quarta-feira, 31 de março de 2021

Anúncio Antigo 77: o filme Aeroporto (1970)



A película que lançou a moda dos filmes de desastre ou cinema-catástrofe na década de 1970: Aeroporto (Airport, 1970). Um dos grandes sucessos cinematográficos daquele ano, como o Anúncio Antigo acima mostra, foi baseado no best-seller (livro de sucesso) de Arthur Hailey, teve a direção de George Seaton (1911-1979) e estrelada por Burt Lancaster, Jean Seberg, Dean Martin e Jacqueline Bisset, junto a um elenco formado por atores já experientes em Hollywood. A produção foi dos estúdios da Universal e do seu executivo Ross Hunter (1920-1996), responsável por clássicos do cinema como Tudo o Que o Céu Permite  (1955) e Imitação da Vida (1959). A excelente trilha sonora de autoria do compositor Alfred Newman, a abertura de rara beleza visual e os demais atributos técnicos, ajudaram o filme a ter uma excelente bilheteria, a melhor da Universal desde Spartacus (1960). 

O grande destaque ficou pela atuação da veterana Helen Hayes, que acabou por levar o Oscar de melhor atriz coadjuvante, interpretando uma idosa que insistia em viajar sem pagar a passagem (na foto acima, o elenco tendo ao fundo o diretor George Seaton e o produtor Ross Hunter que está de óculos). Aliás, a única estatueta recebida entre as 10 indicações dadas pela Academia de Cinema de Hollywood (inclusive de melhor filme). 

A trama gira em torno do administrador do aeroporto de Chicago (vivido por Burt Lancaster) e os problemas decorrentes de uma terrível tempestade de neve, que criava dificuldades às operações de partida e chegada dos voos, entre os quais um com destino a Roma, da empresa Trans Global Airlines ou TGA (nome fictício). 

Entre os passageiros, havia um que portava uma pasta contendo explosivos. A ideia do personagem (vivido pelo ator Van Heflin, em seu último trabalho no cinema, que aparece na imagem acima à direita, ao lado de Helen Hayes e Whit Bissell) era detonar o artefato dentro da aeronave, o que levaria à queda da mesma. Dessa forma, sua esposa (interpretada pela excelente atriz Maureen Stapleton) receberia o dinheiro do seguro, pois o casal vivia em sérias dificuldades financeiras. Como sempre acontece em filmes de desastre aéreo, coube ao piloto (vivido por Dean Martin) evitar uma tragédia maior, fazendo com que o passageiro com o explosivo se refugiasse no toalete. O artefato explodiu e deixou um rombo na fuselagem do avião. Mesmo assim, a aeronave conseguiu retornar ao aeroporto e o pouso ocorreu sem grandes dificuldades. O único problema era um Boeing 707 com o trem de pouso preso na neve, na pista principal do aeroporto, mas que acabou sendo removido graças à pericia de Joe Patroni (personagem vivido por George Kennedy), o mecânico-operador da TGA. Ah, este que vos escreve contou o final! Impossível assistir ao filme sem deduzir que o desfecho fosse esse, com a aeronave e os passageiros salvos (exceto o que detonou o explosivo). 

No mais, um festival de clichês que depois se repetiriam em vários outros filmes em que o assunto fosse acidente aéreo. Não poderia faltar o romance (extraconjugal) entre o piloto e a aeromoça (vividos por Dean Martin e Jacqueline Bisset, na imagem acima); a crise matrimonial do gerente do aeroporto; o passageiro chato que aparece para atrapalhar tudo e ainda a exaltação à tecnologia da moderna aviação comercial. A fabricante de aviões estadunidense Boeing, muito antes de viver a crise pela qual atravessa atualmente, foi privilegiada ao ter o seu nome associado ao filme, o qual aliás, rendeu mais três sequências: Aeroporto 1975, Aeroporto 1977 e Aeroporto 1979, o Concorde. Mas sem a menor dúvida, como ocorre na maioria das franquias cinematográficas, a primeira foi a de qualidade mais aceitável. George Kennedy foi o único ator a ter participado de todas as sequências, sempre com o personagem Joe Patroni e ligado à manutenção das aeronaves. 

Um dos temas da trilha sonora foi adaptado pelo músico Vincent Bell, o Airport Love Theme, cujo vinil vendeu mais de um milhão de cópias em 1971. O arranjo embalou o romance de muitos casais na época e também foi sucesso aqui no Brasil, mas não fez parte da trilha original (acima, capa do disco com a trilha do filme). 


Apesar da avalanche de indicações ao prêmio máximo do cinema, o filme não foi bem recebido pela crítica da época e com boas justificativas (acima, cartaz promocional do filme divulgado nos Estados Unidos). Não é uma história que prenda a atenção do espectador, pois fica diluída em pequenas tramas paralelas, casamentos mal resolvidos, o drama do personagem desempregado que ia explodir o avião, a passageira clandestina, a rotina de um aeroporto movimentado, enfim, nada no roteiro que pudesse ter algum destaque especial. Para os padrões de hoje, o filme é até difícil de assistir e com um desfecho pra lá de previsível.

Agora vamos para o detalhe curioso deste filme, principalmente para os brasileiros. Na trama em questão o avião não se acidentou, mas na vida real sim. O único Boeing 707 (acima, como aparece no filme) utilizado nas filmagens externas (pois a parte interna, onde estavam os passageiros, foi reconstituída em estúdio) caiu e não deixou nenhum sobrevivente entre os que estavam a bordo. E o acidente ocorreu aqui no Brasil, no Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP) que serve a maior cidade do país, São Paulo.  

O Boeing modelo 707-349C (acima, uma miniatura da aeronave), cujo primeiro voo havia sido realizado em 9 de junho de 1966, estava alugado da Flying Tiger Line em 1970, para a realização do filme Aeroporto. Nos anos seguintes o aparelho voou por outras companhias aéreas, entre as quais Aer Lingus, El Al e a British Caledonian

Posteriormente foi adquirido pela Transbrasil como cargueiro com o prefixo PT-TCS (acima, a aeronave já com o logo da companhia). A rota Manaus-São Paulo era muita utilizada para transporte aéreo de produtos fabricados na Zona Franca, em função da metrópole amazonense não ter acesso direto por estradas ao resto do país. 

No dia 21 de março de 1989, às 11 horas e 54 minutos da manhã, o voo 801 da Transbrasil com o Boeing 707 prefixo PT-TCS caiu ao realizar a aproximação para pouso no Aeroporto Internacional de Guarulhos. A aeronave se precipitou sobre uma área residencial, a apenas 2 quilômetros da pista. O fotógrafo da revista Veja, Klaus Werner, que por acaso se encontrava na região em um helicóptero, captou uma imagem dos destroços logo após o acidente e antes da explosão que destruiu toda a fuselagem (imagem acima). Nenhum dos 3 tripulantes sobreviveu (piloto, copiloto e engenheiro de voo). 


Em terra, foram 22 mortos e mais de 200 feridos, na grande maioria moradores da comunidade Zimbard, uma área urbanizada localizada no Jardim Scynthila no município de Guarulhos na Grande São Paulo (acima, o acidente num plano esquemático feito pelo jornal O Estado de S. Paulo). O Boeing 707-349C tinha 22 anos e 10 meses desde a fabricação, acumulando 61 mil horas de voo, incluídas aí as horas despendidas para a locação do filme Aeroporto em 1970. 


A aeronave fazia uma aproximação em alta velocidade, pois faltavam 6 minutos para o fechamento da pista, para que fosse feita a manutenção da mesma (na foto acima, a parte traseira do Boeing após o acidente). A fim de reduzir a velocidade, um dos tripulantes acionou o speed brake (freio) já com o trem de pouso ativado, o que não era recomendado no Boeing 707, pois comprometia a sustentação da aeronave. O avião desacelerou demais e sem a altitude necessária para alcançar a pista de pouso, caiu sobre a área residencial. Se o avião tivesse se mantido por mais 11 segundos teria alcançado o aeroporto. A carga transportada tinha o peso de aproximadamente 26 toneladas, constituída de aparelhos eletrônicos e brinquedos provenientes da Zona Franca de Manaus. Foi o primeiro acidente grave com uma aeronave de grande porte ocorrido no Aeroporto de Guarulhos desde a sua inauguração em 1985. 


As investigações feitas posteriormente confirmaram a falha humana, através de uma sucessão de ações que culminaram na redução brusca da velocidade do aparelho (acima, a capa do Estado de S. Paulo no dia seguinte ao acidente). O nível de ansiedade da tripulação em realizar o pouso no limite dos 6 minutos estipulados para o fechamento da pista, a inexperiência do piloto no comando daquele modelo de aeronave (era orientado pelo copiloto, que tinha essa experiência), a não observação rigorosa do check list (procedimentos) de pouso, a falta de coordenação nas ações da tripulação e o cansaço pelas horas a mais de trabalho contribuíram para a tragédia. Apesar de ser considerado um modelo antigo, o Boeing 707 estava com a manutenção totalmente em ordem e tinha sido inspecionado dois meses antes do acidente, sendo descartada uma pane mecânica. A analise da caixa preta (na verdade laranja, a fim de ser localizada com mais facilidade nos destroços) apontou para a sucessão de erros dos tripulantes. Contudo, o cansaço pelas horas a mais de trabalho da tripulação foi observado na sentença judicial que estipulou a indenização aos familiares. A mesma tripulação havia conduzido o avião para Manaus e estava trazendo o mesmo de volta para São Paulo, num verdadeiro bate e volta durante a madrugada anterior. Pelo que consta nas fontes consultadas, as vítimas em terra foram indenizadas sete meses depois da tragédia. 

Enfim, muitas vezes a realidade não segue a ficção como ficou demonstrado neste episódio. Todos os acidentes aéreos deixam lições para que se evitem novas tragédias e as mesmas são assimiladas, ao contrário do que ocorre com outros meios de transporte. O Anúncio Antigo mais acima, do filme Aeroporto, foi publicado no jornal O Estado de S. Paulo do dia 16 de julho de 1970. 

Crédito das imagens:

Cenas do filme e do Boeing 707: 

http://moviefanguy.blogspot.com/2013/11/airport-1970-film-and-dvd-review.html

Poster original do filme: 

https://www.imdb.com/title/tt0065377/

Maquete do Boeing 707

http://www.modelcarsmag.com/forums/topic/158154-172-scale-trans-global-airlines-707/

Capa do disco em vinil com a trilha sonora do filme: acervo do autor.

Imagens do acidente e do Boeing 707 com o logo da Transbrasil:

https://acidentesdesastresaereos.blogspot.com/2018/07/transbrasil-801-o-fogo-que-veio-do-ceu.html

Esquema do acidente e capa do jornal: Acervo do Estadão. 

terça-feira, 23 de março de 2021

Editorial: Fora Bolsonaro!!!!!

Este editorial é quase um manifesto. Não é possível mais sustentar a permanência de Jair Messias Bolsonaro no cargo de Presidente da República do Brasil, após as suas declarações de ontem (dia 22.03.2021): "Se não morrerem da pandemia vão morrer de fome. O que querem que eu faça?" O que é isso? Afirmar também que o Brasil está na vanguarda do combate à covid-19, quando o mundo inteiro faz denúncias contra o país, demonstrando exatamente o contrário. O Brasil é hoje responsável por 25% dos mortos de covid no planeta! Já se constitui em ameaça aos seus vizinhos na América do Sul. Não há nenhum argumento plausível à luz da inteligência humana capaz de ser utilizado em favor desse "governo", não apenas com referência à pandemia, mas também com relação às demais políticas públicas. O Congresso Nacional tem que providenciar imediatamente o afastamento desse cidadão, por total falta de capacidade mental em conduzir as suas funções ou que a própria população exija isso nas ruas. Se necessário, que se faça o enfrentamento direto contra o presidente e seus apoiadores dementes que estão nos levando à morte. O afastamento desse governo se constitui num fator de sobrevivência para os brasileiros e é urgente. Que o Congresso Nacional convoque o vice-presidente para uma tentativa de diálogo e caso não seja possível, se reúna e forme um governo provisório comandado pelo Presidente da Câmara dos Deputados, estabelecendo uma data próxima para a realização de novas eleições, podendo também ser a que esta prevista no calendário normal, em 2022. Apenas uma coisa é certa, o país não pode mais permanecer como está...

#ForaBolsonaro

terça-feira, 16 de março de 2021

A última entrevista de Luís Carlos Prestes


A mais importante liderança comunista de toda a história do Brasil, o capitão Luís Carlos Prestes (1898-1990), concedeu uma entrevista para a revista Cadernos do Terceiro Mundo no início de 1990 (possivelmente em fevereiro), pouco antes de sua morte, ocorrida em 7 de março daquele mesmo ano (na foto acima, Prestes em 1945). Trata-se da sua derradeira contribuição como militante da luta dos trabalhadores em prol de um país justo e igual. O "Cavaleiro da Esperança" como ficou conhecido, contava com 92 anos e ainda demonstrava a sua enorme lucidez e firmeza de princípios que caracterizaram a sua trajetória política, desde os tempos da Coluna Prestes (na segunda metade da década de 1920) na luta contra os coronéis (classe dos grandes proprietários de terra) da Primeira República (1889-1930). Sua firmeza também pode ser observada com relação às críticas e observações da realidade brasileira, que em muitos aspectos são atuais, como a fraca organização do nosso proletariado e a atuação superficial dos partidos ditos de esquerda, no sentido de fortalecer tal organização.

Nessa entrevista, Prestes tece várias considerações a respeito do cenário político do Leste Europeu, que vivia naquele momento (final da década de 1980) a turbulência desencadeada pelas reformas do então líder soviético Mikhail Gorbatchev, designadas pelos nomes de perestroika (a reestruturação econômica) e glasnost (transparência política), as quais estavam sendo executadas na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O Muro de Berlim, que separava a Berlim comunista da Berlim capitalista, já havia caído e nos países comunistas da Europa Oriental os antigos governantes leais às orientações de Moscou começavam a ser substituídos por lideranças reformistas. No ano seguinte ao da entrevista, a própria União Soviética deixou de existir, fato que Luís Carlos Prestes não chegou a assistir e nem a prever. Aliás, quem previu? Hoje, Gorbatchev é visto com enorme desconfiança por parte daqueles que defendem o regime socialista e o legado soviético, de ter sido uma liderança de pouca envergadura e que não foi capaz de empreender o programa de mudanças mantendo a organização das antigas repúblicas soviéticas. Em várias declarações recentes, o próprio Gorbatchev têm ressaltado que não era necessário o fim da União Soviética para o encaminhamento das reformas. 


Naquela ocasião, no entanto, Prestes via Gorbatchev como aquele que poderia conduzir mudanças, as quais implicariam na correção dos rumos do bloco comunista, por meio de um retorno aos ideais de Vladimir Lênin (1870-1924), líder da Revolução Russa. De acordo com Prestes (acima, em um desenho de Portinari de 1952), um desses ideais era o de promover a democracia socialista. Josef Stálin (1878-1953), sucessor de Lênin, teria se desviado desses ideais, por meio de um governo de força, de mudança radical e de imposição dogmática do Estado como gestor único de toda a economia. Prestes afirmava que a coletivização ampla da terra foi um erro e que a pequena propriedade poderia conviver perfeitamente dentro do socialismo, da mesma forma que a pequena indústria. A revolução socialista significava também aproveitar aquilo de útil que o capitalismo criou e que deveria ter sido incorporado ao socialismo.


Este que vos escreve conheceu pessoalmente Luís Carlos Prestes (acima, na época da Coluna em 1928) e ouviu de sua boca a afirmação de que "Stálin foi um louco". Depois de condenar historicamente o estalinismo (que Prestes não confunde com socialismo), o velho líder comunista ressaltou a confiança no avanço em direção ao socialismo, como pensado por Lênin e na vigência do Pacto de Varsóvia (a aliança militar dos países comunistas, que se contrapunha à OTAN, liderada pelos Estados Unidos). Aliás este último ponto foi várias vezes assinalado por Prestes, pois a ausência do Pacto de Varsóvia poderia significar a volta dos anseios expansionistas da Alemanha Ocidental (que era capitalista, enquanto a Alemanha Oriental era comunista) em direção ao Leste Europeu, sendo portanto, uma ameaça aos países da região. Em função disso, o entrevistado acreditava piamente que essa aliança ajudaria esses países a não se desviarem do socialismo. Como sabemos, o Pacto de Varsóvia se dissolveu em 1991 e muitos dos antigos membros do bloco comunista aderiram à OTAN, hoje um bloco associado aos interesses geopolíticos estadunidenses. O curioso é que o grande obstáculo atual à expansão da OTAN é a própria Rússia, herdeira maior da antiga União Soviética. 

Com relação ao Brasil, como já assinalamos, muitas das criticas de Luís Carlos Prestes ainda são pertinentes. O país não teria uma tradição consistente na formação dos partidos políticos, que sempre surgiram guiados por conveniências momentâneas e não por ideias. Uma consideração especial ao Partido dos Trabalhadores (PT) e à sua liderança mais conhecida, Luís Inácio "Lula" da Silva. Para Prestes, o PT apesar de agregar uma quantidade razoável de militantes operários, não educava as massas na ideologia do proletariado, no marxismo. Prestes considerava Lula um operário talentoso, mas que precisava ler e estudar mais o pensamento marxista-leninista, a fim de que se tornasse uma liderança verdadeiramente revolucionária. Rompido com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), nos últimos anos de vida Prestes declarou voto em Leonel Brizola, do Partido Democrático Trabalhista (PDT), inclusive na eleição presidencial de 1989, a primeira após a ditadura militar. 



Enfim, uma entrevista feita no calor da hora das transformações pelas quais o mundo passava no final da década de 1980, nos momentos finais da Guerra Fria (polarização entre capitalismo e comunismo) e de seus reflexos aqui no Brasil. Claro, como sempre deixaremos ao leitor as conclusões (acima, Prestes em um desenho de Álvarus de 1929). Mas me permito antecipar algumas observações. O marxismo é um instrumental indiscutível de analise da realidade moderna, mas que tem sido nas últimas décadas negligenciado. Não há outra teoria, pelo menos por enquanto, que melhor tenha dissecado a engrenagem do sistema capitalista do que a de Karl Marx (1818-1883) e de seus seguidores. Da mesma forma que é impensável estudar a formação da vida no planeta sem Charles Darwin ou em querer entender a mente humana sem Sigmund Freud. Isso para não entrarmos no campo da Física com Albert Einstein. Apesar disso, conceitos como luta de classes, ideologia, imperialismo e revolução foram simplesmente retirados dos compêndios e teses acadêmicas, por razões não muito bem formuladas, uma vez que os fenômenos aos quais se aplicam estão aí, aos nossos olhos. Outros postulados teóricos, muitos dos quais válidos e pertinentes, acabaram por colocar de lado o legado marxista que vai às raízes das transformações históricas e que tem uma abrangência interpretativa enorme, embora muitas vezes utilizado de modo superficial e dogmático, aliás como assinala Prestes em sua exposição. 

A entrevista aqui reproduzida foi conduzida pelo editor Procópio Mineiro da revista Cadernos do Terceiro Mundo. As observações explicativas entre parênteses são nossas, bem como as fotos. Sem mais delongas, vamos a ela: 


Como é possível explicar a crise atual dos países europeus?

Stálin foi um dirigente de grande prestígio. Teve um cargo de dirigente, de secretário-geral do Partido (Partido Comunista da URSS) e presidente da União Soviética durante muitos anos. Teve, pois, uma influência muito grande. Assim, esse período ficou conhecido por nós, comunistas, como estalinismo, que foi a orientação adotada por ele. Na época, nós o conhecíamos como secretário do partido, e, internacionalistas que éramos e somos, nós o apoiávamos. Hoje, porém, estamos convencidos, com as informações que dispomos, de que o estalinismo cometeu muitos erros na aplicação do marxismo. 

Que tipos de erros de interpretação? 

Em primeiro lugar, ele negou totalmente o capitalismo. Stálin entendeu que o socialismo precisava negar totalmente o capitalismo. Entendia que o socialismo, do ponto de vista dialético, era a negação completa do capitalismo. Dialeticamente, o socialismo prevê o aproveitamento de uma parte do capitalismo, a parte boa do capitalismo. A transição social de uma sociedade a outra prevê a conservação na sociedade nova de parte da orientação da sociedade anterior e a negação da outra parte. O processo dialético é isso. A dialética não é a negação total do passado, mas uma transição, a passagem de uma etapa a outra. Stálin tinha uma concepção da dialética que era sectária, extremista, que via o socialismo como negação absoluta do período capitalista, quando não é isto. Era um erro. Por outro lado, Stálin adotou à frente do Partido determinadas posições que se revelaram falsas. Sobre a agricultura, por exemplo. Ele queria toda a agricultura coletivizada. Não é possível, na prática. Há outras formas de exploração compatíveis com o socialismo que não seja a coletivização. Esta forma determinou que as kolkhozes, as unidades coletivizadas, abarcassem massas imensas, um excesso de gente, para cuja administração se precisava de uma burocracia tremenda. E a burocracia, como sempre ocorre, traz o privilégio, traz a injustiça. 


E na indústria, o que ocorreu? (acima, Prestes em 1934)

Para a indústria, por outro lado, ele levantava a bandeira da estatização. Toda a indústria deveria ser estatal. E há muitos setores industriais que, preferivelmente, não devem ser estatais, mas ramos livres. Nos serviços, igualmente. Aquelas orientações equivocadas levaram a resultados errôneos, que só começaram a ser revistos após a morte de Stálin e, principalmente, agora sob a liderança de Mikhail Gorbatchev, que está trazendo modificações muito profundas para a orientação social, política e econômica da União Soviética. O que houve foram erros na aplicação do marxismo. Aquilo não era o marxismo. Muitos confundem, portanto, o estalinismo com o socialismo. Aquilo não era o socialismo, mas a negação do socialismo. Isto, porque é inerente ao socialismo a democracia. Não pode haver socialismo sem democracia. Não havendo liberdade, não havendo democracia, não havia, portanto, propriamente socialismo. O regime socialista está, na verdade, sendo construído agora na União Soviética, sob uma tendência inteiramente nova, que vem sendo defendida pelo atual governo soviético. E a nova orientação se baseia, de início, na democracia, na verdade, isto é, na glasnost, isto é, a transparência, que é a verdade. É necessário dizer ao povo a verdade. Lembro que, no período em que vivi na União Soviética (1971-1979), notei como os livros que eram dados à juventude não ensinavam a verdade sobre a história da União Soviética. Eram deturpados. À juventude deve-se ensinar a verdade. Se você não sabe a verdade histórica, o passado, não pode calcular nem prever o futuro. Você vai partir de informações e premissas totalmente falsas do processo. Era um dos erros que se cometiam. Agora, a glasnost veio para dizer a verdade ao povo, foi uma das primeiras medidas adotadas pelo camarada Gorbatchev. Mostrar a realidade, deixar os jornais falarem franco, dizerem a realidade.

Ao lado da glasnost, veio a perestroika. Qual o sentido dessa transformação? 

A perestroika é a reconstrução do país, a reestruturação, com base em princípios efetivamente marxistas, deixando de lado o marxismo de Stálin, que era apenas estalinismo, que era falho, soluções errôneas. O objetivo, portanto, é substituir aqueles princípios por orientações realmente marxistas, de acordo com a realidade e a objetividade histórica. Ou seja, a perestroika trabalha sobre a realidade objetiva do país. Esta é a linha que está sendo retomada na União Soviética e no campo socialista em geral. É claro que se trata de um processo complexo, muito complicado, basta ver o que está ocorrendo no dia a dia. Alguns países do Leste Europeu vivem situações de grande perturbação, com movimentação das massas, e agora precisam entrar em ordem, reorganizar a vida. 

Este processo, que envolve grande agitação social, não ameaça o socialismo, como informam os jornais ocidentais?

Todos esses países tem um objetivo: o socialismo. Nenhum deles luta contra o socialismo. Outro fator notável neste processo é que nenhum deles renuncia ao tratado de Varsóvia (Pacto de Varsóvia), que significa a unidade com a União Soviética. Precisam do apoio soviético. São países cujos territórios pertenceram à antiga Alemanha. Sem apoio soviético, podem vir a sofrer reivindicações territoriais, porque a Alemanha Federal (antiga Alemanha Ocidental) é mais forte. É o aliado soviético que garante a integridade territorial deles.



Um dos aspectos levantados pelos estudiosos nos assuntos soviéticos é que o despertar do sentimento nacionalista no bloco do Leste Europeu teria como conclusão o rompimento desse relacionamento especial com Moscou. O sr. nega essa possibilidade? (acima, Luís Carlos Prestes sendo diplomado senador pelo PCB em 1945)

Ainda não se falou em fim do Pacto de Varsóvia. Pelo contrário, todos necessitam do Pacto de Varsóvia, que serve para eles como uma garantia de estabilidade. Não há perigo nesse terreno. O que se especula é sobre o abandono do marxismo. Mas, o que ocorre é uma volta ao marxismo, uma volta ao leninismo, podemos dizer. As lições de Lênin foram abandonadas por Stálin e seus seguidores. Nos sete anos a que sobreviveu à Revolução de Outubro, pois veio a falecer somente em janeiro de 1924, Lênin deixou grandes ensinamentos sobre como dirigir o Estado socialista que ia se afirmando. Em determinados momentos, até mesmo como retornar ao capitalismo. Quando a União Soviética atravessou o momento difícil da guerra civil contra a burguesia e a aristocracia - uma luta muito dura - Lênin teve de adotar uma série de medidas disciplinares e fiscais e não vacilou em tomar medidas de cunho capitalista, transitórias, mas necessárias para assegurar a estabilidade do momento. Era o lema de dar um passo atrás, para depois dar dois passos à frente. Foi uma grande lição. Lênin mostrou sempre uma grande flexibilidade na aplicação do marxismo. Isto, porque o marxismo é a negação do dogmatismo. Marxismo não é dogma. É a ciência que se aplica a determinada realidade. Se a realidade muda, é preciso mudar a aplicação. O marxismo não é uma ciência que impõe soluções. As soluções dependem das condições concretas de cada momento. Num país aplica-se de uma forma, em outro, a maneira será diferente, dependendo da situação concreta de cada um. Tal flexibilidade Lênin possuía na aplicação do marxismo: ele era até audacioso nesse processo. Se precisasse tomar medidas que pareciam um retorno ao capitalismo, ele as adotava, sem hesitar. Sabia que seria um passo transitório para manter a estabilidade, seja na política, seja no desenvolvimento econômico do país. Tal ensinamento foi abandonado por Stálin e seus seguidores. Só agora, com Gorbatchev, se retoma aquela política de Lênin. Toda a política de Gorbatchev mostra esse retorno ao leninismo, nunca o abandono do socialismo e retorno ao capitalismo, como tenta insinuar a burguesia. Trata-se da retomada do marxismo, sem os desvios estalinistas. 

É notável que, apesar do engessamento do marxismo imposto por Stálin, sempre sobreviveu um pensamento marxista criativo e contestador daquela situação. A que atribui esse vigor?

Ao marxismo. O marxismo não é dogma, é uma ciência que se aplica à realidade objetiva de cada momento. Não se pode fazer no Brasil a aplicação do marxismo, se não se fizer um exame objetivo da realidade brasileira. Só este exame indica o que se fazer, até o ponto que se pode ir, que passos podem ser dados. Não fazer isso, agir dogmaticamente, esse foi o erro de Stálin. Ele queria criar o socialismo do zero. Mas, o socialismo surge em consequência da evolução do capitalismo. É o capitalismo evoluindo que leva ao socialismo. O processo econômico do capitalismo, a medida que ele se desenvolve, desemboca no socialismo. Não se pode precipitar isso, nem desconhecer a realidade objetiva que leva para lá. A lei fundamental do capitalismo, elaborada por Marx, indica que o capitalismo, à medida que se desenvolve, determina a acumulação da riqueza nas mãos de uma minoria cada vez menor e a miséria para massas cada vez maiores. Esta é a evolução do capitalismo. São as massas miseráveis que se transformam em coveiras da burguesia, devido à miséria cada vez maior. É a lição de Marx. 



O processo de acumulação é um velho conhecido nosso, aqui no Brasil. (acima, Prestes senador em 1946)

Sim, veja no Brasil, a riqueza vai toda para as mãos dos monopólios. A burguesia brasileira que ganha dinheiro é aliada dos monopólios, caso contrário não ganharia. Ermírio de Moraes é aliado dos monopólios, o que explica como ganha dinheiro.

Além de ter seus próprios monopólios...

É lógico, é evidente. É aquela lei da evolução do capitalismo: crescente concentração da riqueza em mãos de poucos e difusão da miséria para massas cada vez maiores. É muito claro o quadro brasileiro: basta comparar os lucros dos monopólios e qual a intensidade da miséria das massas. É um quadro inerente ao capitalismo, é uma fatalidade histórica do capitalismo, não pode haver capitalismo sem a ocorrência dessa lei. Não se trata do caráter dos indivíduos. Não são os indivíduos que são maus: o regime capitalista é que leva a essa situação de extrema riqueza de poucos ante a extrema miséria da grande massa da população.

A contestação dos erros do estalinismo não poderia levar, no quadro atual, a uma ameaça real ao socialismo, apesar da sobrevivência do pensamento marxista coerente? 

A aplicação do marxismo em cada momento pode estar sujeita a erros. Tudo depende da rapidez com que se corrigem os erros, para não deixar que se sucedam. Stálin achava que aquilo que ele defendia era verdadeiro marxismo. No caso da agricultura, como já vimos, ele insistiu no erro da coletivização. Hoje, existem fazendas estatais, existem famílias que arrendam terras e outras formas de produção rural - e todas são tão compatíveis com o socialismo quanto os kolkhozes. Por que impor a estatização a toda indústria, como ele impôs? Hoje, numerosos setores e serviços já funcionam completamente independentes do Estado. 



A versão dominante na imprensa ocidental é a de que as transformações no Leste Europeu expressam um fracasso do socialismo. Qual o saldo destes pouco mais de 70 anos de socialismo? (foto acima, da esquerda para a direita, o poeta chileno Pablo Neruda, Prestes e o escritor Jorge Amado)

Na aplicação pratica do socialismo sempre se está sujeito a cometer erros. E erros foram cometidos. Agora estão pagando por esses erros. Mas, o processo atual é de correções. Repito que é importante notar que nenhum dos países socialistas está pregando, por exemplo, a dissolução do Pacto de Varsóvia, o afastamento em relação à União Soviética ou a separação do campo socialista. Nenhum daqueles países pretende voltar ao capitalismo. Todos aqueles países já conquistaram uma etapa de uma sociedade socialista. Depois que se experimenta isso, não se volta atrás, não. Quem pôde viver em regime socialista, não aceita mais as condições do capitalismo, pois seria negar o valor de um nível mais alto, da sociedade diferente que já alcançaram - uma sociedade igualitária, onde não existe a exploração do homem pelo homem. Note que inúmeros alemães orientais, que tinham emigrado para o lado ocidental, acabaram retornando. Era essencial para eles retomar aquele convívio de base socialista. Não há perigo de um retorno ao capitalismo, pois todos aqueles países querem seguir adiante na construção do socialismo, corrigindo os erros e resolvendo seus problemas de acordo com suas respectivas realidades objetivas. No caso da Polônia, por exemplo, o país segue seu caminho próprio. Lá ocorreu que o Partido Comunista cometeu muitos erros e logo depois convocou eleições. Ora, se um partido comete excesso de erros e convoca eleições, naturalmente vai perder. Foi o que ocorreu. O povo votou no Solidariedade. Mas, o Solidariedade não tem quadros para dirigir o país, eles são quadros sindicalistas. Assim, tiveram que entregar os ministérios mais importantes para o Partido Comunista, que dispõe de quadros preparados para a administração. 

Na Polônia, existe uma ação especial da Igreja Católica.

A igreja tem, de fato, uma ação particular, principalmente quanto à pequena propriedade, que está preservada até hoje devido à igreja. Não se pode tocar na pequena propriedade, porque se cria um problema religioso muito sério. Então, o governo polonês precisa manter esse sistema, até que, pela educação progressiva, pela elevação do nível de consciência social do povo, isso se modifique naturalmente, sem choque, sem ruptura com a igreja.


O Solidariedade é força eleitoral inegável. Ao mesmo tempo, o PC polonês se renova. Haverá um instante de encontro entre as duas forças? (acima, Prestes em 1959)

Seria uma temeridade tentar predizer o caminho que se seguirá. Todos aqueles povos estão em efervescência. Estão surgindo novos partidos, o PC desapareceu, na prática, devido a sua impopularidade, aos erros que cometeu - isto não só na Polônia, mas também na Hungria, na Alemanha Democrática, etc.. O PC está sendo refundado e o processo de renovação avança. Mas, nenhum deles abandona o Pacto de Varsóvia, pois sabem que esta aliança é que lhes dá garantia de integridade territorial. Sem o Pacto de Varsóvia, a Alemanha Federal pode tentar apossar-se de qualquer um desses países, que já foram território alemão - Polônia, Hungria, parte da Tchecoslováquia. 



Pelo que sovietólogos consideram - muitos estudos são de décadas passadas - o processo por que passa o Leste Europeu é não só sadio, como natural e necessário. Afirmavam já naquele tempo que a renovação política do bloco soviético seria uma etapa necessária, por força do desenvolvimento econômico e social que experimentaram os países socialistas. Segundo tais teses, países industrializados ou em avançado processo de industrialização, aquelas sociedades socialistas já não suportariam o processo político autoritário que marcou a implantação e a primeira fase do regime. Assim, glasnost e perestroika seriam passos necessários, sem os quais se daria um descompasso estrutural entre regime e sociedade. Adotar o pluralismo e institucionalizar o princípio da divergência - as bases da vida democrática - seriam mudanças profundas, mas nunca o abalo do socialismo naqueles países. O sr. concorda? (foto acima, Prestes em Moscou na década de 1970)

Acho que tal tese não corresponde à realidade. Isto, porque o país do bloco socialista onde há mais democracia é justamente a URSS. Lá já se aplicam, de fato, os princípios democráticos, há eleições frequentes. Ninguém mais democrata que o camarada Gorbatchev. 

Como o sr. analisa a participação política do povo brasileiro?

O nível de organização da classe operária brasileira é ainda muito baixo. Talvez não tenhamos mais que 10% da classe operária organizada. Não passa disso. Os sindicatos estão vazios. Veja, por exemplo, o Sindicato dos Metalúrgicos do Rio, que é um dos mais organizados: congrega apenas uma parcela insignificante do total de metalúrgicos. Isso ocorre também em S. Paulo. E só há movimento sindical nos grandes centros. Veja as centrais sindicais, mesmo a CUT. Passam-se meses e meses, sem qualquer luta concreta pela melhoria do padrão de vida dos trabalhadores, que hoje vivem em miséria absoluta. Quem pode hoje viver no salário mínimo? É a fome. Vivo no Rio de Janeiro desde os seis anos de idade e posso afirmar, com segurança, que nunca vi tanta miséria e tanta fome. Em agosto passado (1989), o salário mínimo era de 120 cruzados novos, que correspondiam a 30 dólares. Portanto, o salário mínimo no Brasil era de 30 dólares, apenas. No mesmo mês, o salário mínimo na Espanha, o menor da Europa capitalista, era de 500 dólares; na França, 560; nos Estados Unidos, 800 dólares. Nós temos o menor salário mínimo do mundo. Em 1985, nosso salário mínimo era de 600 cruzeiros, um terço do que deveria ser. E continua a cair, anos após ano.


A fraca organização dos trabalhadores no Brasil não seria uma decorrência do baixo nível de reflexão teórica dentro de nossos partidos progressistas? Parece ser um fato que não temos pensadores que produzam, continuamente, reflexões sobre a realidade para orientar a ação política. (foto acima, Luís Carlos Prestes em seu retorno do exílio em 1979 e do lado direito sua segunda esposa Maria Prestes)

No Brasil, é preciso reconhecer que não há prática de partidos políticos. Os partidos são aleatórios, surgem num determinado momento e logo desaparecem. Não há tradição de partidos políticos no país. Isso influi na má organização dos trabalhadores, no atraso e na ignorância política. O pior mal da classe operária brasileira é seu atraso cultural, o analfabetismo. Quem não é analfabeto, é apenas semi-alfabetizado. Ficam sem condições de lutar por seus próprios interesses. Naturalmente, a ignorância da classe operária é mantida pelos próprios governos. Os governos fazem questão de manter a classe operária longe da educação, porque quanto mais ignorante, mais o trabalhador estará distante da luta política por seus interesses. Falta ao Brasil um partido revolucionário, que eduque as massas. Temos aí dois partidos comunistas, que já não têm nada de comunistas. Apenas o nome (trata-se do PCB e do PC do B). E mesmo o nome agora querem abolir. 

Qual a tarefa atual dos socialistas no Brasil? 

A primeira é cuidar da elevação do nível de consciência política e ideológica dos trabalhadores. Sem isso, não se avançará na organização do povo para a defesa de seus interesses. O atraso é muito grande. Basta lembrar que a classe operária brasileira não dispõe de um periódico que seja seu. Há jornaizinhos, quase folhas volantes, sobre os quais a pessoa passa a vista, rapidamente, e não extrai nada de mais útil. Não há uma imprensa operária em seu sentido próprio. No caso do PCB (Partido Comunista Brasileiro), há o jornal "Voz da Unidade", que leio toda semana, mas sem nunca encontrar algo que seja de utilidade ao trabalhador. O Partido Comunista deve ter como tarefa principal educar as massas operárias, elevar seu nível de consciência. Enquanto não fizer isso, permanecerá como uma minoria para ditar regras, mas sem qualquer influência. Para ligar-se às massas, é preciso saber levantar os interesses das massas. E são elementos completamente desligados das massas. Quem sabe quem é o presidente do PCB hoje? Ninguém conhece, ninguém sabe o que ele faz, em que se distingue como dirigente de um partido revolucionário. O outro partido comunista é o do João Amazonas (Partido Comunista do Brasil, antiga dissidência do PCB). O João Amazonas é um cabeça parada. É um metafísico por excelência. O que aprendeu na escola do partido (PCB), lá por 1951-52, ele cristalizou na cabeça e não mudou mais.



Como o sr. frisou bem, cada agrupamento progressista tem seu instrumento de divulgação, mas de penetração reduzida. Não se chega nunca a uma colaboração que viabilize um órgão de comunicação capaz de se transformar num instrumento do trabalhador. (foto acima, Prestes e sua filha a historiadora Anita Leocádia Prestes em 1989)

É preciso colocar como meta elevar o nível de consciência dos trabalhadores. Veja o PT (Partido dos Trabalhadores). Tem uma camada operária maior, mas é um partido que não tem a ideologia do proletariado. No Brasil, ninguém nasce socialista. Todos nós nascemos sob a influência da ideologia burguesa e nela somos criados. Mesmo a família operária tem a ideologia burguesa como a predominante. Mas, o trabalhador tem de lutar para substituir tal ideologia pela do proletariado. No caso do PT, isto não ocorre nem com o dirigente máximo, o Lula, que é um operário talentoso, mas que desconhece totalmente a ciência do proletariado. Lula precisaria estudá-la, para mudar sua ideologia burguesa e adotar a do proletariado. O partido dele não é do proletariado. O PT é um partido burguês como qualquer outro. Como diferença, tem apenas um maior número de operários, o que não o torna um partido operário. Para adquirir a ideologia do proletariado, é preciso estudá-la. Mas, em lugar de dar o exemplo, Lula se recusa a fazê-lo. Toda critica que faço ao Lula é com o objetivo de levá-lo a estudar o marxismo. Mas, ele acha que quero destrui-lo. O que pretendo é que ele adquira a ideologia do proletariado e exerça a função de líder de um partido que pode se transformar em revolucionário, do proletariado.


Mesmo em camadas progressistas, penetrou o vírus do anti-marxismo. (acima, Prestes em 1990, pouco antes de sua morte)

É o que ocorre naquela ala intelectual do PT. Há trotsquistas, Convergência Socialista - são inimigos do marxismo. Dentro do PT há gente inteiramente contrária à ideologia do proletariado. De qualquer maneira, é o partido mais avançado hoje. Quanto ao PDT (Partido Democrático Trabalhista) de Briola, carece de ideologia e não tem organização. O próprio Brizola não se interessa por organizar o partido, talvez porque imagine que o partido organizado pode passar por cima dele. Por aí você vê que não tenho ilusões a respeito do quadro partidário brasileiro. Mas, entendo que o PDT é o partido que pode realizar grandes coisas, devido à liderança e às qualidades de Brizola, tem muito de caudilho, mas é patriota com intensidade, é um homem que quer avançar e em determinadas circunstâncias é o melhor candidato. Agora mesmo, aqui no Rio de Janeiro, sem dúvida Brizola é o melhor candidato ao governo estadual, em outubro.

É possível que a frente progressista gerada pelo segundo turno das eleições presidenciais resulte numa ação conjugada, que leve a projetos comuns, como o de estabelecer uma imprensa capaz de romper o bloqueio de comunicação?

Acho que o único sintoma positivo nesse sentido é a aproximação entre nós, do PDT, e o PT. Se estes dois partidos se mantiverem unidos, isso significará uma força importante. Brizola tem grande influência em diversos estados, enquanto o PT obteve ótimos resultados. Se o PDT e o PT se unirem em torno de uma plataforma comum, unitária, podem se transformar numa força política capaz de obter vitórias decisivas e exercer influência positiva nos rumos políticos do país (fim). 

Entrevista concedida à revista mensal Cadernos do Terceiro Mundo, nº 129. Rio de Janeiro, Editora Terceiro Mundo Ltda., 1990, pags. 48-52. 

Crédito das imagens: 

Prestes em 1945; em 1934; recebendo o diploma de senador em 1945; com o poeta Neruda e o escritor Jorge Amado em 1946  e com a filha Anita Leocádia: Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro de Anita Leocádia Prestes. São Paulo: Boitempo, 2015.   

Fotos de Prestes em 1959 e em Moscou na década de 1970: Wikipédia.

Caricatura de Álvarus e no retorno do exilio em 1979: Prestes: lutas e autocríticas. Dênis de Moraes e Francisco Viana. Petropólis: Editora Vozes, 1982.

Prestes na época da Coluna em 1928: Getúlio Vargas: biografia política. De John W. F. Dulles. Rio de Janeiro: editora Renes, 1967. 

Prestes em 1990: Cadernos do Terceiro Mundo, nº 129. Rio de Janeiro, Editora Terceiro Mundo Ltda., 1990, pag. 48. 

Prestes por Portinari: 

https://ceppes.org.br/nossa-historia/herois_da_al/quem-somos

sexta-feira, 12 de março de 2021

Vamos enganar o Dória??????

 


O brasileiro médio; aquele que tem a sua padaria, o seu armarinho, a sua papelaria, o seu açougue, possui um salão de beleza, um pequeno pet shop (cachorraria seria o termo mais adequado aqui); enfim aqueles a quem a mídia costuma chamar de empreendedores e empresários (portanto, quase todo mundo agora é empresário, neste capitalismo estranho) acrescentando o balconista que assimila o que o seu empregador diz, pensando estar na mesma condição social de renda (e que também se considera empreendedor); dizem agora em que foi estabelecido o confinamento e o toque de recolher no estado de São Paulo:

- Ah, estamos abertos sim. Estamos enganando o Dória!

Enganando o Dória? Sim, pois enganar o governo é a maior de todas as espertezas neste momento, aliás o máximo que essas pessoas irão obter na vida na condição de empreendedores ou de capitalistas sem capital. Até elegeram um presidente que engana o governo, olhem só! Não pagar a Previdência Social Pública é outra dessas espertezas. 

- Ah, não quero ser registrado. Eu recebo tudo por fora. 

Ou então contribui (os que podem) com a Previdência Privada e só na hora de receber, trinta anos depois, vai ver a roubada em que entrou. Nem aposentadoria e nem saúde adequada, e quando precisar de um atendimento médico vai recorrer ao SUS (Sistema Único de Saúde), aquele que vive da contribuição que ele nunca deu e que o grande capitalista (o verdadeiro) quer que acabe, porque eles querem explorar esse lucrativo filão. E quando chega no SUS, já no extremo da gravidade, porque muitas vezes nunca fez um exame de próstata, nunca fez mamografia, nunca mediu a pressão, nunca fez um eletro e aí quer atendimento VIP dos funcionários e médicos, que se encontram pra lá de estressados, sobretudo agora com o covid-19. E se disserem pra essas famílias que não há leitos e nem UTIs disponíveis? As mesmas dão escândalo, filmam e levam lá pro Datena ou pro SPTV, justo na mídia que quer privatizar tudo.

- Ah, colocaram meu pai (mãe) na UTI e não temos nenhuma notícia. Nem podemos visitar...

Pois é, agora nem UTI têm. Nem leito têm. Nem corredor têm. Nem funerária têm. E a continuar assim, no cemitério da Vila Formosa de São Paulo (o dos pobres) teremos valas, porque covas mesmo só no sobrenome do prefeito, o qual também quer privatizar tudo. Até os cemitérios!

Mas, no final das contas, todos conseguirão se sair bem, pois todos enganarão o governo... 

Crédito da imagem:

O pateta Curly Howard do trio de humoristas estadunidense Os Três Patetas: 

https://stooges.fandom.com/wiki/Curly_Howard

sábado, 6 de março de 2021

Genesis, Esther e outras novelas bíblicas...


O caro leitor (a) muitas vezes já deve ter ouvido dizer que fulano ou sicrano poderia ter encontrado o caminho do bem se tivesse religião. Ah, mas com certeza quem afirmou isso não estava se referindo ao Islão, ao Bramanismo, ao Xintoísmo, à Umbanda, ao Budismo (embora este não seja exatamente uma religião, exceto para o senso comum) entre outras correntes, mas sim ao Cristianismo. Porém, temos verificado nos tempos atuais, entre vários daqueles que se dizem praticantes desta última (sejam católicos ou protestantes-evangélicos) um aumento dos sentimentos de ódio, preconceitos, atitudes violentas dos mais variados tipos, amparados em um fundamentalismo que não condiz com os ensinamentos expressos por aquele que deu origem a essa religião, Jesus de Nazaré ou o Cristo. 

Em todos os estudos e pesquisas referentes ao Jesus histórico (ver o nosso post dividido em duas partes, Jesus: um personagem da história), o que se verificou é o de um pregador que buscava redirecionar a tradição hebraica contida no Antigo Testamento, tratando a todos como iguais dentro de um ambiente de fraternidade, com desapego aos bens materiais e de repartição daquilo que era essencial à vida, como os alimentos. O simbolismo da ceia nada mais é do que isso, da mesma forma que a "multiplicação" do vinho, dos pães e dos peixes. Pelo que se sabe do ponto de vista histórico, Jesus foi uma figura solidária e presente, sobretudo diante dos mais necessitados (pobres, doentes e idosos). Deu voz às mulheres, algo inédito há dois mil anos atrás. Desafiou as autoridades e os comerciantes do templo em Jerusalém, o que talvez lhe tenha rendido a própria condenação à morte. E sobretudo, estabeleceu a imagem de um deus acolhedor e presente na vida das pessoas. 

No entanto, por que muitos daqueles que hoje se dizem cristãos promovem atitudes tão contraditórias em relação ao que nazareno pregou? 

A jornalista e educadora Elaine Tavares nos proporciona uma pista para essa questão, ao observar com enorme lucidez a temática das novelas bíblicas, como a que se encontra atualmente no ar pela TV Record, Gênesis (foto acima, os atores que interpretam Adão e Eva). Quase todas se baseiam no Velho Testamento, o qual pouco tem a ver com os ensinamentos cristãos. A analise da jornalista poderia render um excelente ponto de partida para uma dissertação ou tese, pela forma precisa como expõe o assunto. 

Como sempre, deixo ao leitor o espaço necessário para a reflexão. Agradeço à jornalista a autorização para a publicação de seu texto: 


Quem já leu essa imensa obra (a Bíblia) sabe muito bem que ela é formada por vários livros agrupados no Velho Testamento e no Novo Testamento (que inclui também o Apocalipse). O Velho Testamento é a parte que define a religião judaica até a chegada do Cristo. É um conjunto estranho e complexo, recheado de violência e fundamentalismo. O Novo Testamento é formado pelos Evangelhos e conta a vida de Jesus, o Cristo, aquele que vem para realizar com os homens uma nova aliança e que inclui o Apocalipse, cheio de profecias sobre um suposto fim do mundo. Pois logo que a Record foi comprada pela Igreja Universal, a igreja iniciou sua pregação midiática de uma forma muito esperta. Em vez de investir nos cultos - embora eles estejam ali - preferiu apostar nas novelas e séries. Afinal, como bem já definiu o sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos, nosso país é movido à telenovela. Aqui, esse gênero de dramaturgia tem um alcance inacreditável. Quase toda a usina ideológica da classe dominante se expressa nesses folhetins, de maneira subliminar e com uma eficácia impressionante. 

A Globo, que ainda é líder no gênero, é perita em fazer a nação brasileira amar empresários, fazendeiros, usineiros, mineradores, enfim, todas as frações da elite dominante. 

Pois a Record também apostou na novela para trabalhar a questão da religião. Começou com a História de Esther, em 2010 e foi trazendo, a partir de novas produções, várias partes do Velho Testamento em forma de folhetim. Amores, intrigas, assassinatos, violência e tudo o mais que recheia essa primeira parte da Bíblia, mas sobretudo que existe um povo eleito: o de Israel. Ou seja, tudo visceralmente ligado ao universo simbólico do líder maior da igreja, Edir Macedo, que se acha a encarnação do Rei Salomão. É perfeito. As novelas "Os Dez Mandamentos", em 2016, e "A Terra Prometida", em 2017, alcançaram índices incríveis de audiência e chegou a ultrapassar a Globo. E elas nada mais foram do que a narrativa do povo de Israel fugindo do Egito. Nelas se pode ficar frente a frente com esse deus vingador, capaz de trazer inúmeras pragas ao povo do Egito apenas para ferir o Faraó, ou que deixou o povo minguar no deserto porque alguns decidiram adorar outro deus. E esse é o deus que a igreja de Macedo professa. Um deus que se vinga, um deus que mata, um deus intolerante, um deus insaciável, um deus que tem filhos prediletos e que odeia quem não lhe rende homenagens. 

Quem conhece as escrituras sabe que o Cristo vem justamente para quebrar a ideia de um deus assim. Jesus propõe uma nova aliança, ele não tem um povo eleito, ele se senta com os gentios, ele toma água da Samaria, ele ama os fracos, os lazarentos. Não traz a ideia de um deus vingador, mas de um deus de amor. E esse não é o deus que a Record incensa. Tanto que a novela que fala sobre Jesus não teve lá muito sucesso. Jesus é fraco, ele morre no final. Os grandes sucessos são os que estão colados ao deus de poder, ao deus da morte. Por isso não é de estranhar que tantos novos-evangélicos possam defender pautas tão estranhas ao universo de Jesus como a pena de morte, o acesso às armas, a morte aos petistas, comunistas, gaysistas, umbandistas e globalistas. É porque eles estão acostumados com as histórias de um deus que não poupa ninguém além dos seus seguidores fieis. Também não é sem razão que toda essa gente, incluindo aí os católicos fundamentalistas, considera o Papa Francisco, a besta encarnada. Porque Francisco professa um deus de amor, que é um desconhecido para eles. 

Então, eis que nesse momento tão obscuro da vida brasileira lá vem a Record com mais uma novela bíblica. O Gênesis. o começo de tudo. O criacionismo. O homem feito do barro por um deus caprichoso que vai se expressar em momentos colossais da vida humana: a queda do paraíso, a disputa entre irmãos pelo poder, a busca pelo poder real, o afogamento de toda a humanidade porque não rendia graças a ele, a destruição de Babel para impedir que a criação se aproximasse do céu, e muito mais. O deus da vingança em todo o seu poder. O deus que fundamentaliza a espiritualidade. 

Tudo isso é para dizer que a indústria cultural não dá ponto sem nó. Ela expressa as ideias da classe dominante. E a classe dominante quer forjar uma nação vestida de medo para poder aplicar sobre ela o seu poder. Medo do deus vingador, medo do comunista, medo da mulher emancipada, medo do negro, medo do diferente, medo de tudo. Então, contra esse medo vem a mão dura da polícia, do pastor, do padre, do patrão. 

Eu tive uma criação católica. Minha mãe era devota e no seu exemplo ia nos ensinando sobre a religião. Mas ela era jesuânica, agarrava-se à nova aliança, entendia que era chegada a hora de um deus dos de baixo. Já bastava de reis, rainhas, templos suntuosos, líderes de mão de ferro. Ela cria em um Jesus amoroso, vestido em sandálias, comendo com os pecadores, as putas, os esquecidos. E é nesse deusinho que eu creio também. Mas, infelizmente, a voz que ecoa é a do Macedo. Ele tem televisão. E nessa usina do ódio vai gerando um povo sem compaixão. 

Enquanto isso, o Cristo, o que veio para zerar o horror do Velho Testamento, segue sendo chicoteado, torturado e morto. Todos os dias nas ruas das nossas cidades.  

Elaine Tavares é jornalista, radialista e educadora. Mestre em Comunicação Social pela PUC-RS e doutora em Serviço Social pela UFSC. É coordenadora de comunicação do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA) da UFSC. 

Crédito da imagem: 

https://recordtv.r7.com/genesis/novidades/voce-sabe-tudo-sobre-adao-e-eva-em-genesis-faca-o-teste-10022021