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sábado, 4 de novembro de 2023

A ascensão do Império Chinês e a Rota da Seda: primeira parte

 

Civilização surgida na Antiguidade, com uma história superior a quatro mil anos, dos quais mais de dois mil como Estado imperial, tendo uma cultura que subsiste e se revigora (acima, guerreiro de terracota, dinastia Qin, século III a.C.). Em seu período como império até os tempos modernos, a China foi a maior potência econômica e militar do mundo. Além disso, deixou um legado que transcendeu as suas fronteiras originais, por meio de invenções como a seda, o papel, a bússola e a pólvora, apenas para ficar nas mais conhecidas. A formação do Império Chinês ocorreu na mesma época em que os romanos iniciavam a conquista do mar Mediterrâneo, no século III a.C.. Duas civilizações que sabiam da existência uma da outra (porém sem contatos diplomáticos) e que chegaram a trocar produtos, dos quais o mais conhecido foi a seda, muito apreciada nas províncias orientais de Roma. Não é por outra razão que o caminho por onde o produto era comercializado teve este nome: Rota da Seda. 

Atualmente, o acelerado processo de desenvolvimento da República Popular da China nada mais seria do que a retomada desse papel histórico de grande potência, interrompido no século XIX e início do XX, em função do domínio imperialista promovido pelas nações industriais do Ocidente. Tendo como inspiração esse passado duradouro, a Nova Rota da Seda está sendo concebida pela China junto a vários governos orientais, como forma de integração econômica e comercial para se tornar um novo modelo de globalização, inicialmente centrada na Eurásia (lembremos que em termos territoriais, a Europa é uma extensão da Ásia), mas que deverá incluir povos e nações dos demais continentes. 

A formação da China guarda semelhanças com as demais civilizações da Antiguidade Oriental, sobretudo Egito, Mesopotâmia e Índia. O fato desses antigos povos se situarem no entorno das grandes bacias hidrográficas foi fundamental (para muitos historiadores até determinante) para a formação dessas sociedades. 


No caso chinês esse papel coube ao rio Huang Ho ou rio Amarelo (no mapa acima, o curso dos rios Huang Ho ao norte e Yang Tsé ao sul). O nome desse curso fluvial de 5.464 quilômetros (segundo rio da China depois do Yang Tsé ou rio Azul) guarda uma boa justificativa. Em meio a uma planície relativamente seca e empoeirada, o curso do Huang Ho carrega um sedimento amarelado, proveniente das montanhas da Mongólia ao norte, o qual durante as inundações se acumula no solo. Esse material fértil, chamado de loesse (do alemão löss) também trazido pelos ventos, contém na sua composição quartzito, calcário e calcita, além do óxido de ferro, do qual provém a cor amarelada. Portanto, o Huang Ho pode ser considerado o berço da civilização chinesa. O seu curso foi alterado ao longo do tempo, tanto pelas inundações como pela ação humana, através da construção de canais navegáveis e de irrigação. A sua bacia foi parcialmente desflorestada já no período anterior à formação do Império Chinês. Os bosques de carvalho foram utilizados para a construção de casas, móveis e na obtenção de lenha. Algumas áreas escaparam desse processo, o suficiente para abrigar muitos animais, como veados e patos selvagens. 

Os textos antigos mencionam os reis Xia como sendo a primeira dinastia a governar a China, tendo como fundador Yu, o Grande, o qual teria governado aproximadamente no final do terceiro milênio antes de Cristo (acima uma representação do rei Yu feito em seda, século XIII da nossa era). Não existem evidências arqueológicas a respeito dessa casa real e muitos historiadores a consideram mitológica, o que não significa que a sociedade chinesa não estivesse em processo de transformação nos finais do Neolítico (última etapa da Pré-História). A agricultura era a principal atividade econômica e possivelmente já fosse conhecida a irrigação do solo, como também a domesticação de animais como bois, porcos, cães, cabras e carneiros. A produção da seda era conhecida desde tempos imemoriais. 



A Pré-História chinesa termina com a subida ao poder da dinastia Shang, cuja origem vamos encontrar no nordeste do território chinês, na atual província de Henan (na imagem acima, o rei Tang, primeiro governante da dinastia Shang, numa representação do século XIII da nossa era). 



O período Shang, entre 1600 e 1100 a.C. (antes de Cristo) marcou o início da Idade do Bronze na China e de vários aperfeiçoamentos, sobretudo no campo militar (acima, vaso ritual de bronze da época da dinastia Shang) .  


O surgimento dos carros puxados a cavalo trouxeram maior mobilidade aos guerreiros, levando à formação de uma nobreza, que utilizava as reuniões de caça como treino para as batalhas (acima, túmulo onde temos um carro com os restos do condutor e dos cavalos, aproximadamente ano 1000 a.C.). Duas ou até três centenas de clãs (grupos familiares que se identificavam por terem os mesmos antepassados) se impunham através do monopólio no uso das armas de bronze (elmos e espadas). As expedições militares, principalmente contra as tribos do norte, culminavam com o saque e o pagamento de tributos tirados aos inimigos, além da obtenção de prisioneiros para os sacrifícios rituais e escravos. 

Na dinastia Shang, o estado já era capaz de mobilizar trabalhadores para a construção de muralhas de terra batida, túmulos e até mesmo cidades. 




Da mesma forma, havia o uso rudimentar de moedas de conchas e depois de bronze, utilizadas para fins específicos como compra de ferramentas e armas (acima, duas moedas de bronze imitando a forma de pás da dinastia Shang). 



A maioria da população era formada por camponeses e a atividade agrícola organizada por superintendentes do rei que forneciam os instrumentos de trabalho (acima, vaso para vinho feito em bronze, dinastia Shang). As colheitas eram guardadas nos celeiros reais após descontados os tributos. Também existiam feudos (territórios que podiam ser explorados) concedidos pelo poder central a príncipes, generais e altos funcionários, os quais se tornavam vassalos do rei, devendo auxílio militar em tempo de guerra. 

A sucessão ao trono era feita na própria Corte Shang, entre as famílias tradicionais e de acordo com o número de antepassados importantes que cada príncipe tivesse. 




Para orientar a escolha eram feitas adivinhações por meio da "leitura" de um casco de tartaruga ou dos ossos dos animais. Os prognósticos a respeito das guerras, das caçadas, das chuvas e das colheitas também eram feitos dessa forma e as previsões anotadas nos próprios objetos. Em razão disso, para muitos estudiosos, esses rituais contribuíram para o desenvolvimento da escrita (acima, o osso de oráculo e casco de uma tartaruga com inscrições das previsões). 

Por volta do ano 1046 a.C., o último governante Shang foi destituído do poder após o confronto com o estado de Zhou, localizado a oeste, no vale do rio Wei (afluente do Huang Ho). A subida ao poder da dinastia Zhou foi marcada, inicialmente, por uma fase próspera de pelo menos duzentos anos, sendo a mais longa de todas as casas reais que comandaram a China. 



Muitos dos costumes Shang foram mantidos pela nova dinastia, até como forma de legitimar o poder junto aos súditos, como por exemplo, os rituais que buscavam influenciar os espíritos e a vontade celestial (acima, recipiente em bronze para rituais, final da dinastia Shang). Os mesmos estimularam a produção dos vasos cerimoniais, recipientes feitos de bronze ou em ouro. 


Muitos artesãos metalúrgicos foram trazidos a força de outros territórios a fim de produzir esses objetos, contribuindo ainda mais para a evolução da metalurgia (acima, lamparina de bronze em forma de mulher, século II a.C.). 

Com a dinastia Zhou foi consolidada a ideia do "Mandato Celestial" onde o rei era visto como "filho do céu". Sob tal condição, o mundo lhe pertencia e por isso o rei deveria comandá-lo, desde que o fizesse com justiça e respeito ao bem-estar dos súditos. Caso fugisse a esses princípios, o Céu poderia, após um aviso, retirar-lhe o mandato e entregá-lo a outro. Certos acontecimentos do mundo natural, como terremotos, queda de meteoritos, aparições de cometas e secas prolongadas eram vistos como sinais da inadequação moral ou ritual do governante. Ao contrário das outras culturas contemporâneas, não existia entre os antigos chineses a ideia da revelação divina ou força sobrenatural dos deuses (ou deus único) atuando de forma determinante. A força decisiva era proveniente dos próprios indivíduos, que ofereciam celebrações aos espíritos da natureza e aos antepassados a fim de obterem aprovação. 


Tal concepção de poder celestial estimulou o desenvolvimento da astronomia, na qual o calendário era baseado (acima detalhe de um calendário, tido como o documento chinês mais antigo e feito em seda, cerca do ano 500 a.C.).  



O reinado Zhou ampliou a concessão dos feudos, agora entregues a parentes dos governantes, podendo ser restituídos aos reis (acima, vaso cerimonial feito em bronze, que contém uma inscrição registrando a entrega de um feudo pelo rei, dinastia Zhou). Contudo, os mesmos acabaram por se tornar posses hereditárias. Tal pratica (que em menor escala, era feita na dinastia anterior, como vimos) acabou diminuindo de modo progressivo a autoridade real. No século VI a.C., o rei Zhou era uma figura simbólica, comandando rituais arcaicos e caçadas reais, destituído de poder político. Essa fase foi caracterizada pelos historiadores como o período feudal chinês, pela semelhança com a Idade Média europeia. 



Apesar da desagregação da dinastia Zhou, a sociedade chinesa apresentava uma dinâmica própria (acima, tigre em bronze do final da dinastia Zhou). A população camponesa desenvolveu aperfeiçoamentos como o uso da tração animal na agricultura (arado puxado por bois) e o ferro fundido para a confecção dos instrumentos de trabalho. 



Enquanto cavaleiros e barões ainda usavam armas feitas de bronze, os camponeses cada vez mais dependiam do ferro para cultivar a terra, o que fez aumentar a produção agrícola (acima, pequenos leopardos de bronze, usados como peso e  encontrados no túmulo de uma mulher nobre, século II a.C.). Como afirmou o historiador e sinólogo (especialista em China) estadunidense Edward H. Schafer, no final do período Zhou o bronze era aristocrático e o ferro plebeu. Com o aumento na produção de alimentos, a população cresceu e até mesmo as cidades expandiram as suas áreas de influência. 


No contexto dessas transformações técnicas e materiais, havia a ameaça das tribos nômades do norte (região que hoje corresponde à Mongólia), que sobreviviam da caça, do pastoreio e como recurso complementar, a guerra e a pilhagem (acima, representação posterior, feita em argila, dos cavaleiros mongois, século VI d.C.). Essas populações eram consideradas bárbaras, da mesma forma que os povos que habitavam ao sul do rio Yang-Tsé (chamado mais tarde de rio Azul), os primeiros a desenvolver o cultivo do arroz em grande escala. Apesar disso, os chineses tiveram de adotar muitas técnicas de combate desses "bárbaros", como o uso da cavalaria. 

Hua era como os antigos designavam a China original e depois "Império do Meio", expressão que reflete a concepção de centro de poder e de cultura, rodeada de territórios e tribos tidas como selvagens. 

No entanto, esse núcleo "civilizado" da China entrou em convulsão. A forma descentralizada de poder não atendia mais às necessidades de organização econômica e proteção militar dos territórios, agora divididos em estados independentes, os quais guerreavam entre si, daí o nome dado a essa época de Período dos Reinos Combatentes (481-221 a. C.). 



A desordem política e social não escapou a atenção de intelectuais e pensadores, um deles chamado Kung Fu-tzu cujo nome ocidentalizado ficou Confúcio (551 a.C.-479 a.C.). Nascido no Estado de Lu (hoje província de Shantung, no nordeste da China) e oriundo de família nobre empobrecida, Confúcio (acima, representação do pensador pintada em seda, sem data) cultivou a leitura e o gosto pela música. Adulto, tornou-se tutor de nobres e princípes. Em certo momento de sua vida, descontente com a sociedade, Confúcio resolveu sair em uma longa viagem, que durou treze anos, tentando disseminar certos princípios morais junto a elite e aos governantes. Na sua visão, o indivíduo de boa formação poderia se transformar em uma pessoa superior, combinando virtudes como o altruísmo (desprendimento e abnegação) na vida privada e a polidez na vida pública. A boa educação deveria ser desenvolvida junto com a apreciação da música, pois esta ajudaria a constituir um bom caráter, inclusive entre os governantes, os quais deveriam conduzir a administração com justiça. Confúcio não deixou nada escrito, mas o seu pensamento foi transmitido para as gerações seguintes por seus discípulos, através de aforismos (sentenças morais) como estes:

Um homem de boa formação é o que, de um lado, é sério e perspicaz e, de outro, mostra ter genialidade. Ele é sério e perspicaz entre seus amigos e mostra-se genial entre seus irmãos. 

Se há honestidade no coração, há beleza no caráter. Se há beleza no caráter, há harmonia no lar. Se há harmonia no lar, há ordem na nação. Se há ordem na nação, há paz no mundo. 

Mais tarde, na dinastia Han, suas teses foram reinterpretadas e serviram de base ao pensamente filosófico e político chinês, a ponto das crianças em idade escolar terem de decorar vários de seus aforismos. O conhecimento profundo de seu pensamento se tornou requisito para o ingresso na carreira pública e sua influência, quase religiosa, perdurou por mais de dois mil anos. Contudo, no Período dos Reinos Combatentes, suas teses não haviam tido grande repercussão, exceto entre os aristocratas, os quais viam em suas ideias uma defesa da tradição Zhou. 



Sete estados (os mais fortes) constituiam os chamados Reinos Combatentes: Han, Wei, Zhao, Qi, Qin, Chu e Yan (como mostra o mapa acima com destaque para o Estado de Qin). A amplitude dos conflitos deveu-se às várias transformações ocorridas na sociedade chinesa, como o crescimento populacional e o papel exercido pelas cidades, algumas com até cem mil habitantes. A mobilização dos exércitos atingiu uma escala nunca antes vista e a própria guerra acabou por ser incorporada ao cotidiano das populações. Grande parte da riqueza gerada pela agricultura e pelas poucas trocas comerciais era requisitada para manter o estado de guerra permanente. 

Su Qin (380-284 a.C.), pensador e mestre em retórica (a arte de falar bem) descreveu como as mobilizações pesavam sobre os cidadãos comuns: 

Quando se escuta o som da guerra, as riquezas pessoais tem de ser diminuídas para enriquecer os soldados. A comida e a bebida são racionadas para mimar os guerreiros suicidas. Os carros são desfeitos para se arranjar lenha para fogueiras. Os bois são abatidos para alimentar os exércitos... Os cidadãos dizem orações. Os governantes fazem oferendas. Desde a mais acessível das cidades até o mais pequeno dos distritos, aparecem altares por todo o lado. Cada cidade suficientemente grande para ter um mercado, pára toda a atividade para manter o rei... [E depois de tudo terminado] as famílias dos pobres ficam empobrecidas para poderem enterrar os seus familiares (...).     

A mobilização de trabalhadores possibilitou a construção das muralhas de terra batida, algumas com centenas de quilômetros, erguidas não apenas para separar o território chinês dos territórios bárbaros ao norte, mas também para dividir os próprios estados chineses entre si. O recrutamento dos camponeses para essas obras era feito numa espécie de trabalho obrigatório ou servidão coletiva, bem diferente da escravidão, pois era por um período de tempo determinado. Tais muros de defesa formaram o embrião da futura Grande Muralha da China.  

Nesse período conturbado, vários tratados sobre estratégias militares foram escritos, sendo o mais conhecido deles "A Arte da Guerra" de Sun Tzu (544-496 a.C., aproximadamente). O autor (ou conjunto de autores) considerava a guerra uma atividade vital para o Estado e por isso se propôs a orientar reis e generais.



No entanto, Sun Tzu dava maior importância aos aspectos morais, intelectuais e circunstânciais envolvidos nos confrontos entre Estados, sem recorrer necessariamente às lutas ou cercos prolongados (acima, uma cópia escrita em bambu de "A Arte da Guerra"). A vitória poderia ser alcançada preservando-se, na medida do possível, os bens materiais e as cidades. Sun Tzu enfatizava o enorme custo econômico que um conflito poderia causar, como a inflação nos preços dos alimentos. 


Um aspecto que hoje pode ser caracterizado como atividade de inteligência ganhou destaque: o de conhecer o inimigo por dentro e perceber as suas fraquezas (acima, punho de adaga feito em ouro, século IV a.C.). Até mesmo o uso de informações falsas para confundir o adversário e a infiltração de agentes espiões faziam parte das estratégias preconizadas. A obra influenciou futuros líderes, como Napoleão, Mao Tsé-Tung, os generais Vo Nguyen Giap (do Vietnã) e mais recentemente Colin Powel (dos Estados Unidos). 

O reino de Qin (mais a oeste) reuniu os requisitos para assumir a liderança dos Reinos Combatentes. Em meados do século IV a.C., Shang Yang (390-338 a.C. aproximadamente), primeiro-ministro de Qin, implantou reformas que transformaram o antigo estado feudal em um reino centralizado e forte. O território foi dividido em distritos administrativos e as terras camponesas convertidas em propriedade privada (na verdade, concedidas pelo Estado) permitindo-se a compra e venda das mesmas. Os camponeses que produzissem acima de uma determinada cota estavam isentos do trabalho compulsório prestado ao governo. Vadios, ociosos e criminosos eram considerados escravos do Estado.  

Shang Yang modernizou o exército de Qin com uma nova elite militar, cujo critério de ascensão era o mérito e não mais a ancestralidade. A quantidade de cabeças cortadas dos inimigos passou a ser aceita como comprovação da habilidade no campo de batalha. O exército foi equipado com suprimentos extras de alimentos, armas e cavalos, o que permitia manter as campanhas militares por um período maior de tempo. Tal condição ajudou a desenvolver a guerra de cerco, com o uso de torres de assalto (que abordavam as muralhas inimigas) e túneis escavados. A cavalaria foi aperfeiçoada para campanhas militares de maior duração. Com a adoção do alistamento militar obrigatório, o exército começou a se profissionalizar. 


O regime estabelecido pelo reino de Qin fundamentava-se em leis rigorosas e severas contra os inimigos do Estado (acima, adaga de ferro com o punho feito em ouro e turquesa, Período dos Reinos Combatentes). Tal sistema de governo, conhecido como Legalismo, contrastava com o pensamento de Confúcio, mais simpático aos tempos aúreos da dinastia Zhou e seus valores tradicionais. 

Na primeira metade do século III a.C., dois novos sistemas de irrigação foram construidos (nos rios Min e Wei, afluentes do Huang-Ho) fazendo aumentar a produção de alimentos. O controle dos centros de produção de ferro na região de Chu (que havia sido tomada) ampliou a disponibilidade desse metal. Na agricultura a substituição da força humana pela tração animal progrediu, através do uso do arado (de ferro) puxado por bois. Qin passou a ser um estado temido pelos demais e também criticado por ter abandonado os antigos valores da fase feudal.  

Em 246 a.C., quando o rei Zhao Zheng subiu ao poder em Qin, com apenas 12 anos de idade, o processo expansionista já estava em pleno andamento. O Estado de Shu (atual Sichuan) havia sido anexado e o território avançou sobre o vale de dois importantes rios, o Han (afluente do Yang Tzé) e o Fen (afluente do Huang Ho). Por volta do ano 250 a.C., a supremacia de Qin era incontestável e tendo uma população maior do que qualquer outro Estado chinês. 




Finalmente, em 221 a.C., após conquistar o último dos antigos Reinos Combatentes (Qi), Zhao Zeng se autoproclamou primeiro imperador, passando a ser designado como Qin Shi Huang, literalmente primeiro imperador da dinastia Qin, exatamente como aparece nos "Registros do Grande Historiador" do escritor Sima Quian (145-90 a.C.), considerado "o pai da história chinesa" (na gravura acima, uma representação do primeiro imperador chinês feita em 1850). Para a maioria dos estudiosos este foi o marco fundador do Império Chinês, não apenas pelo fato de existir um monarca com título imperial, mas também em termos de centralização do poder e unificação territorial. 


Qin Shi Huang estendeu as campanhas militares ao sul, onde alcançou as tribos Yue que viviam onde hoje é o Vietnã e no nordeste alcançou os limites da península da Coreia (no mapa acima, o Império Qin e os seus limites, inclusive ao norte, a Grande Muralha). O imperador determinou a ocupação de parte dessas terras por meio da migração forçada de chineses han, a etnia que até hoje predomina na China com mais de 90% da população. 

Os territórios foram organizados em 36 (depois 40) unidades administrativas (ou províncias) contendo condados, distritos e aldeias (a menor unidade), tendo estas até uma centena de famílias. Os administradores desses territórios passaram a ser escolhidos com base no mérito e não mais na condição hereditária, o que enfraqueceu a velha aristocracia feudal. 

Na implantação do governo imperial teve destaque o primeiro-ministro Li Si (280-208 a.C. aproximadamente), leal seguidor do Legalismo e que determinou a padronização dos pesos e medidas, além de criar um sistema monetário único. Até mesmo as carroças passaram a ter uma bitola (largura) padrão para facilitar a circulação nos sulcos abertos nas estradas. 



A escrita chinesa foi simplificada a fim de ser uniforme em todo o império (acima, caligrafia da dinastia Qin). Além disso, foram construidas estradas e canais navegáveis favorecendo as trocas comerciais. Em função dessas medidas, uma nova classe de comerciantes, arrendatários de minas, salinas e fundições começou a prosperar. 

A população camponesa estava sujeita a impostos sobre a terra e a produção, como também requisitada para a construção das obras públicas, como a interligação da Grande Muralha, no limite norte do império. Centenas de milhares de trabalhadores construiram os muros numa extensão de aproximadamente dois mil quilômetros. Vale lembrar que a mesma foi sendo ampliada e remodelada ao longo do tempo, até atingir a sua extensão máxima no período da Dinastia Ming (século XIV da nossa era). 

Qin Shi Huang foi descrito mais tarde como um governante cruel e sanguinário, lembrando que tais qualificações foram dadas pelos seus sucessores da dinastia Han, os quais não eram simpáticos ao seu legado. Conta-se que os indivíduos acusados de crimes contra o Estado eram decapitados, cortados ao meio pela cintura (ainda vivos) ou fervidos em enormes caldeirões. Ao descobrir que um de seus músicos favoritos estava envolvido em um complô, o imperador, para não perder o talentoso artista aplicando-lhe a pena de morte, determinou que durante uma apresentação o músico tivesse os seus olhos arrancados e em seguida continuasse a tocar o instrumento. 



A fim de evitar conspirações ou golpes de Estado, as antigas famílias nobres foram "convidadas" a viver na nova capital, Xianyang (acima, uma possível reconstituição do palácio do imperador Qin). Eventuais críticas ao sistema de governo não eram toleradas, sobretudo as provenintes dos aristocratas e seguidores de Confúcio. O primeiro-ministro Li Si ordenou a queima dos livros confucionistas, os quais em sua opinião estavam presos ao passado e se esquecendo do presente. Relatos posteriores, embora controversos, davam conta de que centenas de intelectuais confucionistas teriam sido enterrados vivos. Segundo o historiador Mark Elvin (especialista em China na Universidade Nacional Australiana) as tendências feudais sobreviveram no interior da China nos mil anos seguintes, envolvendo uma luta constante entre o poder central (e sua burocracia) e o poder local (aristocrático). 




O imperador planejou cedo o seu governo no plano celestial. O mausoléu que deveria abrigar o seu corpo começou a ser construído quando tinha 13 anos (nas imagens acima, uma possível reconstituição do túmulo e como está o local atualmente) utilizando centenas de milhares de trabalhadores. O enorme complexo está localizado nas proximidades da cidade de Xi'an (atual província de Shaanxi), mas ainda não foi escavado pelos arqueólogos que temem possíveis danos na estrutura do monumento. Os mesmos aguardam novos aperfeiçoamentos técnológicos para começar o trabalho, previsto talvez para daqui um século. Muitos acreditam que verdadeiros tesouros possam estar enterrados nesse local e no seu entorno, uma vez que os historiadores consideram tratar-se de um gigantesco complexo. Contudo, uma descoberta surpreendente foi feita, ao acaso, nas proximidades.


No ano de 1974, um grupo de trabalhadores iniciava a escavação de um poço, a aproximadamente um quilômetro e meio a leste do local onde está o maúsoleu do imperador, quando várias estátuas soterradas começaram a aparecer (foto acima).


Era apenas o começo de uma das maiores descobertas arqueológicas do século XX, um exército de mais de seis mil soldados, todos em tamanho natural, feitos em terracota (argila cozida ao forno) e enterrados em quatro câmaras subterrâneas, designadas posteriormente como valas (acima a vala 1).


A vala 1 era a maior, com os milhares de guerreiros em formação de combate. Nas escavações iniciais, muitas das estátuas se quebraram e tiveram de ser posteriormente remontadas (acima, detalhe da vala 1). 



Na vala 2, descoberta em 1976, foram encontrados mais de 1400 carros de combate com os respectivos condutores, também em terracota (acima, guerreiros acompanhados dos cavalos). Na vala 3 existia uma formação com os comandantes militares de elite. Já a vala 4 estava vazia, um sinal de que o trabalho talvez não estivesse concluído quando da morte do imperador. 

Cada guerreiro foi moldado em detalhes, sendo possível saber a graduação pelo uniforme  (na imagem acima, pelo tipo de penteado e armadura, sabe-se que este militar encontrado na vala 2 pertence à guarda do imperador). Cabeças, braços e corpos foram confeccionados separadamente e depois unidos com tiras de barro. O corpo era oco e ligado às pernas, que eram maciças. As orelhas, barbas e armaduras também foram moldadas a parte e depois acrescentadas na face dos guerreiros. Por isso, cada um deles tinha o seu próprio rosto, não existindo guerreiros iguais. Os cavalos foram moldados seguindo esse mesmo procedimento. Ao final, as figuras eram cozidas em altas temperaturas e a base abaixo dos pés (cozida separadamente) colocada mais tarde. 




Todas as esculturas foram pintadas em cores vivas cujos vestígios ainda podiam ser observados (nas imagens acima, guerreiro em terracota portador de besta e o mesmo reconstituído em cores). Infelizmente em contato com o ar após serem desenterrados, os pigmentos de cor acabaram se dissolvendo. 



Os guerreiros estavam posicionados como se estivessem prontos para entrar em combate (acima, soldados de terracota ainda com os vestígios das cores originais). 


Muitos guerreiros foram confeccionados com as armas verdadeiras (espadas, lanças e bestas) junto ao corpo (acima, uma besta encontrada junto aos soldados de terracota, em excelente estado de conservação). O curioso é que nenhum documento, da época e posterior, fez menção ao Exército de Terracota, como passou a ser conhecido em todo o mundo. 



Em sua outra vida, Qin Shi Huang contaria com a proteção desse exército (acima, uma armadura toda confeccionada em pedra, encontrada no complexo do mausoleu, provavelmente feita para finalidades rituais).

Em seus últimos anos de governo, o imperador, temendo atentados (já havia sofrido três), dormia em lugares diferentes todas as noites. Aquele que revelasse os locais de refúgio era sentenciado à morte. Contudo, a sobrevivência de seu poder no plano celestial parece não ter sido suficiente. Ao perceber a chegada da velhice, o imperador ficou obsecado com a ideia da imortalidade. Para isso, cercou-se de centenas de médicos e alquimistas pedindo-lhes que encontrassem o elixir da vida eterna. Alguns cometerem o erro de tentar ludibria-lo e por isso pagaram com a própria vida, sendo enterrados vivos. 

O mais curioso é que um desses elixires, o qual deveria lhe conceder a vida eterna, acabou por levá-lo à morte. O motivo: a elevada taxa de mercúrio na fórmula. 



Em 210 a. C., Qin Shi Huang morreu aos 49 anos, durante uma viagem, acompanhado pelo seu ministro Li Si, o qual temia dar a notícia do falecimento até mesmo para a comitiva que o acompanhava (na imagem acima, Qin Shi Huang em uma viagem, retratado em um álbum do século XVIII). Por isso, colocou o corpo do imperador em um carro isolado, fingindo estar conversando com ele e levando diariamente as suas refeições. Li Si chegou ao ponto de mandar trazer um carregamento de peixe podre para disfarçar o odor do corpo em estado de decomposição. A notícia oficial de sua morte foi dada apenas quando chegaram à capital. 

Ao longo de seu governo Qin Shi Huang nunca teve uma imperatriz consorte e nem chegou a nomear um herdeiro legítimo, embora tivesse tido filhos com suas concubinas. 

Controvérsias a parte, a figura de Qin Shi Huang ganhou, afinal, a sua importância na história. Visto inicialmente como um déspota sanguinário, acabou depois reverenciado como aquele que levou a China ao seu primeiro momento de grandeza. Além disso, defendeu-a de seus inimigos, um dos quais os cavaleiros Xiongnu, a mais poderosa nação da antiga Mongólia, numa luta que veio a contribuir para a construção da Grande Muralha e na formação da Rota da Seda. 

Mas a unidade política constituída pela dinastia Qin iria perdurar após a morte do primeiro imperador? O Império Chinês conseguiria enfrentar os invasores Xiongnu? E como surgiu, afinal, a Rota da Seda? Vamos deixar essas e outras questões para a segunda e última parte desta postagem...

Crédito das imagens:

Guerreiro de terracota; vaso ritual de bronze da dinastia Shang; túmulo com restos de carro puxado a cavalo; conchas e moedas do século XII a.C.; vaso para vinho da dinastia Shang; vaso ritual de bronze da dinastia Shang; casco de tartaruga com inscrições; lamparina de bronze; leopardos de bronze; cavaleiros bárbaros; cabo de punhal feito em ouro e guerreiros em terracota desenterrados e guerreiros acompanhados dos cavalos: Coleção Grandes Impérios e Civilizações. China: gigante milenário. Volume I. Edições del Prado, 1997, páginas 86, 78, 59, 70, 58, 55, 106, 107, 99, 72, 87 e 85.

Moedas de bronze da dinastia Shang e tigre em bronze: História das Civilizações. Volume I. Abril Cultural, 1975, páginas 53 e 60. 

Detalhe dos guerreiros na vala 1 e armadura de pedra: Pinterest. 

Vaso cerimonial da dinastia Zhou com inscrição: https://www.worldhistory.org/image/3045/bronze-zhou-cooking-vessel/

Recipiente para rituais do final da dinastia Shang: http://www.jameelcentre.ashmolean.org/collection/4/901/909/11944

Mapa dos rios Amarelo e Azul: https://sitedabisa.com/sitedabisa-com/apresentacao/civilizacoes-do-extremo-oriente/

Possível reconstituição do mausoleu de Qin Chi Huang: https://www.shutterstock.com/pt/video/clip-1079586065-this-hypothetical-simulation-model-ancient-qin-shi

Mapa do Império Qin e escrita da fase Qin: https://brewminate.com/the-art-and-architecture-of-china-before-1279-ce/

Retrato de Yu, o Grande; documento do ano 500 a.C. e representação de Confúcio: China Antiga. Biblioteca de História Universal Life, Livraria José Olympio Editora, 1973, páginas 78, 145 e 60 respectivamente. 

Recipiente em bronze para rituais da dinastia Shang; livro de Sun Tzu escrito em bambu; representação do imperador Qin Shi Huang feita em 1850; aspecto atual do mausoléu do imperador Qin Shi Huang e guerreiro de terracota com vestígio de cor: Wikipédia. 

Guerreiro portador de uma besta e reconstituição do mesmo em cores: Impérios em Ascensão: 400 a.C.-200 d.C.. Coleção História em Revista. Editores de Time-Liufe Livros e Abril Livros, Rio de Janeiro, 1995, páginas 138 e 145. 

Reconstituição do palácio do imperador Qin: https://www.chinafetching.com/qin-dynasty

Adaga de ferro com punho em ouro e turquesa e detalhe do oficial em terracota da guarda do imperador: http://www.alaintruong.com/archives/2019/07/31/37532999.html

Besta desenterrada: https://www.ancient-origins.net/news-history-archaeology/excellently-preserved-crossbow-2200-years-ago-terracotta-020269

Mapa dos Reinos Combatentes: https://www.thecollector.com/qin-shi-huangdi-chinese-emperor/ 

Qin Shi Huang representado durante uma viagem: https://www.laphamsquarterly.org/roundtable/art-not-dying

Rei Tang e osso de oráculo: //www.worldhistory.org