperado na obra com a sensualidade tropical da Bahia daquele final de década de 1920. O romance do "turco" Nacib com Gabriela é, no livro de Jorge Amado, o exemplo mais destacado dessa sensualidade. A mulata que não gosta de luxos, de cerimonias, de usar sapatos de damas, de conferências literárias (sim, Nacib a obrigou a assistir palestras de literatos), das damas carolas e hipócritas da alta sociedade de Ilhéus, que gostava de brincar no meio da rua com as crianças e com o negrinho Tuísca, de empinar papagaios. A Gabriela que também não se importava se Nacib desse as suas escapadas eventuais para os braços de alguma "quenga" (palavra muito pouco utilizada no livro, uma ou duas vezes no máximo) e que talvez imaginasse que Nacib não se importasse tanto se ela própria se sentisse atraida por algum outro "moço bonito", como no caso de Tonico Bastos. E foi o que aconteceu.



Como consolar o pobre Nacib da "traição" de Gabriela? Jorge Amado conseguiu resolver na sua obra a desonra sofrida por Nacib e ao mesmo tempo, transformá-lo em uma figura simpática. Não precisou dar tiros para solucionar a questão. Um outro personagem mais presente no livro, os sr. João Fulgêncio, o dono da livraria, que têm uma certa ascendência sobre Malvina, a quem via como uma moça intelectualmente brilhante, apoiou o nosso herói turco. Completamente apagado na versão televisiva atual, será João Fulgêncio, o bom e leal amigo de Nacib, que irá consolá-lo e lhe dar apoio durante a desilusão com Gabriela e Tonico. Mas como Nacib irá resolver novamente o problema da falta de uma cozinheira, logo agora que ele irá abrir o seu restaurante em sociedade com o dr. Mundinho Falcão? Que falta faz Gabriela! Não a Gabriela que Nacib queria mudar e transformar em dama, mas a autêntica Gabriela, a do "cravo e da canela", aquela do universo de Jorge Amado. 
Crédito das imagens: os desenhos de Di Cavalcanti foram retirados do livro "Gabriela Cravo e Canela" de Jorge Amado, Editora Record (edição sem data) e a foto de Juliana Paes da TV Globo. 

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