Pesquisar este blog

domingo, 4 de março de 2018

Leon Trotsky, Ramón Mercader e o amor aos cachorros...




Caro leitor, há pouco mais de um mês este blog fez uma postagem sobre a assassinato de Leon Trotsky, ex-integrante do governo soviético. Trata-se de um fato difícil para se indicar uma leitura específica, uma vez que a visão maniqueísta permeia de forma quase absoluta as considerações referentes a esse acontecimento. Como uma possível fonte sobre o episódio, me foi lembrada a obra do escritor cubano Leonardo Padura: "O Homem que Amava os Cachorros" (Editora Boitempo, 2013). Trata-se de um romance, algo que fica absolutamente claro já na própria capa do livro (na foto acima). Não fiz a apreciação da obra para compor a postagem, mas li o livro logo depois e acredito que pouco teria para ser acrescentado no que já está escrito e nas informações básicas a respeito desse triste episódio. Como dissemos, trata-se de um romance e no mesmo o autor pode se permitir certas liberdades ou alçar vôos, os quais seriam impróprios para quem exerce um trabalho de cunho eminentemente historiográfico.



Por outro lado, gostaria de fazer algumas observações sobre o livro de Leonardo Padura (foto acima), uma vez que na apresentação assinada por Frei Betto afirma-se que o mesmo "é e não é uma ficção". A respeito das qualidades literárias desse trabalho não há muito o que comentar, pois revela uma escrita bem construída e de grande qualidade, embora haja um certo exagero em qualifica-la como um thriller ou uma história policial (seria melhor como um romance de espionagem), até porque o seu desfecho já é bem conhecido, como também os personagens envolvidos. Por exemplo, para o leitor minimamente informado sobre o assunto é absolutamente previsível que o homem que levava os cachorros para passear na praia fosse Ramon Mercader, o assassino de Trotsky. Aqueles não familiarizados com o fato terão uma impressão absolutamente reveladora. Mas é exatamente aí que reside o problema. Esse público pode tomar a narrativa como sendo fiel aos acontecimentos. Muito dificilmente o leitor comum conseguirá ter o discernimento necessário para proceder a uma ponderação, a não ser que faça o confronto com outras leituras, outras falas, além de desenvolver uma pesquisa por seus próprios meios. 
Em geral, os grandes romances históricos, e aí penso em Marguerite Yourcenar, I. F. Stone ou Umberto Eco, preenchem determinadas lacunas que os historiadores, dependentes das fontes, ficam incapacitados em se aventurar, embora torne-se necessária a formatação do contexto, a fim de estabelecer o ambiente e o clima que permita inserir a narrativa. Nesse aspecto, Umberto Eco mostra-se um autor que domina totalmente o tema que trabalha e, mesmo tratando-se de uma ficção, a obra agrega uma contextualização histórica impecável. Algo como a micro-história também faz, embora com finalidades comprometidas com a pesquisa historiográfica, utilizando recursos e fontes muitas vezes desprezados pelos estudiosos da área. Como afirma Carlo Ginzburg, ficou para trás o tempo em que os historiadores trabalhavam apenas com documentos escritos. 



Por sua vez, a morte do ex-líder soviético Leon Trotsky (na foto acima, em 1940) ainda carrega um agravante, pois trata-se de um acontecimento inserido em uma controvérsia que dividiu (e divide) o movimento socialista internacional. Trabalhar com tal fato sem que a analise pareça pender para qualquer um dos lados, seja dos trotskistas ou dos estalinistas (ou ainda dos que se aproveitam dessa fratura para inviabilizar o projeto socialista) é algo extremamente difícil. Bem, mas a objetividade é a essência do trabalho do historiador, por meio do questionamento e de pautar a analise em bases sólidas, a fim de fundamentar um argumento. Nesse sentido, como compreender a obra em questão? Apenas como literatura? Mas a mesma estava sendo vendida nos encontros e simpósios para debater os cem anos da Revolução Russa como se fosse, de fato, um trabalho historiográfico. Nas redes sociais o livro de Padura é recomendado por professores e pesquisadores, como fonte de informação para entender os rumos da União Soviética e da sua própria formação. Nesse sentido, algumas questões necessitam ser observadas dentro desse trabalho.



Não é um ponto absolutamente confirmado que Ramon Mercader (nas fotos acima, sem data) tenha recebido as suas instruções e o seu preparo para a ação contra Trotsky na União Soviética. Alguns autores defendem que as mesmas poderiam ter sido realizadas na França. Mercader não possuía o perfil de um agente que apreendeu o treinamento mais sofisticado do Comintern  (Internacional Comunista), como o que recebeu por exemplo, Olga Benário, esposa de Luis Carlos Prestes. A mãe de Ramón, Caridad Mercader é apresentada como uma mulher cheia de rancor, e pouco afeita aos filhos, vistos apenas como instrumentos de seu ódio à sociedade capitalista. Há poucos elementos concretos para que se possa traçar um perfil psicológico dessa figura, uma revolucionária comunista convicta como milhares de outras que participaram da Guerra Civil Espanhola. O próprio livro de Padura lembrou outras mulheres com essa mesma característica, como por exemplo, Africa de las Heras e Dolores Ibárruri, conhecida como La Pasionaria. 



E Ramón Mercader? A princípio sempre esteve disposto a cumprir a missão que lhe foi oferecida, muito provavelmente sem os questionamentos ou crises de consciência tão enfatizados por Padura. Suas convicções eram as de um comunista ciente de que prestava um serviço inestimável ao governo soviético e à causa da luta em prol do socialismo. O que levou à sua morte? Uma criminosa contaminação por radioatividade? Suposições que não puderam e não poderão ser efetivamente confirmadas (na foto acima, Ramón Mercader em Cuba, em 1975). 
Trotsky incomodava com suas denúncias o governo soviético? Quanto a isso não há duvida, embora, como bem lembra o professor Gilberto Maringoni no prefácio da obra de Leonardo Padura, a sua influência fosse muito limitada no âmbito do movimento comunista internacional, o que ficou evidente no fracasso da sua tentativa de reunir a Quarta Internacional (para rivalizar com a Terceira Internacional fiel ao regime soviético). E aí reside o desastre que se constituiu para a esquerda a sua eliminação sob a benção de Stalin, bem como os expurgos promovidos por este a partir de 1936. Convém também interrogar a complacência do governo norte-americano e da mídia local com o ex-líder do Exército Vermelho, bem como o grande número de seus seguidores arregimentados nos Estados Unidos. Basta lembrar que muitos de seus guarda-costas eram norte-americanos, bem como aquela que foi responsável por apresentar Trotsky ao seu carrasco, a triste Sylvia Ageloff.
A crítica feroz de Trotsky contra Stalin pelo acordo de não-agressão assinado com Hitler em agosto de 1939, como prova de que o líder soviético traia a causa comunista, equipara-se em fragilidade à mesma crítica feita por Moscou de que Trotsky aliara-se aos nazistas para derrubar Stalin. Vale lembrar que as potências ocidentais, incluídas aí a Inglaterra e a França levavam a termo a sua política de apaziguamento, a fim de não provocar Hitler. As mesmas esperavam que o líder alemão fosse mover a sua máquina de guerra primeiramente contra a União Soviética e de que Stalin optou pelo acordo com o governo nazista depois de fracassadas as negociações similares com Londres e Paris.
O já citado prefácio de Gilberto Maringoni, o qual aliás, ao meu ver, não se alinha com as conclusões do autor da obra, acende algumas luzes dentro desse quadro absolutamente sinistro, necessário para os que pretendem escapar de um possível desencanto com a causa socialista. A subida de Stalin ao poder não se deu por alguma manobra ilícita ou "golpe de mão". Ele alcançou a posição de secretário-geral utilizando de forma legítima a estrutura do Partido Bolchevique (depois Partido Comunista), inclusive com o apoio de muitos daqueles que seriam os seus supostos opositores e posteriormente afastados. Além disso, a revolução internacional clamada por Trotsky mostrara-se uma impossibilidade no decorrer da década de 1920, o que levou teóricos como Bukharin a defender a industrialização e as medidas socializantes, como a coletivização da terra, o que deu origem à concepção do "socialismo em um só país". Trotsky interpretou tal diretriz como uma traição aos ideais revolucionários e o início de um processo de burocratização do Estado Soviético. Como afirma ainda Maringoni, Stalin não era um grande teórico, mas por outro lado, era "um tático excepcional" e obteve exito em isolar Trotsky juntamente com a chamada "oposição de esquerda". E o resto já sabemos. Cabe lembrar, como aliás fica claro no próprio livro de Leonardo Padura, que Leon Trotsky considerava a União Soviética como a grande fortaleza do socialismo proletário, apesar de Stalin.
Uma ultima observação sobre o "o Homem que Amava os Cachorros" insere-se na percepção do autor no que diz respeito à sua terra natal (Cuba), de um sentimento absolutamente negativo. O que nos leva a uma conclusão muito simples, o fracasso caberia muito mais à suposta utopia do socialismo do que ao estalinismo, dentro do foco proposto por Leonardo Padura. No que diz respeito a rejeição em relação às minorias, como no caso dos homossexuais, a mesma era presente em praticamente todo o mundo no início da década de 1970 (inclusive nas ditas democracias liberais) e não algo exclusivo do regime cubano, embora seja fundamental a lembrança desses eventos. A exclusão tão acentuada de autores e escritores contrários ao governo socialista afirmada no personagem Ivan, não é capaz de explicar o próprio Leonardo Padura, autor consagrado e premiado em seu próprio país. Mas explica os motivos que levaram a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) a elogiar e recomendar a leitura da obra em seu site, onde se encontra uma resenha do trabalho.
É um romance e o autor não o nega. A ressalva refere-se ao uso que se faz do mesmo, para além da esfera dos romances. Basta destacar que a atribuição do prefácio foi dada a um historiador e não a um crítico literário. Enfim, como o nosso blog costuma indicar, um livro para aqueles que querem saber mais, mas também questionar mais...
Crédito das imagens: 
Foto de Leonardo Padura: Wikipédia.
Foto de Trotsky em 1940 no México:
http://www.socialistamorena.com.br/leon-trotski-em-1930-o-perigo-fascista/
Ramón Mercader em foto sem data: 
http://murderpedia.org/male.M/m/mercader-ramon-photos.htm
Ramón Mercader em Cuba no ano de 1975:
http://www.elvigia.net/general/2015/8/19/asesino-fiel-208075.html

Um comentário:

  1. Texto muito sensato, Jonas! É sempre importante lembrar dessas questões e olhar para uma obra literária como tal.

    ResponderExcluir