domingo, 30 de dezembro de 2018

Anúncio Antigo 59: a novela "A Cabana do Pai Tomás"



Sim, a teledramaturgia brasileira fez isso, em pleno auge da luta pelos direitos civis no mundo, na década de 1960: escalar um ator branco para viver um personagem negro e escravo. Com direito a maquiagem para escurecer a pele! Tal fato ocorreu na novela "A Cabana do Pai Tomás", exibida pela Rede Globo de Televisão entre 7 de julho de 1969 e 28 de fevereiro de 1970. A mesma era em preto-e-branco (não existia televisão em cores no Brasil). Foi a sexta novela do horário das sete horas da noite na emissora, com um total de 204 capítulos, da qual este que vos escreve guarda algumas lembranças e cujo lançamento aparece no Anúncio Antigo de hoje (imagem acima). A emissora coloca em seu site Memória Globo, um argumento aparentemente decisivo para recorrer a esse lamentável artifício. O patrocinador, no caso a Colgate-Palmolive, teria imposto essa alternativa, apesar da grande disponibilidade de atores afrodescendentes que poderiam perfeitamente interpretar o papel. Uma escolha meio óbvia já naquela época era Milton Gonçalves, o qual, aliás, acabou por participar da novela, porém não no papel título. O conhecido ator Sergio Cardoso, recém chegado da TV Tupi (emissora concorrente da Globo naquele momento), assumiu o personagem do escravo Tomás e mais outros dois: Dimitrius e, pasmem, Abraham Lincoln! 


Para viver o personagem negro, Sergio Cardoso além de pintar o rosto e parte do corpo, usava peruca e rolhas no nariz a fim de alterar o formato deste (na foto acima, o ator vivendo o personagem Tomás). Tudo isso gerou uma grande polêmica e um dos primeiros a levantar a questão na imprensa da época foi o também ator, escritor e teatrólogo Plínio Marcos, na coluna diária que escrevia no jornal Última Hora de São Paulo. Em várias oportunidades ele protestou contra esse recurso, o qual, em todos os aspectos, acabava por remeter ao racismo e ao preconceito contra atores negros em nossa televisão. Na época, a esses profissionais eram reservados os papéis de cozinheiros, empregados (as) domésticos (as) ou escravos (as). E isso, desde que não fosse o personagem principal! Sergio Cardoso tentou justificar-se, por meio de uma declaração, que tornou-se uma emenda a prejudicar ainda mais o soneto: "Tenho vários amigos de cor que são como meus irmãos; tenho afilhados pretinhos que amo como se fossem meus filhos." Na visão dele, pintar o rosto de negro era apenas fazer a caracterização de um personagem e como algo desafiador para um ator, não uma discriminação racial. 


A novela, escrita inicialmente por Hedy Maia, Glória Magadan e Walther Negrão, foi uma adaptação do conhecido romance Uncle Tom's Cabin (traduzido em português como "A Cabana do Pai Tomás") da escritora (e professora) estadunidense Harriet Beecher Stowe (foto acima), publicado em 1852. A obra impulsionou a propaganda pela causa da abolição da escravidão nos Estados Unidos e foi um enorme sucesso de vendas naquele país, perdendo apenas para a Bíblia e à frente de outro exito literário, "Ben-Hur" de Lew Wallace. Traduzido para várias línguas, o romance fez sucesso na Inglaterra e em vários países da Europa. Na verdade, tratava-se do ponto de vista do norte a respeito da escravidão, uma vez que a autora era proveniente do estado de Connecticut. O trabalho compulsório foi uma das questões que levou à Guerra Civil Americana ou Guerra de Secessão (1861-1865), dividindo os Estados Unidos entre nortistas (favoráveis à extinção do trabalho escravo) e sulistas (fazendeiros que desejavam a manutenção da escravidão). A contribuição da obra de Harriet Beecher Stowe para a causa abolicionista foi reconhecida pelo próprio presidente Abraham Lincoln. Apesar disso, muitos críticos apontaram, mais tarde, que os personagens escravos eram estereotipados, como o próprio Tom, bonzinho demais, submisso e apegado a fé cristã, pois sempre levava consigo uma Bíblia. 



A história gira em torno do escravo Tom (no original Uncle Tom) vendido por seu proprietário, Arthur Shelby, do estado do Kentucky, em função do mesmo ter várias dívidas, embora não fosse essa a sua vontade (na cena acima da novela, Tom aparece com a esposa Chloé, à esquerda). Tom é levado para Nova Orleans (no sul do estado da Luisiana), onde o seu novo dono chegou a lhe prometer a liberdade. No entanto, este é assassinado e Tom é vendido pela viúva a um perverso fazendeiro de algodão (principal produto do sul dos Estados Unidos, na época), Simon Legreé, que o castiga constantemente, sobretudo quando Tom presta socorro a outros escravos, como por exemplo a jovem Cassie. Tom ajudou-a a fugir para o Canadá, onde não havia escravidão. Posteriormente, Cassie foi para a França e finalmente para a Libéria, na costa ocidental da África (país que surgiu sob os auspícios do governo estadunidense para abrigar ex-escravos e libertos). Para o velho Tom e sua esposa Chloé, a ajuda do filho de seu primeiro dono (Arthur Shelby), George Shelby, educado na companhia e amizade do velho escravo, surgiu como uma possibilidade de emancipação. Bem, não vamos revelar aqui o final da história, caso o caro (a) leitor (a) tenha interesse em ler a obra.



Voltemos então à novela, que sofreu algumas adaptações em relação ao livro, mais palatáveis ao público daqui. Tom virou "Tomás" e o Uncle substituído por "Pai", aliás como na própria tradução do livro para o português (acima, Tomás e sua mulher Chloé, vivida por Ruth de Souza). 



Outros personagens foram introduzidos. Foi o caso de Dimitrius, que como já mencionamos, também era interpretado por Sérgio Cardoso. Por que tal personagem? Para fazer um contraponto aos rudes fazendeiros escravagistas, Dimitrius foi inspirado no famoso Rhett Butler, o herói burguês e esperto de "E o Vento Levou" da escritora Margareth Mitchel (na foto acima, Dimitrius ao lado do personagem Pierre Saint Clair, vivido por Paulo Goulart). 


A mulher de Tomás, Chloé, foi interpretada pela conhecida e premiada atriz Ruth de Souza, uma das que abriram as portas do nosso cinema e televisão para atores afrodescendentes (na foto acima, a atriz e Sergio Cardoso na novela). A indicação para o papel vivido por Ruth teria partido do próprio Sergio Cardoso. Aliás, vale lembrar que Ruth de Souza defendeu o ator na polêmica com Plínio Marcos, ainda antes da estreia da novela, como mostra uma entrevista da atriz à revista Intervalo (da editora Abril, nº 334, página 12). Na mesma, Ruth de Souza afirmou: "Não vejo razão para reclamação. Há muita gente querendo defender o negro, enquanto ele, na realidade, não pediu defesa nenhuma." 



Nas gravações algumas dificuldades tiveram que ser superadas. As cenas em que os personagens vividos por Sergio Cardoso apareciam juntos, eram gravadas em separado para depois serem montadas, pois a tecnologia da época não permitia imagens simultâneas de um mesmo ator (na foto acima, Tomás ao lado do cruel Mr. Legris, vivido por Edney Giovenazzi).



"A Cabana do Pai Tomás" foi tida, na época, como a produção mais cara da televisão brasileira, muito em função de ser uma novela de época, ambientada em um contexto histórico e geográfico diferente do nosso. Os figurinos exigiram enorme trabalho das 40 costureiras que criaram 150 trajes para a produção, como podem ser observados nas fotos acima (com as atrizes Jacyra Silva e Miriam Mehler, as duas em primeiro plano, respectivamente de cima para baixo). 
Dois estúdios foram montados em São Paulo para a produção da novela. A logística exigida pelas gravações externas foi difícil. Por exemplo, para reproduzir o ambiente das fazendas de algodão do sul dos Estados Unidos, foi encontrada na região de Campinas (SP) uma propriedade que poderia ser utilizada nas locações. Contudo, a colheita do algodão teve de ser antecipada para que as gravações pudessem ser feitas a tempo. O número de figurantes chegava a superar uma centena. 


Da mesma forma, uma embarcação (que aparece na foto acima, ao lado do ator Sérgio Cardoso), semelhante àquelas utilizadas no rio Mississipi, foi disponibilizada para as cenas em que os escravos eram levados para outros lugares. E ainda, segundo informações divulgadas nas revistas de televisão da época, um rio teria sido congelado para as cenas passadas no inverno. Infelizmente, este que vos escreve não conseguiu obter maiores informações de como se procedeu a essa incrível transformação. O que posso dizer aos leitores (as), por meio de minha própria lembrança é que, de fato, na novela existiam cenas passadas na neve, e que esta assemelhava-se muito à espuma de sabão em pó. 
Contudo, um fato inesperado quase colocou tudo a perder. No dia 13 de julho de 1969, a explosão de um frasco inflamável ocorrida atrás dos cenários do programa Sílvio Santos (que na época, trabalhava na Globo) deu início a um incêndio. De acordo com Rixa, autor do livro "Almanaque da TV: 50 anos de memória e informação" (Editora Objetiva, 2000), em apenas cinco minutos o edifício da TV Globo, localizado na Rua das Palmeiras (bairro de Santa Cecília, no centro de São Paulo) foi consumido pelas chamas e junto os dois estúdios de gravação da novela "A Cabana do Pai Tomás". Um acervo valiosíssimo de programas, filmes e desenhos animados foi perdido (inclusive o conhecido seriado nipônico "Nacional Kid"), além dos vinte capítulos iniciais da novela em questão, como também nove capítulos de "A Rosa Rebelde" e dois capítulos de "A Ponte dos Suspiros". Toda a produção de "A Cabana do Pai Tomás" foi transferida às pressas para o Rio de Janeiro, onde teve que dividir o estúdio com as duas telenovelas citadas. Roupas, figurinos e até mesmo a peruca utilizada por Sérgio Cardoso para interpretar o personagem Tomás, foram perdidas e tiveram que ser refeitas. 



No Rio de Janeiro a produção foi retomada a toque de caixa para que os capítulos fossem levados ao ar sem interrupção (na foto acima, gravação de uma cena). O diretor Fábio Sabag, com problemas de estafa, foi substituído por Daniel Filho, o qual afirmou em uma entrevista à revista Sétimo Céu, em setembro de 1969, que as gravações chegavam a durar 15 horas seguidas, sendo que, às vezes, varavam a noite a fim de completar um capítulo. Qualquer atraso poderia comprometer a exibição da novela, uma vez que cada capítulo tinha 25 minutos de duração e levava de dois a três dias para ser gravado. 



Ao todo, a novela teve cinco roteiristas, inclusive o próprio Sérgio Cardoso, que deu várias sugestões para o andamento da trama, a qual, ao final, assemelhava-se mais a um faroeste, de acordo com Walter Negrão. Este último ainda contou que um dos atores, Gésio Amadeu, um escravo colocado no tronco e que deveria morrer no primeiro capítulo, o procurou pedindo que não o tirasse da trama, pois ele necessitava ganhar o seu cachê por pelo menos mais um mês. Sensibilizado, Walter Negrão atendeu ao seu pedido, salvando-o das chicotadas!



Ruth de Souza (foto acima) afirmou, em entrevista, que algumas atrizes mostraram-se insatisfeitas por ela ter o seu nome na frente dos créditos da abertura, mesmo tendo papel importante como a mulher de Tomás. Mais uma evidência de como o racismo é algo palpável em nossa sociedade e até mesmo, no meio artístico. 
A novela não correspondeu às expectativas da emissora, não apenas devido aos contratempos, mas também às dificuldades de assimilação por parte do público, de uma história muito distante de nossa realidade. Além disso, sofreu a concorrência de um grande sucesso da TV Tupi, "Nino Italianinho", que ganhava audiência enorme junto ao público de origem italiana, como a novela "Antônio Maria" (personagem aliás, vivido pelo próprio Sérgio Cardoso) havia obtido junto aos descendentes portugueses. A TV Globo encerrava o ciclo das novelas de época e passou a buscar tramas mais relacionadas à nossa realidade, sobretudo nos textos de Janet Clair e Dias Gomes. 
O recurso do ator Sérgio Cardoso de escurecer o corpo para representar um personagem, não foi mais utilizado? Em termos! Por exemplo, a atriz Sônia Braga, para viver a Gabriela do romance de Jorge Amado na novela de 1975, recorreu a uma tintura na pele para que parecesse morena e de acordo com a personagem (ver neste blog a postagem "A novela Gabriela: versão 1975").
O Anúncio Antigo de hoje foi publicado no jornal O Estado de S. Paulo, do dia 18 de maio de 1969, na página 28. 
Crédito das imagens:
Foto da escritora Harriet Beecher Stowe: Wikipédia.
Fotos em cores de Sérgio Cardoso e Ruth de Souza, de Sérgio Cardoso com a corrente e das fotos relacionadas aos figurinos: Revista Sétimo Céu, nº 162, setembro de 1969, páginas 36, 37, 38 e 39. Disponível em:
http://revistaamiga-novelas.blogspot.com/search/label/A%20CABANA%20DO%20PAI%20TOM%C3%81S
Foto de Sergio Cardoso e Ruth de Souza abraçada a ele colorida (e a frase atribuída ao ator, justificando o papel):
https://virtualia.blogs.sapo.pt/20263.html
Fotos de Tomás com os demais escravos, de Dimitrius e Pierre Saint Clair e de Tomás com Mr. Legris:
http://enriquetv.blogspot.com/2016/03/a-cabana-do-pai-tomas-novelas-classicas.html
Foto de Sérgio Cardoso com o livro e tendo o barco ao fundo:
http://astrosemrevista.blogspot.com/2012/02/sergio-cardoso-na-tv-globo.html
Imagem da gravação em cena do barco:
http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/a-cabana-do-pai-tomas.htm

7 comentários:

  1. ENTÃO. QUE SAUDADES DA NOVELA. HAVIA ACABADO DE ENTRAR PARA TV GLOBO. QUANDO EU FAZIA IMITAÇÕES DO TOP GOGIO AO DE CÉLIA BIAR E TED BOY MARINO EM HO QUE DELÍCIA DE SHOW. DIRIGIDO PELO MAX NUNES. TV PAULISTA PEGA FOGO. GRAVAÇÕES EM NO RIO ME CONVIDARAM...

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  2. FOI. EMOCIONANTE E DIVERTIDO. ERA UM FIGURANTE FIXO AO LADO DO PAI TOMAS. RSRS...TEM FOTOS MINHA ALI EM CIMA. NISSP CONHECI JACIRA SILVA. GESIO AMADEO. JORGE COUTINHO. DALMO FERREIRA. MEU QUERIDAO EDNEY GIPVENAZZI. ELOISA MAFALDA. FELIPE CARONE. MIRIAM MELHER. NORA FONTES MAE DE REGIS CARDOSO. RUTE DE SOUZA...TANTA GENTE BOA. A CADA DIA ÉRAMOS DIRIGIDOS POR UM DIRETOR...KKK

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  3. HOJE SOU ESCRITOR E DUBLADOR. APOSENTEI. MAS FIQUEI DALI EM DIANTE NA GLOBO. ERAM TANTOS DIRETORES.. FABIO SABAG. MARLOS ANDREUCCI. WALTER CAMPOS. REGIS CARDOSO E DANIEL FILHO. MINHA QUERIDA TEREZINHA CUBANA. LOURDES AMARAL ERICO DE FREITAS HAROLDO DE OLIVEIRA. LOLA BRAH IVETE BONFA.. TINHA O GERMANO FILHO Q UE FICOU NO LUGAR DO TURIBIO RUIZ RENATO MASTER...E SERGIO MALTA...KKKK MUITA GENTE BOA NA NOVELA..

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  4. NÃO TINHA VISTO ESSE BLOG. HOJE TENHO 70 ANOS. AMO O TEATRO. TEATRO E MINHA VIDA. NINGUÉM ME CHAMA PRA FAZER. QIE PENA...!!! MAS VALEU...

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  5. DEPOIS NO LUGAR ESTREOU PIGMALEAO 70 COM TONIA CARRERO E SERGIO CARDOSO. AI FIZ UM PAPEL MAIOR. MUITO LEGAL CONTRACENAR COM TONIA E SERGIO E MARIA LUIZA CASTELLI...FOI SHOW...MAS CONTINUO MORANDO EM SP.

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  6. EM RESUMO A NOVELA A CABANA DO PAI TOMAIS...FOI UMA PRODUÇÃO DA TV GLOBO DESASTROSA. MAS VALEU A PENA... ACHAVA ESTRANHO O ATOR SÉRGIO CARDOSO COLOCAR UMA PERUCA E SE PINTAR DE NEGRO. KKKK PRA INTERPRETAR O PAI TOMÁS. ELE DESSE O SÉRGIO CARDOSO FAZIA MISTER DEMITRIUS... E O PRESIDENTE ABOLICIONISTA ABRAHAN LINCOLN... SHOW...COMO ATOR SÉRGIO CARDOSO DEU UM SHOW DE INTERPRETAÇÃO...VALEU QUARIDO ATOR AMIGO SERGIO CARDOSO...👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏

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    1. Querido Jacimar, infelizmente não sou avisado dos comentários e só agora pude ler. Para mim é uma honra te-lo aqui. Muito obrigado pelos comentários pois os leitores poderão ver e conhecer uma testemunha que esteve no elenco da novela. Não há a menor dúvida da qualidade artística desses atores, fizeram história na tv e no teatro, incluindo vc claro. Acho o trabalho de dublador uma arte, infelizmente pouco reconhecida entre nós. Maravilhoso, espero que vc estela lendo este meu agradecimento. Um enorme abraço para você, que ainda é jovem e tenho certeza muito ainda irá contribuir para a teledramaturgia, teatro e dublagem!!!!!!

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