Pesquisar este blog

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Mário Sergio Cortella e o confronto com a história



No dia 25 de fevereiro último, este que vos escreve assistiu ao primeiro bloco do Jornal da Cultura, levado ao ar pela TV Cultura de São Paulo (uma emissora pública), aguardando com interesse a fala do prestigiado filósofo Mário Sergio Cortella. O mesmo foi convocado pela apresentadora Joyce Ribeiro para comentar a respeito da situação na Venezuela e da possibilidade de ocorrer naquele país vizinho um conflito armado de proporções imprevisíveis, sobretudo diante de um possível ataque das forças militares estadunidenses. Como pensador católico e coerente com as suas convicções, Cortella rejeitou a solução militar ou o uso da força, para o "impasse" em que o país se encontra. Por que coloquei impasse entre aspas? Só para lembrar o caro (a) leitor (a), Nicolás Maduro foi eleito no início do ano para um novo mandato presidencial, num pleito (eleição) que seguiu as normas constitucionais daquele país. Contudo, o resultado das urnas não foi aceito pelos opositores, entre eles Juan Guaidó, que se autoproclamou presidente do país exigindo a renúncia do atual presidente Maduro. Imediatamente, os Estados Unidos e alguns países da América do Sul (entre eles, o Brasil), reconheceram Guaidó como presidente interino. O procedimento foi acompanhado por vários integrantes da União Européia. Porém Uruguai, México, Bolívia, Cuba, Rússia e China respeitaram o resultado das urnas, que mantiveram Nicolás Maduro no governo. Até o presente momento, está é a situação da Venezuela. 
Mas, voltemos ao Mário Sergio Cortella. No seu comentário, após rejeitar a solução do problema venezuelano pelo uso da força, o filósofo citou o escritor irlandês James Joyce que teria afirmado: "Questões que são resolvidas com violência, nunca são resolvidas". Na mesma linha de raciocínio, afirmou que "guerra civil não têm vencedor, só sobrevivente", arrematando com alguns exemplos, entre os quais o da Guerra de Secessão ou Guerra Civil Americana (conflito entre as forças do norte e do sul dos Estados Unidos, entre 1861 e 1865), da qual ainda perdurariam vários desentendimentos. Cortella fez referência também ao episódio envolvendo o ex-presidente do Brasil João Goulart, que diante do golpe contra ele em 1964, resolveu não resistir para evitar um confronto dentro do país, optando por deixar o Brasil, apesar de lhe ser sugerida a resistência. Para Cortella, talvez Nicolás Maduro, "que se diz um patriota", deveria tomar uma atitude semelhante, a fim de promover a pacificação de seu país e de seu povo. 
Pois bem, nessa fala do filósofo Cortella cabem, sem dúvida, várias observações do ponto de vista histórico. Qualquer estudante do ensino médio observa que, ao longo dos séculos, ocorreram conflitos armados ou guerras. Sejam tais conflitos relacionados a problemas internos de um determinado país (guerra civil) ou às guerras clássicas, que envolvam dois ou mais estados, ou mesmo verdadeiras coligações, como no caso da Segunda Guerra Mundial (Eixo contra os Aliados). Afirmar que tais conflitos não produzem resultados que não sejam o da permanência das questões que os originaram, não é correto sob a perspectiva de uma analise histórica. Por mais que sejamos pacifistas ou rejeitemos o recurso à violência, não podemos ignorar que as guerras, principalmente quando nos referimos ao campo militar (embora as mesmas não se resumam a isso), possam resultar em vencedores e vencidos. Além disso, consequências são advindas das mesmas, como perdas em vidas humanas, prejuízos materiais, pagamento de indenizações e perdas territoriais, entre outras inúmeras decorrências. Da mesma forma, os conflitos militares, muitas vezes, não se constituem em solução das dissenções e as mesmas podem permanecer ou mesmo ressurgir sob outros formatos. Sim, existem casos em que muitas das questões pendentes permanecem sem solução, até mesmo dificultando a verificação de um vencedor (e de um perdedor) e ainda podendo gerar novos conflitos. Muito conhecida se tornou a expressão "vitória de Pirro" (antigo rei grego que derrotou os romanos no século III a.C.), utilizada para caracterizar uma vitória obtida a um custo tão elevado, que incapacita o exército vencedor para outras batalhas. Contudo, ignorar o fato de que muitos conflitos apresentam um desfecho, nos faz perder de vista o significado dos mesmos. 


As duas grandes guerras mundiais tiveram perdedores e vencedores. Hitler foi fragorosamente derrotado em 1945, da mesma forma que Mussolini. O nazi-fascismo foi varrido da Alemanha e da Itália (na foto acima, da esquerda para a direita, Churchill, Roosevelt e Stalin representando Inglaterra, Estados Unidos e União Soviética, os vencedores da Segunda Guerra Mundial, na Conferência de Yalta em 1945). Sem dúvida, um resultado que não nos certifica de que tais ideologias totalitárias não possam ressurgir, mas o desfecho da grande guerra é algo real e concreto. 


Da mesma forma, agora fazendo referência a uma guerra civil, na Guerra de Secessão, citada por Mário Sergio Cortella, os ianques (norte) derrotaram os confederados (sul), daí resultando a abolição da escravidão nos Estados Unidos (na foto acima, soldados confederados mortos após a Batalha de Antietam, em 1862). Pelo raciocínio de Mário Sergio Cortella, para evitar derramamento de sangue, Abraham Lincoln deveria ter recuado e aberto caminho para o aclamado presidente confederado Jefferson Davis, o qual, aliás, não foi eleito. Nicolau Maquiavel escreveu há mais de 500 anos que é praticamente uma obrigação do príncipe defender o seu governo e de antever as reações dos rivais (internos e externos). Acrescentemos, é legítimo que o faça, sobretudo quando oriundo de normas pré-estabelecidas, como num processo eleitoral. Lembremos que no caso venezuelano, em eleições anteriores, não foram verificadas fraudes, mesmo nos pleitos que conduziram o antecessor Hugo Chavez ao governo, que tiveram a chancela do ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter. Por outro lado, exigir que um governante eleito com respaldo popular deixe o poder, sobretudo sendo uma imposição vinda de fora, não seria também uma violência ou ato de força? 
Mário Sergio Cortella, como já afirmamos, referiu-se às guerras civis admitindo que as mesmas produzem apenas sobreviventes. O confronto entre o Exército Vermelho (comunistas) e o Exército Branco (associadas ao velho regime monarquista), que se seguiu à Revolução Russa de 1917 teve um desfecho. A vitória do primeiro sobre o segundo e o antigo regime abolido, com a velha aristocracia tendo que emigrar do país, que depois se transformou na União Soviética. 


A propósito, vale lembrar que esta última saiu vitoriosa da Segunda Guerra Mundial impondo uma derrota a Hitler. Vitória essa comemorada até hoje nas principais cidades russas pelos familiares dos soldados e civis que perderam a vida no conflito, chamado lá de Grande Guerra Patriótica (acima, prisioneiros alemães desfilam pelas ruas de Moscou em 1943). A Guerra Civil Espanhola deixou 1 milhão de mortos e levou os fascistas ao poder com o general Francisco Franco. Ainda poderíamos citar a Revolução Chinesa que conduziu Mao Tsé-Tung e o Partido Comunista Chinês ao controle do país em 1949 e o afastamento dos nacionalistas liderados por Chiang Kai-shek para a ilha de Formosa (hoje Taiwan). Não se pode explicar o que é a China atual sem fazer referência direta a esse conflito e aos seus resultados. 
Enfim, os historiadores estão sendo pouco ouvidos em relação a esses assuntos, os quais dizem respeito mais à sua área do que a de outros especialistas, por mais bem preparados que sejam. O trabalho com a história e a busca de conhecimento nessa disciplina dependem de metodologias apropriadas e de todo um suporte teórico que embase o trabalho do historiador. E a ele também cabe observar o ponto de vista dos vencidos, pois a história, na maioria dos casos, é escrita pelo lado vencedor. Eis aqui outro critério do  trabalho historiográfico. Contudo, não é possível  relativizar ao extremo a oposição vencedor e vencido, sob a pena de perdermos o foco da própria história. Por sua vez, a interdisciplinaridade (contato com as demais disciplinas) é muitas vezes necessária. A história dialoga com o saber filosófico e com vários outros ramos do conhecimento. 
Mário Sergio Cortella é um grande divulgador da sua disciplina, ganhou notoriedade e muitas vezes é chamado a comentar sobre tudo. Nada contra, principalmente quando se sabe que o público é carente de conhecimento e de ouvir alguém capaz de interpretar o mundo ao nosso redor. Porém, é preciso certos parâmetros e critérios, a fim de não sobrepormos sentimentos, muitas vezes nobres, diante de acontecimentos que requerem outras vertentes interpretativas provenientes das demais disciplinas. Em que pese ser o filósofo Cortella contrário ao uso da violência (até por sua própria tradição cristã, como já foi destacado), aliás todos nós devemos ter isso como princípio humanitário, muitas vezes é a mesma que impulsiona e acelera o transcorrer do processo histórico, para o bem e para o mal, independente da forma como possamos questionar esse dualismo. Lembremos, os direitos do homem foram legalmente estabelecidos em acontecimentos históricos que tiveram como pano de fundo o uso da violência, como nos mostram a Revolução Americana (ou Guerra de Independência dos Estados Unidos) e a Revolução Francesa. É isso aí...
Crédito das imagens:
Foto de Mário Sergio Cortella:
https://veja.abril.com.br/politica/haddad-quer-mario-sergio-cortella-no-ministerio-da-educacao/
Conferência de Yalta: Wikipédia
Demais imagens: Pinterest

2 comentários:

  1. Parabéns,um belo texto que deve ser guardado para ser lido por todos sempre que houver uma ameaça de conflito,serve também como alerta para todos aqueles que se acham acima do poder.novamente parabéns.

    ResponderExcluir