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segunda-feira, 23 de julho de 2018

Jesus: um personagem da história parte final




Caro leitor (a), na primeira parte desta postagem procuramos assinalar algumas conclusões dos historiadores e demais pesquisadores a respeito do Jesus histórico (na imagem acima, da catacumba de Calisto em Roma, Jesus representado como "Bom Pastor", século III d.C.). A cidade natal de Jesus não era Belém, ele não nasceu no dia 25 de dezembro, não pertencia à família do rei David, não existiu presépio e nem reis magos. Jesus tinha irmãos e possivelmente irmãs, como atestam os próprios Evangelhos (além dos relatos do historiador Flávio Josefo, que escreveu no final do século I d.C.). Portanto, a virgindade perpétua de Maria (ela teria subido aos céus sem ter tido relações sexuais) proclamada pela Igreja Católica séculos depois, tornou-se uma questão controversa. Destacamos mais uma vez que esses estudiosos não tratam do Jesus ressuscitado ou do Cristo (messias) relacionado à fé religiosa. Então, o que há de verdade histórica sobre Jesus? Bem, temos mais informações a respeito da sua vida adulta do que dos seus primeiros anos, embora não existam vestígios materiais diretamente relacionados a ele. Por outro lado, nas últimas décadas foram encontradas evidências concretas sobre vários personagens do Novo Testamento. Herodes, o Grande, o sumo-sacerdote Caifás e o procurador (governador) romano Pôncio Pilatos tiveram as suas existências confirmadas por achados arqueológicos, os quais também comprovam a pratica da crucificação. Escritores da antiguidade e que não travaram contato entre si mencionam Jesus em vários livros. E ainda podemos reconstituir a sociedade da Palestina no século I da nossa era, a fim de situar historicamente várias passagens da vida do nazareno. 



De acordo com o especialista em assuntos religiosos Reza Aslan, é surpreendente que se saiba algo sobre a figura de Jesus, pois existiam muitos outros personagens como ele na Palestina naqueles tempos (na imagem acima, figura de orante, na catacumba de Priscila, Roma, século III). Indivíduos que se apresentavam como profetas, pregadores e messias perambulavam na região, sendo muitos deles lembrados no Novo Testamento. Teudas (citado no Segundo Livro de Atos) tinha 400 seguidores quando Roma o capturou e lhe cortou a cabeça. Na mesma época em que Jesus nasceu, 4 a.C. (antes de Cristo), um camponês que atendia pelo nome de Atronges e que se autoproclamou "rei dos judeus", também foi executado pelas autoridades romanas. Alguns anos depois, outro pregador chamado de "o Samaritano" foi crucificado por ordem do governador romano Pôncio Pilatos. E claro, temos também o mais conhecido deles (depois do próprio Jesus): João Batista (de quem falaremos mais adiante). 


A situação da Palestina (acima o mapa da região no tempo de Jesus) favorecia o surgimento desses movimentos. Os camponeses viviam em extrema pobreza, assolados pela ameaça de perderem as suas terras e ainda submetidos a impostos pelos governantes locais (no caso da Galileia onde viveu Jesus, o governante era Herodes Antipas) e pelo Império Romano, em um autêntico caso de sobrecarga tributária. Na época do nascimento de Jesus a Galileia conheceu a rebelião de um tal de Judas, que levantou a população contra Roma. A repressão foi violenta, centenas foram executados e os sobreviventes escravizados. No plano religioso, podemos afirmar que existiam vários "judaísmos" no tempo de Jesus. Flavio Josefo identificou 24 seitas judaicas, sendo que nenhuma se impôs sobre as demais. Contudo, quatro correntes tiveram importância e podem ter influenciado Jesus (embora ele não pertencesse a nenhuma delas):

- saduceus: sacerdotes de linha conservadora, de origem aristocrática (proprietários de terras) e complacentes em relação à presença romana na Palestina, exerciam controle sobre o Sinédrio (conselho dos sacerdotes em Jerusalém). Seguidores da Torá (cinco primeiros livros da Bíblia Hebraica: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio). Teriam sido os principais responsáveis pela condenação de Jesus;

- fariseus: grupo constituído por rabinos (mestres ou sacerdotes) e estudiosos (escribas), os quais eram responsáveis pela interpretação da Torá para a população. Acreditavam na imortalidade da alma e na ressurreição do corpo, influenciando o cristianismo. Jesus os criticava por darem importância maior ao formalismo das Escrituras do que ao seu conteúdo;

- essênios: movimento sacerdotal que rompeu com as autoridades do Templo de Jerusalém (sobretudo os saduceus) e mantiveram uma vida de isolamento nas proximidades do mar Morto, em Qumran. Consideravam-se os únicos judeus purificados e aptos à salvação. Rejeitavam os bens materiais e a propriedade privada. Atribui-se a esse grupo os "manuscritos do mar Morto" (ver primeira parte desta postagem);

- zelotas: lutavam pela libertação de Israel (ou Palestina) do domínio estrangeiro. Pregavam a absoluta obediência ao Deus único. Dispostos a recorrer à violência se necessário, para alcançar os seus objetivos. 

Jesus era alfabetizado? Pouco provável, sobretudo sabendo-se que 97% dos camponeses judeus não sabiam ler e nem escrever, apesar das menções de Lucas a respeito do debate travado por Jesus com os rabinos no Templo de Jerusalém quando tinha apenas 12 anos e da leitura de trechos de Isaías na sinagoga de Nazaré, a aldeia de Jesus (onde na verdade, não existia sinagoga). Jesus não teve acesso a uma educação formal na pobre Galileia, o que não significa que fosse uma pessoa inculta. Segundo o linguista Frederico Lourenço havia na Antiguidade o hábito da leitura em voz alta, sendo desconhecida a leitura silenciosa que se pratica hoje. Os textos eram escritos para serem ouvidos e mesmo as pessoas que não sabiam ler podiam participar das audições públicas, como as que eram realizadas nas sinagogas ou em reuniões que contavam com a presença de um mestre rabino. Os Evangelhos também foram escritos exatamente com essa finalidade, serem lidos em voz alta, aliás, como se faz até hoje. 


Na antiga Palestina, a língua oficial era o hebraico (conhecida dos escribas e dos estudiosos das Escrituras judaicas), compreendido de modo rudimentar pela população. O idioma do cotidiano era o aramaico (no fragmento acima do século I aparece o nome "Jesus", muito comum na época, na grafia hebraica). Para o leitor ter uma ideia, a diferença entre o hebraico e o aramaico é quase a mesma que existe entre o espanhol e o português de hoje. O aramaico foi a língua de Jesus de Nazaré e podemos perceber isso por meio de algumas falas que permaneceram nos Evangelhos, como no caso da filha de Jairo, a qual Jesus teria trazido de volta à vida:

E segurando-lhe a mão, disse: "Talitha koum", isto é, traduzido, "menina, digo-te: levanta-te!"
(Marcos 5:41)

Jesus não era loiro e nem tinha os olhos azuis característicos dos europeus. Seus traços deviam ser próprios dos semitas, grupo étnico que inclui judeus, árabes e outras populações do Oriente Médio. Provavelmente era moreno, com olhos e cabelos castanhos escuros, sobrancelhas grossas e nariz adunco (curvo). Sua altura deveria ser de baixa para média para os padrões atuais. 



Em algum momento, aproximadamente quando alcançou os 30 anos, Jesus deixou a sua família, a sua casa e a pequena Nazaré para ir ao encontro de João Batista. Vestido com roupa de pelo de camelo, um cinto de couro prendendo as vestes, alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre, João Batista apresentava-se à semelhança do profeta Elias. Andou pelas margens do rio Jordão (foto acima) afirmando que o fim estava próximo, sendo por isso caracterizado como um pregador apocalíptico. Ao mesmo tempo, anunciava a existência de um poder transcendental que iria se fazer realidade por meio da vitória do bem sobre o mal, onde o céu e a terra se confundiriam para sempre: o Reino de Deus! Além disso pregava a partilha dos bens materiais e realizava o batismo como forma de preparar o indivíduo para a grande mudança. Muitos afirmam ter sido o Batista um ex-integrante dos essênios, pois algumas de suas praticas identificavam-se com essa seita (como o ritual da purificação pela água ou batismo). Contudo, sua pregação não era voltada para um único grupo, mas aberta a todos os judeus.
O batismo de Jesus por seu provável mentor João Batista é considerado um fato histórico, embora não tivesse sido algo confortável de ser descrito pela tradição cristã, uma vez que presumia a superioridade do segundo sobre o primeiro. Os Evangelhos resolveram a questão em favor de Jesus. João Batista teria nascido de uma mulher estéril enquanto Jesus de uma virgem, algo que carrega um valor simbólico muito maior. 



No batismo de Jesus há a intervenção do Espírito Santo por meio de uma pomba (como na imagem acima, de um mosaico do século V de Ravena, na Itália). Contudo, em nenhum momento o Batista reconhece explicitamente Jesus como o messias. João Batista foi executado por ordem de Herodes Antipas entre os anos 28 e 30 d.C. (depois de Cristo), pois temia que o pregador subvertesse a população da Galileia. Sua morte dispersou os seus seguidores, sendo que alguns deles podem ter acompanhado Jesus (como André e Filipe).



Jesus teve dificuldades em ser ouvido em Nazaré, mesmo entre os seus familiares. Mas a vila de Cafarnaum mostrou-se bem mais receptiva às sua palavras (acima, ruínas da sinagoga de Cafarnaum). 




Situada às margens do mar da Galileia com aproximadamente 1.500 habitantes, a maior parte formada por agricultores e pescadores, Cafarnaum perdeu a sua importância após a construção de Tiberíades, nova capital de Herodes Antipas (nas fotos acima, o mar da Galileia no início do século XX e restos de barco da época de Jesus, encontrado nesse mar, durante uma seca em 1986). Lá Jesus reuniu um bom número de seguidores galileus, muitos deles pescadores, como Simão (depois chamado de Pedro), seu irmão André, Tiago Maior e João (filhos de Zebedeu). O Evangelho de Lucas nos informa que seriam 72 discípulos ao todo. Jesus dialogava com as mulheres e as aceitava como discípulas. A mais conhecida foi Maria da aldeia de Magdala ou simplesmente Maria Madalena. A tradição católica a transformou em uma prostituta, mas ela era, na verdade, um das pessoas mais leais a Jesus. 
Entre os seguidores havia, sem dúvida, um núcleo de discípulos mais próximo a Jesus, talvez os 12 apóstolos que ficaram conhecidos, embora lembremos que este número tem grande significado para o judaísmo. A comunidade organizada em torno de Jesus constituía um "novo Israel", com novos patriarcas para substituir os 12 filhos de Jacó das antigas Escrituras. A questão é saber se a instituição dos 12 apóstolos vem do tempo de Jesus ou se trata de uma criação posterior dos primeiros cristãos. Para muitos estudiosos, a segunda hipótese é a mais provável.




Jesus tornou-se um pregador itinerante e que fazia uso de frases simples, diretas ou recorrendo às parábolas, narrativas contadas a partir de situações reais, por meio das quais são transmitidos ensinamentos. As mesmas remetiam ao cotidiano da vida camponesa e ao ambiente ecológico da Galileia (acima o lírio e a figueira, que faziam parte da antiga flora palestina, em gravuras do Jardim Botânico de Kew em Londres), como a do semeador, do joio e do trigo, dos lírios do campo e da figueira:

Da figueira aprendei a parábola. Quando o ramo dela já se tornou tenro e começam a despontar as folhas, ficais a saber que o verão está próximo. Assim também vós, quando virdes todas essas coisas, sabeis que Ele está próximo, às portas.
(Mateus 24:32)



Jesus participava de refeições coletivas, ao contrário de seu mentor João Batista, o que levou os seus detratores a chamarem-no de glutão, beberrão e amigo dos pecadores (na imagem acima, banquete eucarístico pintado na catacumba de Priscila, Roma, século III d.C.). Segundo John Dominic Crossan, um dos maiores especialistas no estudo do Jesus histórico, na visão antropológica, a refeição coletiva (comensalidade aberta) era uma forma primária de se estabelecer e manter relações humanas, por meio de obrigações mútuas de interdependência e reciprocidade (dar e receber). Nas condições normais da época as refeições estabeleciam linhas divisórias que separavam os grupos sociais. Porém, com Jesus as mesmas eram praticadas de forma aberta, de modo igualitário e sem discriminações com doentes (considerados impuros), pobre, mendigos e em relação às mulheres solteiras (vistas como prostitutas se estivessem na companhia de outros homens). Jesus desejava reconstruir a comunidade camponesa tendo por fundamento a igualdade e a solidariedade.


E os milagres? A palavra vem do latim miraculum e significa algo que causa admiração e espanto. Mas Jesus não falava latim e não conhecemos nenhuma palavra em aramaico com esse significado preciso (na imagem acima, de uma catacumba romana do século III d.C., mulher é curada ao tocar nas vestes de Jesus). Nos Evangelhos aparecem vários termos que são traduzidos por "milagre", como a palavra grega semeion que significa "sinal" e "imagem". De qualquer forma sinais, prodígios ou milagres eram parte fundamental da pregação de Jesus e tinham o propósito de anunciar a chegada do Reino de Deus. Já se tentou uma explicação lógica e racional para essas curas. Segundo Reza Aslan trata-se de um exercício inútil querer formular explicações científicas para cada um dos 27 milagres registrados nos Evangelhos. Ao historiador cabe entender como as pessoas reconheciam essas ações excepcionais. A opção "procure um médico" não existia para 99% da população. Os milagres faziam parte do cotidiano e percebidos como algo possível para as vítimas de enfermidades. As doenças de pele eram as mais visíveis e imediatamente associadas à impureza, como previstas nas Escrituras judaicas. Contudo, nesse aspecto cabem observações. A tradução (lembrando que os Evangelhos foram escritos em grego) das palavras gregas lépra e sara'at para hanseníase (lepra verdadeira) foi um erro, pois as mesmas faziam referência a qualquer doença de pele (micose, manchas, feridas...). A lepra verdadeira era conhecida por outro termo: eléphas
Jesus não foi o único a curar enfermos e expulsar demônios (exorcismo) naqueles tempos, inclusive fazendo uso de práticas mágicas, como encantamentos, fórmulas ensaiadas, cuspidas e súplicas repetidas, como neste caso descrito por Marcos:

E trazem-lhe um surdo-mudo e pedem-lhe que imponha a mão sobre ele. E levando-o em privado para longe da multidão, Jesus meteu os dedos dele nos ouvidos dele e, cuspindo, tocou-lhe na língua. E olhando para o céu, suspirou e diz-lhe: "Ephphatha", que quer dizer "abre-te!". E logo se abriram os ouvidos dele e soltou-se a prisão da sua língua e falava corretamente.
(Marcos 7: 32-35)



As curas e exorcismos não eram bem recebidas pelas autoridades do Templo em Jerusalém (na foto acima, ruínas de Betânia, lugar de residência de Lázaro, que teria sido ressuscitado por Jesus). Os doentes, os coxos, os leprosos (ou com doenças de pele), os "possuídos", mulheres menstruadas ou aqueles afetados por fluídos corporais não tinham autorização para entrar no Templo e participar do culto, a não ser que passassem por um processo de purificação. Os atos de cura realizados por Jesus (inclusive aos sábados, dia de descanso para os judeus), de graça e sem qualquer contribuição (como um sacrifício) fugiam ao controle sacerdotal. Em resumo, eram vistos pelos sacerdotes como uma ameaça.
Jesus pretendia criar uma nova Igreja? Em nenhum momento ele se manifestou em relação a isso, apresentando-se como um judeu dirigindo-se a um público judeu. O versículo de Mateus no qual Jesus indica Pedro como aquele responsável por construir uma "igreja", foi traduzido do grego ekklêsia que tinha apenas o significado de "assembléia" ou uma simples reunião de discípulos. "Igreja" (palavra que veio, de fato, do grego ekklêsia) como edifício ou construção de caráter religioso é uma realidade que só apareceu no século IV d.C.. Esse conteúdo serviu mais tarde para legitimar Pedro como o bispo de Roma ou primeiro papa.
Nos Evangelhos, a vida de Jesus é apresentada como cumprindo passo a passo o que estava estabelecido nas Escrituras judaicas, pois isso o colocava na condição de messias (mashiac em hebraico, que significava o ungido) o escolhido por Deus para libertar o país do domínio estrangeiro e restaurar a realeza de Israel. Sua entrada em Jerusalém durante a Páscoa ou Pessach (festividades que lembravam a fuga dos judeus do Egito ou Êxodo) não foi diferente e Jesus a fez montado em um jumento, como estabelecido na fala do profeta Zacarias.


O Templo de Jerusalém era o centro econômico, político e religioso da Palestina (na foto acima, detalhe do mesmo em uma maquete moderna). Nele eram realizados os sacrifícios diários (utilizando bois, carneiros e pombos) e a cobrança dos tributos. Os animais que eram sacrificados tinham que estar de acordo com as normas previstas na Torá (sobretudo no Levítico) e muitos não eram aceitos para o ritual. Nesse caso, os fiéis deviam comprar os animais fornecidos pelo próprio Templo e criados pelos grandes proprietários ligados às famílias sacerdotais. Os preços eram regulados pela procura. Para o leitor ter uma noção, em épocas festivas, o pombo (o animal mais barato) podia alcançar até 100 vezes o seu preço normal!


Para essas transações uma única moeda era aceita: a tetradracma tíria (emitida na cidade fenícia de Tiro, atual Líbano e que aparece na imagem acima). Além disso, os cambistas cobravam 8% de ágio para fazer a conversão das demais moedas para a moeda tirense. O Templo funcionava como uma verdadeira instituição bancária. Daí o episódio da fúria de Jesus contra os "vendilhões do Templo" (descrito nos quatro Evangelhos) e tido como um acontecimento real, que o colocou de vez em rota de colisão com as autoridades sacerdotais (saduceus). Nesse episódio, Jesus não ofereceu a outra face para que fosse agredida, ao contrário, ele virou as mesas dos cambistas!



O ambiente de Jerusalém era diferente do da Galileia, mais vigiado e fechado (acima, moeda com o rosto do imperador Tibério e origem da expressão "a César o que é de César"). A prisão de Jesus foi imediata e ocorreu após a ceia com os Apóstolos, por ordem dos sacerdotes e com os guardas do Sinédrio (conselho dos sacerdotes), independentemente de considerarmos verídica ou não a traição de Judas Iscariotes. Contudo, os Evangelhos nos relatam algo estranho, um dos discípulos de Jesus empunhou uma espada no momento da prisão no terreno de Getsêmani e feriu um dos guardas sacerdotais na orelha. O Evangelho de João identifica esse discípulo: Pedro! Lucas amenizou o incidente, pois nesse Evangelho Jesus cura a orelha da vítima. Mas fica a pergunta: os discípulos andavam armados? Estariam os mesmos preparando uma resistência contra a prisão de Jesus? De qualquer forma, os discípulos fugiram como se não houvesse mais a possibilidade de reação. 


O nazareno foi levado preso ao Sinédrio onde o sumo-sacerdote Caifás o interrogou a respeito de suas supostas intenções de destruir o Templo. Sobre este personagem não há dúvida de sua existência (acima, o ossuário de Caifás). Jesus é acusado também de blasfemar (atentar contra a divindade) ao sugerir ser o filho de Deus. Muitos estudiosos afirmam que por ser época das festividades da Páscoa, o Sinédrio não podia ter se reunido, o que não impediria um encontro informal na casa de Caifás. Além disso, a festividade atraia muitos peregrinos a Jerusalém o que poderia criar um clima tenso, uma vez que se comemorava uma libertação ocorrida no passado, mas tendo no presente a realidade do domínio romano, por isso havia o temor das autoridades. Finalmente, não há porque questionar historicamente o parecer dos sacerdotes contra Jesus. Segundo os historiadores André Chevitarese e Pedro Paulo Funari, Jesus contrariou interesses e desafiou as autoridades do Templo, já a partir do momento de sua entrada em Jerusalém. 




Posteriormente, Jesus é levado diante do procurador ou prefeito da Judeia (governador romano) Pôncio Pilatos, para que a pena fosse referendada. Existe um achado arqueológico que confirma a existência desse personagem. Uma lápide de pedra dedicada ao imperador Tibério foi encontrada em 1961, na cidade de Cesareia Marítima, com uma inscrição em latim "Pôncio Pilatos. Prefeito da Judeia" (imagens acima). Pilatos governou a Judeia (centro da Palestina e onde está Jerusalém) do ano 26 até 36 d.C. e o sumo-sacerdote Caifás ocupou o cargo de 18 a 36 d.C., algo que sugere um grande entrosamento entre os dois. 



O governador ficou conhecido por sua crueldade além dos limites (condenou centenas à morte), talvez o motivo de sua queda no ano 36 d.C. (na foto aérea acima, vestígios ainda existentes de um acampamento militar romano às margens do mar Morto, na Palestina, atual Israel). Com ele caiu também Caifás. No entanto, os Evangelhos dão a entender que a pena aplicada a Jesus não partiu da sua vontade, pelo contrário, Pilatos teria insistido com os sacerdotes que ele nada fez de grave. Há dúvidas se Jesus esteve mesmo diante de Pôncio Pilatos, pois este não participava de julgamentos. As execuções eram feitas apenas com a sua autorização, talvez escrita, sem estar diante do condenado. Além disso, os dois não falavam a mesma língua. Por sua vez, o episódio envolvendo bar Abbas, também conhecido por Barrabás, carece de qualquer fundamento. Não há nenhum registro histórico do costume citado nos Evangelhos de soltar um prisioneiro na Páscoa ou em qualquer outra festividade, sobretudo alguém condenado à morte e de atribuir tal escolha à população local. A maior parte dos estudiosos concordam que, ao tempo em que os Evangelhos foram escritos (séculos I e II d.C.), o alvo principal da evangelização eram os cidadãos romanos e a elite intelectual do Império. Daí o fato de tratarem com maior cuidado as autoridades de Roma e de retirar a responsabilidade das mesmas na condenação de Jesus. Muito provavelmente isso ocorreu no caso de Pilatos. 


A pena estabelecida, a crucificação, era de acordo com as leis romanas, dada aos piores inimigos e aos rebeldes, sendo vista na época como exemplar e ultrajante. Era uma forma clara de intimidação (acima, cabeça do imperador Tibério, que governava Roma na época da crucificação de Jesus). Há vários registros da aplicação dessa pena, como na famosa revolta de escravos liderada por Espártaco na Itália, no ano 71 a.C. e também na Palestina (e pelo próprio Pilatos). Dezenas e até centenas chegavam a ser crucificados ao mesmo tempo (como foi o caso de Jesus, executado com dois outros indivíduos).





Em 1968 foi encontrada em Jerusalém a unica evidência arqueológica conhecida de um crucificado, um osso de calcanhar furado por prego, que estava dentro de um ossuário. O nome do indivíduo: Yehohanan filho de Hagkol (nas fotos acima, o osso com o prego e o ossuário). Trata-se de um judeu, com idade entre 24 e 28 anos e executado no século I da nossa era, ou seja, no tempo de Jesus. Por que apenas uma evidência foi encontrada de crucificação, sendo que os relatos apontam até centenas de execuções? Porque na grande maioria dos casos, os corpos não eram retirados da cruz, permanecendo no local até serem devorados por abutres e cães comedores de carniça. Era também uma forma de impedir que o túmulo (caso o condenado tivesse um) se tornasse local de peregrinação. Essa descoberta comprovaria o mesmo caso ocorrido com Jesus, da família ter tido autorização para levar o seu corpo a uma sepultura, o que era raro.


O osso do calcanhar foi examinado no Departamento de Antiguidades de Israel e pela Escola de Medicina da Universidade Hebraica de Jerusalém, o que permitiu reconstituir com maior precisão a crucificação de Jesus. A mesma é diferente das representações consagradas na arte ao longo dos séculos. Os seus pés foram pregados nas laterais de um poste de madeira e as suas mãos amarradas junto a uma viga transversal (como na ilustração acima). 



Antes o condenado era açoitado e às vezes poderia ter as pernas quebradas, o que aumentava a crueldade da pena (acima chicotes incrustados com pedaços de metal e osso utilizados na época pelos romanos). Os Evangelhos de Mateus e Marcos replicam o que seriam as últimas palavras de Jesus proferidas em aramaico:

Por volta da hora nona, Jesus gritou com voz grande, dizendo:
Êli Êli lema sabakhthani?
Isso significa: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?".
(Mateus 27: 46)

Apenas as mulheres presenciaram a sua agonia na cruz (no Evangelho de João, também estava o "discípulo amado"), sendo que algumas o acompanhavam desde a Galileia. Maria Madalena era uma delas. Apesar das controvérsias, a morte de Jesus ocorreu em aproximadamente 30 d.C. segundo a maioria dos estudiosos. 



Bem, deste fato em diante temos o aspecto envolvendo a Ressurreição, que pertence ao campo da fé e dos estudos mais diretamente relacionados com a teologia (no mosaico acima do século VI d.C., Jerusalém e ao centro a Igreja do Santo Sepulcro). A grande questão que ainda se relaciona com a história é o fato de, entre tantos que surgiram naquele momento profetizando, transmitindo mensagens, realizando curas e exorcismos, apenas Jesus teve o seu nome lembrado e perpetuado por séculos. 
Jesus jamais rompeu com o judaísmo, mas desejava reinterpretá-lo. Os vínculos de Jesus com a tradição das antigas Escrituras judaicas foram mantidos por seu irmão Tiago, que liderou os primeiros cristãos em Jerusalém após a morte do nazareno. No livro Antiguidades Judaicas de Flavio Josefo, que foi escrito aproximadamente em 94 d.C., Tiago é citado como irmão de Jesus e teria sido morto por apedrejamento. Até este momento, o cristianismo era mais uma entre as várias seitas judaicas existentes na Palestina. A grande transformação veio pelas mãos de Saulo ou Paulo de Tarso, que promoveu a divulgação dos ensinamentos de Jesus aos gentios (não judeus), sobretudo as populações que viviam dentro do Império Romano. Paulo "internacionalizou" o cristianismo. Jesus de Nazaré começava a se transformar em Jesus "Cristo"  (da palavra grega khristós, que significa messias). Paulo não o conheceu pessoalmente, mas foi o primeiro a escrever sobre ele, antes dos próprios Evangelhos. Após o ano 70 d.C., quando os romanos destruíram Jerusalém na revolta judaica, o centro do movimento cristão transferiu-se para outras cidades greco-romanas como Alexandria, Corinto, Éfeso, Damasco, Antioquia e a própria Roma. O cristianismo começou o seu processo de romanização, perdendo muito de seu conteúdo mais radical dos tempos de Jesus. O que veio depois é uma longa história que deixaremos para uma próxima oportunidade...
Para saber mais:


O estudioso da história das religiões Reza Aslan, iraniano radicado nos Estados Unidos, traz em seu livro "Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré" (editora Zahar, 2013) uma tese polêmica, ao classificar Jesus como um nacionalista judeu e revolucionário, um autêntico zelota. Bem diferente daquele estabelecido posteriormente por Paulo, desvinculado da Judeia e romanizado, o Jesus Cristo. Ao propor esse raciocínio, o autor faz uma boa síntese do Jesus histórico e daquilo que se sabe a respeito desse importante personagem. A tradução ficou a cargo de Marlene Suano, especialista em História Antiga e professora da USP. Uma leitura muito agradável, que não esgota o assunto, mas é um bom começo para se aprofundar no tema. 

As citações dos Evangelhos foram tiradas de: Bíblia. Novo Testamento. Os quatro evangelhos. Traduzido do grego por Frederico Lourenço. Companhia das Letras, 2017.
Crédito das imagens:
Jesus Bom Pastor:
http://professor.ufop.br/sites/default/files/celiomacedo/files/arte_paleocrista_i.pdf
Mulher curada ao tocar nas vestes de Jesus: Wikipédia
Mapa da antiga Palestina: 
Bíblia. Novo Testamento. Os quatro evangelhos. Traduzido do grego por Frederico Lourenço. Companhia das Letras, 2017.
Fotos dos lírios, da figueira e do mosaico de Jerusalém no século VI: A Bíblia. Volume I. Coleção Grandes Império e Civilizações. Edições del Prado, 1996, páginas 68 e 64 respectivamente. 
Foto das ruínas de Betânia: A Bíblia. Volume II. Coleção Grandes Impérios e Civilizações. Edições del Prado, 1996, página 185. 
Fotos do rio Jordão e do acampamento militar romano: Os Povos da Bíblia de Joseph Rhymer. Melhoramentos, 1990, páginas 82 e 70 respectivamente. 
Fotos do fragmento com o nome de Jesus, da maquete do Templo de Jerusalém, das moedas de Tiro, do ossuário de Caifás, da lápide de pedra dom o nome de Pilatos, do calcanhar e do ossuário do judeu crucificado: Tesouros da Terra Santa: do rei David ao cristianismo. Catálogo de exposição no Masp. Páginas 77, 65, 71, 87, 89, 90 e 91. 
Banquete eucarístico do século II d.C.: História da Arte Salvat, volume 3, 1978, página 4. 
Fotos da mulher orante, do batismo de Jesus no mosaico de Ravena, da sinagoga de Cafarnaum, do mar da Galileia, do barco encontrado no mar da Galileia e dos chicotes romanos: Jesus e os apóstolos. Edição especial da National Geographic. Editora Abril, 2015, páginas 40, 13, 44, 62, 63 e 58 respectivamente.
Desenho do Jesus crucificado:
httpponderavel.blogspot.com201401jesus-o-homem-invisivel.html
Moeda com o rosto do imperador Tibério e sua cabeça de perfil : Roma Imperial en el Museo Nacional de Bellas Artes. Buenos Aires, MNBA, páginas 121 e 38 respectivamente.

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