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domingo, 2 de setembro de 2012

Democracia na Antiga Grécia parte II




Será que a Grécia antiga têm algo a nos ensinar a respeito da política e da democracia? Verificamos na primeira parte do post "Democracia na Antiga Grécia" que a prática política dos gregos surgiu em um ambiente bem diferente do atual, dentro de uma comunidade constituída no espaço físico de uma cidade-estado. Por outro lado, muitos dos desafios enfrentados pelos antigos gregos têm paralelo com os tempos de hoje e podem nos inspirar na discussão a respeito da democracia atual. O dilema da vida em comunidade (na imagem acima, ruínas da antiga Atenas) e dos conflitos sociais são parte dessa experiência e verificar como os gregos responderam às mesmas podem ser úteis na busca de alternativas para algumas questões da política contemporânea.




As reflexões que estamos propondo são derivadas de uma série de conferências realizadas pelo grande historiador norte-americano Moses Finley (1912-1986) em 1972 e reunidas no livro "Democracia Antiga e Moderna". Este historiador (imagem acima) sempre mostrou uma preocupação em estabelecer os elos entre as civilizações clássicas (greco-romana) e a atualidade utilizando conceitos originários da moderna sociologia, da antropologia e do marxismo com um conhecimento rigoroso que não dá margens a vulgarizações. Essa postura teórica lhe valeu uma perseguição durante a "caça às bruxas" promovida pelos anti-comunistas nos Estados Unidos na década de 1950. Finley acabou indo trabalhar na Inglaterra, primeiro na Universidade de Oxford e mais tarde em Cambridge. Vinte anos depois ele voltou para a sua terra natal para proferir as conferências reunidas no citado livro. 
Os antigos gregos não chegaram a criar uma teoria específica a respeito da democracia. O que havia eram noções esparsas, máximas, alguns princípios mais gerais, mas que nunca chegaram a formar um corpo teórico sistemático. Uma dessas máximas chegou até nós por meio de uma oração fúnebre atribuida ao grande líder da democracia ateniense Péricles, na época em que já havia tido início a Guerra do Peloponeso (431-402 a.C.), que envolveu a cidade de Atenas e a sua rival Esparta. Abaixo um trecho do mesmo:

"Nossa constituição é chamada de democracia porque o poder está nas mãos não de uma minoria mas de todo o povo. Quando se trata de resolver questões privadas, todos são iguais perante a lei, quando se trata de colocar uma pessoa diante de outra em posições de responsabilidade pública, o que vale não é o fato de pertencer a determinada classe, mas a competência real que o homem possui."
"Aqui, cada indivíduo se interessa não só pelos seus assuntos particulares, mas também pelos assuntos do Estado... não dizemos que um homem que não se interessa pela política é um homem que tem muito que fazer para si mesmo; dizemos que ele não tem absolutamente nada que fazer aqui... E há outro ponto em que nos distinguimos de outras pessoas: somos capazes ao mesmo tempo de assumir riscos e de calculá-los previamente. Outros são bravos por ignorância e, quando param para pensar, começam a ter medo. Mas o homem que pode em verdade ser considerado bravo é aquele que mais sabe avaliar tudo o que é doce na vida e tudo o que é terrível e sai, então, sem temor, para enfrentar o que vier."

Para Moses Finley, uma das questões que mais preocupavam os gregos era: os líderes lideravam no interesse de quem? Ora, os homens não são iguais, tanto na sua condição moral como também na sua posição sócio-econômica. Por isso, toda comunidade tende a se dividir em facções ou partidos, como por exemplo, ricos e pobres. E o Estado diante disso? Supera essas facções e se coloca acima delas? Os diversos autores gregos eram unânimes em relação a um aspecto, a ideia de que o Estado deve ficar afastado desses interesses facciosos e de classes. Para eles, os fins e objetivos do Estado são "morais, atemporais e universais" e seriam alcançados mediante a educação, pela conduta moral daqueles que detinham o poder, por leis corretas e por uma boa escolha dos governantes. O bom funcionamento do Estado repousaria na ausência de facções ou interesses vinculados a determinadas classes, embora em termos práticos a existência dos mesmos fosse reconhecida. Platão levou às últimas consequências essa questão, propondo em seu livro "República" concentrar todo o poder nas mãos de um grupo seleto e educado, que ficasse livre de todo tipo de interesse ou pressão. Bem, os que se enquadrariam nessa categoria eram os próprios filósofos. Aristóteles seguia um raciocínio parecido, pois acreditava que se os governantes tomassem decisões a partir do interesse pessoal ou de classe poderiam surgir formas degeneradas de governo. 


Os filósofos desconfiavam que a democracia levasse a uma espécie de desordem popular ou à demagogia ("enganar o povo" ou mesmo "liderar o povo"). Uma exceção, de acordo com Finley, foi Protágoras, que afirmava que todo homem (no sentido do homem livre) possuia uma politike techne ou a arte do julgamento político e que poderia ser aplicada aos debates da Assembléia. Sem isso não poderia existir uma sociedade civilizada. 
Apesar das restrições dos filósofos, foi exatamente a capacidade para o debate e o vigor proporcionado pela participação política na Assembléia (na imagem acima, senhas para votação) que forneceu à democracia ateniense a sua resistência e o enfrentamento de questões vitais para a vida dos cidadãos. Da mesma forma, o sentimento de comunidade saiu fortalecido nos séculos V e IV a.C.. A luta partidária não era estritamente uma luta de classes. A prática de "liderar o povo" que alguns associavam com a demagogia era parte fundamental da democracia e impulsionava a mesma.
Por outro lado, uma outra questão que também preocupava os antigos era a apatia. O termo significava "falta de sentimento" ou "insensibilidade", algo que para os gregos, não podia ser aceito em uma verdadeira comunidade. Uma tradição atribuida ao antigo legislador de Atenas, Sólon, afirmava que para combater a apatia foi determinado que quando ocorresse uma guerra civil na cidade, o cidadão que não tomasse partido deveria ser destítuido de seus direitos civis e de participação. Tal sentimento foi expresso por Péricles, que classificava o homem que não participava dos assuntos da cidade como um inútil.
Moses Finley recorda que um dos pensadores mais importantes do liberalismo no início do século XIX, John Stuart Mill, em seu livro "Considerations on Representative Government", afirmava que Atenas ainda tinha muito a oferecer no que dizia respeito à experiência da democracia. A participação política por meio da Assembléia Popular elevava o nível intelectual do ateniense de forma mais eficaz do que em qualquer outro agrupamento humano. Ao exercer tais atividades o indivíduo era obrigado a pensar por parâmetros diferentes dos seus e aplicar os princípios referentes ao bem comum. Na teoria clássica do século XIX acreditava-se que a educação do povo levaria a que todos atingissem suas plenas capacidades intelectuais e morais a fim de formar uma verdadeira comunidade. O exercício da política era visto como útil para a educação pública. Portanto, o governo deve estar empenhado na educação das massas, o que é um pressuposto para o exercício da democracia.



Em Atenas no século V a.C., para que um debate tivesse a capacidade de angariar a atenção de uma platéia ao ar livre (ver imagem acima o local da antiga Assembléia de Atenas na colina Pnice) era necessário o bom uso da oratória. Para Moses Finley os debates eram mais espontâneos, algo que estaria faltando à democracia atual. A decisão teria de ser tomada antes que a noite caísse e cada homem votava sem qualquer tipo de controle partidário. Os membros da Assembléia (Eclésia) não ocupavam postos, não eram eleitos (pois eram os próprios cidadãos de Atenas) e não eram punidos ou recompensados em função dos seus votos. 



Contudo, Finley lembra que os cidadãos não estavam separados da sua tradição, das influências da família, da classe da qual eram originários, dos valores destas, das aspirações e medos. Levavam tudo para a Assembléia quando se reuniam. Existe uma diferença entre votar de vez em quando em um candidato (como ocorre hoje) e votar diretamente nas próprias questões, algo que permitia um maior envolvimento do indivíduo chegando até mesmo a um clima de tensão. Os oradores tinham que suportar pessoalmente os ataques dos opositores (na imagem acima, cacos de cerâmica com o nome dos cidadãos que eram votados). Embora pudessem ter assistentes e fazer alianças com outros líderes políticos, os laços eram pessoais e instáveis, sem a existência de uma sustentação partidária institucionalizada como ocorre hoje em dia no Senado e Câmaras atuais.
Uma das transformações apontadas pelo historiador Moses Finley na época atual foi o da transformação da política em profissão no sentido restrito da palavra. Na Roma Antiga muitos cortesãos e políticos dedicaram-se exclusivamente ao governo, mas não eram políticos no sentido exato do termo. Eles eram pouco numerosos e seus interesses eram mais restritos, não os de um grupo profissional. Neste último caso ocorre a vinculação entre a atividade política e o enriquecimento, mesmo quando não há corrupção. Os políticos atuais surgiram como um novo e poderoso grupo de interesse dentro da sociedade. 
Finley critica a política contemporânea por estar um tanto quanto engessada e que os debates são feitos de forma a não colocar em risco o equilíbrio entre as classes. Na época atual não existem partidos ou grupos que façam uma pressão verdadeiramente radical. Finley observou isso em 1972 ao criticar o elitismo da prática política. Neste início de século XXI tudo o que Finley verificou há décadas atrás parece se confirmar. O debate é estéril e o desinteresse ou mesmo apatia com relação à política é perceptível, algo que os antigos gregos tanto temiam que ocorresse. A política atual está associada a algo imoral. Nas suas origens a não política é que era imoral... 
Para saber mais:
Finley, Moses. Democracia Antiga e Moderna. Rio de Janeiro, Graal, 1988. 
Fontes das imagens: Coleção História das Civilizações, Ed. Abril, 1975. Grécia Clássica, José Olympio Editora, 1969 (citação do discurso de Péricles na pag. 108). Grécia: Templos, Túmulos e Tesouros. Col. Civilizações Perdidas, Abril Coleções, 1998. 

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