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segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Hemeroteca Digital Brasileira




O que é uma hemeroteca? Vamos ao Aurélio: "seção das bibliotecas em que se colecionam jornais e revistas." Pois bem, a Biblioteca Nacional já está disponibilizando uma boa parte de seu acervo de revistas e almanaques através da internet. Trata-se de uma excelente notícia para historiadores e pesquisadores que poderão ter acesso rápido e sem sair de casa ao conteúdo desse acervo. Este último é importante para os que estudam o Brasil nos séculos XIX e XX. Um dos aspectos fundamentais desta coleção é a abrangência, pois temos revistas, jornais, almanaques (como o famoso Almanach do Rio de Janeiro na imagem acima) e periódicos de todas as regiões brasileiras.
Para os que estudam a Amazônia, por exemplo, é possível consultar exemplares dos jornais do Pará, Amazonas e Acre a partir de 1850. Entre outros aspectos curiosos, podemos verificar o grande movimento de embarcações norte-americanas nos portos de Belém e Manaus, nos primórdios do ciclo da borracha, que era inclusive superior ao das embarcações inglesas. Existe uma correspondência desse movimento comercial quando confrontado com os jornais norte-americanos da costa leste dessa mesma época, nas cidades de Nova Iorque, Baltimore, Salem, Boston entre outras, que registram a entrada dos produtos extraidos da Amazônia como borracha, cacau, salsa-parrilha, castanhas e outras especiarias. 
O acervo do século XIX inclui ainda a "Idade d'Ouro do Brazil", que foi o segundo periódico editado em território brasileiro, lançado no dia 14 de maio de 1811, em Salvador. Essa publicação contava com o patrocínio do então governador geral da Bahia, o conde dos Arcos e estava inserido no contexto da presença da Corte no Brasil, ou seja, voltada para dar publicidade aos atos e interesses da Coroa portuguesa.



Entre as publicações mais importantes do século XIX já disponibilizadas para consulta temos: O Espelho, Reverbero Constitucional Fluminense, O Jornal das Senhoras, O Homem de Cor, Marmota Fluminense, Semana Illustrada, A Vida Fluminense, O Mosquito, A República, Gazeta de Notícias, Revista Illustrada, O Besouro, O Abolicionista, Correio de S. Paulo, Correio do Povo, O Paiz, Diário de Notícias, Boletin do Grande Oriente do Brazil: jornal official da Maçonaria Brasileira (publicado entre 1871 e 1899, na imagem acima com um retrato de José Bonifácio da Andrada) e também os primeiros jornais das províncias do Império, abrangendo como já dissemos, todas as regiões brasileiras. 




Quanto ao século XX, podem ser consultados revistas de grande importância como Careta, O Malho, O Gato, Revista da Semana, Klaxon (na imagem acima, publicado em 1922 e vinculado ao movimento modernista), Revista Verde, Diretrizes e jornais que marcaram fortemente a história da imprensa no Brasil, como A Noite, Correio Paulistano, A Manhã e Última Hora.
Muitos periódicos de instituições científicas formam um segmento especial do acervo que já está disponibilizado, como por exemplo, os Annaes da Escola de Minas de Ouro Preto, O Progresso Médico, a Revista Médica Brasileira, os Annaes de Medicina Brasiliense, o Boletim da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, a Revista do Instituto Polytechnico Brasileiro, a Rodriguesia: revista do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, o Jornal do Agricultor, entre muitos outros. 
Várias outras modalidades de publicação podem também ser consultadas, como relatórios provinciais e boletins institucionais, dos quais destacam-se o Boletim da Illustríssima Câmara Municipal da Corte, os Relatórios dos Presidentes das Províncias (no Império), o Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, a Revista do Archivo Público Mineiro, a Gazeta dos Tribunaes: dos juízes e factos judiciaes, do foro e da jurisprudência (Rio de Janeiro) entre outros.



A consulta via internet pode ser feita por título, período, edição, local de publicação e por palavra (s). Outro recurso importante proporcionado pela Hemeroteca Digital é que o pesquisador pode imprimir em casa as páginas desejadas (na imagem acima o famoso Almanaque do Tico Tico, publicado entre 1911 e 1958). 
Além do MINISTÉRIO DA CULTURA, a HEMEROTECA DIGITAL BRASILEIRA é reconhecida pelo MINISTÉRIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA e conta com o apoio financeiro da FINANCIADORA DE ESTUDOS E PROJETOS – FINEP, o que tornou possível a compra dos equipamentos necessários e a contratação de pessoal para a sua criação e manutenção. No momento do lançamento do portal – em julho de 2012 –, foram cinco milhões de páginas digitalizadas de periódicos raros ou extintos colocados à disposição dos pesquisadores e do público em geral. 
A Hemeroteca Digital Brasileira estará na nossa lista de links interessantes do blog História Mundi.
Para ver: 
hemerotecadigital.bn.br



quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Anúncio Antigo 23: Aeroporto 1975




Houve uma época, em meados da década de 1970, que os chamados filmes de desastre ou "disasters movies" atraiam multidões aos cinemas de todo o mundo. O gênero ganhou força em Hollywood. Afinal de contas, gerava enormes bilheterias, embora em termos de qualidade cinematográfica estejam completamente esquecidos. Um dos mais famosos foi "Aeroporto" (1970) e que acabou gerando uma sequência quase interminável de três filmes que durou uma década inteira. Já tivemos a oportunidade de publicar na seção Anúncio Antigo o filme Aeroporto 1977. Hoje vai o antecessor: Aeroporto 1975. 
Uma das características dessa série era a de reunir no elenco astros veteranos ou em final de carreira. Muitos atores e atrizes encerraram de fato o seu currículo nesses filmes. Foi o caso de Gloria Swanson, atriz que havia iniciado a sua carreira nos tempos do cinema mudo (antes de 1927) e que aparece nesta película, interpretando ela mesma. Myrna Loy e Dana Andrews (cuidado, este é um ator e não uma atriz, apesar do nome) completam a ala antiga do grandioso elenco. 
No papel principal estava o também veterano Charlton Heston, que participou de vários outros filmes do gênero desastre, como "Terremoto" (1974) e "Vôo 502, em Perigo" (1972). Aqui, Heston interpreta o piloto que deveria ser colocado dentro de um Boeing 747 "Jumbo" em pleno vôo. A aeronave estava sendo "comandada" por uma aeromoça (interpretada pela atriz Karen Black) que recebia instruções da torre de controle. O piloto e o co-piloto estavam feridos após o choque do avião com um pequeno monomotor e impossibilitados de continuar no comando. Acreditem, a operação para colocar o piloto dentro da aeronave deu certo. Içado por um helicóptero turbinado ele foi introduzido no avião através de um buraco na fuselagem produzido pelo choque com o monomotor e ainda conseguiu pousar o avião em segurança. 



Uma das curiosidades desta série de filmes da marca "Aeroporto" é o ator George Kennedy (imagem acima). Ele foi o único do elenco original que participou das quatro sequências, interpretando o mesmo personagem, Joe Patroni, chefe da companhia aérea. Muitos anos depois, notabilizou-se pela comédia "Corra que a Polícia Vem Aí 2 e 1/2".



Neste filme temos também a presença de uma jovem atriz adolescente, Linda Blair (na foto acima). Para quem não lembrar, ela foi a menina possuída pelo demônio em "O Exorcista" (1973). Ainda a respeito desta sequência, na trilha sonora original do filme lançada em disco de vinil, a presença da composição "Insensatez" de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, que inclusive pode ser ouvida em uma das cenas do filme. 
Um outro fato curioso, embora diga respeito ao primeiro filme "Aeroporto" de 1970 é o de que um dos aviões utilizados nas filmagens, um Boeing 707 (hoje chamado de "sucatão"), foi adquirido mais tarde pela extinta companhia aérea Transbrasil (que um dia já se chamou Sadia) e utilizado como cargueiro. Em 1989, ao realizar uma tentativa de pouso no aeroporto de Cumbica em São Paulo, o mesmo aparelho caiu sobre uma favela matando toda a tripulação e mais de 20 pessoas em terra. Não caiu no filme, mas na vida real...Triste fim para um avião que havia se tornado "astro" em Hollywood.
O Anúncio Antigo de hoje foi publicado no final da década de 1970 no "Jornal da Tarde". Infelizmente não tenho a data precisa da publicação. O filme estava sendo reprisado no saudoso cine Comodoro, localizado no centro de São Paulo, em cópias de 70 mm (a largura da película que era projetada) com som estereofônico. Poucos cinemas na época tinham condições técnicas para exibir filmes nesse formato e esta sala teve exclusividade para  lançar vários "blockbusters" que marcaram época, como "Grease: nos Tempos da Brilhantina" com o então dançarino John Travolta, que permaneceu meses em cartaz nesse mesmo cinema. 
Crédito das imagens: www.aveleyman.com (de George Kennedy e Linda Blair) e acervo do autor (anúncio do Jornal da Tarde). 

domingo, 9 de setembro de 2012

A novela Gabriela: versão 1961




Sim, existiu uma primeira versão para a televisão da história baseada na obra de Jorge Amado "Gabriela, Cravo e Canela" anterior à de 1975 e bem anterior...de 1961. Apenas três anos após o livro ter sido publicado (a primeira edição é de 1958) já ganhava uma adaptação televisiva na extinta TV Tupi do Rio de Janeiro. Infelizmente, ao que parece, nada restou da mesma em termos de imagens. Mesmo as fotos são raríssimas. Contudo, o blog História Mundi foi atrás e conseguiu reunir um pequeno material e informações esparsas sobre essa primeira versão de "Gabriela". 
Uma jovem da cidade de Niterói (RJ) chamada Janete Marilda Vollu de Carvalho ou simplesmente Janete Vollu (na imagem acima), que fazia parte do elenco de vedetes do produtor de espetáculos Carlos Machado, foi a primeira atriz a viver a famosa personagem. Uma Gabriela de olhos azuis, algo que ninguém na época repararia, pois a televisão era em preto e branco. 
A novela, chamada nos jornais da época de série, teve 42 capítulos, sendo adaptada por Antonio  Bulhões de Carvalho e dirigida por Maurício Sherman, responsável atualmente pelo humorístico (humorístico???) Zorra Total da TV Globo. Cada capítulo tinha apenas 20 minutos e exibidos duas vezes por semana, às terças e quintas-feiras. Os capítulos eram gravados em videotape, um novidade na época. Aliás, essa foi a primeira novela gravada pelo novo sistema. Apesar de contar com esse recurso, as gravações eram feitas sem edição e de forma ininterrupta. 




Sobre a novela em si existem poucas informações. De acordo com Maurício Sherman, em uma recente entrevista ao blog da revista Veja, optou-se por uma transcrição mais fiel do livro de Jorge Amado, tendo como foco a luta política dos coronéis. A personagem Gabriela deveria transparecer a sensualidade descrita no livro. Por isso, a escolha da citada atriz para viver o papel foi baseada mais em sua beleza do que na experiência como intérprete. 
Janete Vollu fez a sua primeira e unica atuação nessa novela. Na época, Vollu trabalhava para pagar o seu curso de normalista com o objetivo de se formar professora. Ainda de acordo com Sherman, o próprio Jorge Amado (na foto acima, o escritor baiano é o segundo a partir da esquerda e Vollu de vestido branco ao centro) teria sugerido uma atriz que fosse desconhecida e o Carlos Machado, que era "o rei da noite" do teatro de revista (gênero conhecido por exibir belas mulheres) preparava Janete Vollu para ser uma nova vedete. A atriz acabou sendo escolhida e foi convidada por Jorge Amado para conhecer a Bahia e a cidade de Ilhéus, terra do cacau. Após o final da novela, ela se casou com um arquiteto e este exigiu que ela abandonasse a carreira artística. O marido da atriz não aprovava "esse tipo de trabalho". Janete Vollú morreu jovem, com apenas 34 anos, no início da década de 1970. 
As informações a respeito do papel desempenhado pelo grande ator Paulo Autran na novela "Gabriela, Cravo e Canela" de 1961 são controversas. No livro "Almanaque da TV: 50 anos de memória e informação" de Rogério Sacchi (o Rixa) e Renata Mafra, o famoso ator é citado como intérprete de Mundinho Falcão. Recentemente, procurado para falar da primeira versão de Gabriela, o próprio Maurício Sherman confirmou na citada entrevista para o blog da Revista Veja, que Paulo Autran viveu mesmo o dr. Mundinho Falcão, embora muitas outras fontes afirmem ter Autran interpretado o personagem Tonico Bastos. Outros grandes nomes fizeram parte do elenco, como Renato Consorte (como o turco Nacib), Grande Otelo (como Tuísca), Sueli Franco (como a jovem rebelde Malvina) além de Glauce Rocha, Jece Valadão e o grande dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho (o criador da Grande Família). 




Por outro lado, o grande ator de teatro, cinema e televisão Renato Consorte (1924-2009) que interpretava Nacib nessa primeira versão (na foto acima, da época da novela) viveu um drama dois anos depois, em 1963. Ao embarcar em Congonhas para um viagem ao Rio de Janeiro, o avião da antiga companhia aérea Cruzeiro do Sul sofreu uma pane ao decolar do aeroporto da capital paulista. Na tentativa de retornar à pista acabou caindo no bairro do Jabaquara e sofrendo uma explosão. O saldo: 34 mortos entre passageiros e tripulantes e apenas 13 sobreviventes. Um deles era Renato Consorte, que sofreu queimaduras em todo o corpo e passou meses até se recuperar plenamente. Muitos afirmaram na época que o sobrenome do ator pesou muito na sua sobrevivência....
Fontes consultadas: 
http://veja.abril.com.br/blog
Almanaque da TV: 50 anos de memória e informação de Rixa. Editora Objetiva, 2000.
Fonte das imagens: Agência O Globo. 





domingo, 2 de setembro de 2012

Capa de CD com Erro Histórico



Há alguns anos comprei este CD apenas por causa da capa errada. Imaginei um dia propor um desafio aos meus alunos para que identificassem o erro. Como agora tenho o blog estou colocando o mesmo aqui. O erro é elementar para os conhecedores da História Antiga. A música até pode ser italiana, mas as ruínas da capa são gregas. Trata-se do conhecido Pártenon localizado na acrópole (colina elevada) da cidade de Atenas, que começou a ser construído em 447 a.C. pelos arquitetos Ictino e Calícrates. O trabalho das esculturas dos frisos foi concluído pelo grande escultor Fídias em 432 a.C.. 
Dentro do Pártenon foi colocada uma enorme estátua da deusa Palas Atena, também executada por Fídias, em ouro e marfim em volta de um núcleo de madeira. Era o auge da democracia ateniense (ver post "A Democracia na Antiga Grécia") e o famoso escultor foi vítima das disputas políticas que envolveram o seu protetor e líder de Atenas, o general Péricles. A fim de atingir este último, seus inimigos políticos acusaram Fídias de ter roubado uma parte do ouro usado na obra. Como as placas de ouro eram removíveis, Fídias pode mostrar que todo o ouro que lhe foi dado estava na obra e provar a sua inocência perante a Assembléia Popular. 
Por outro lado, com relação ao CD acima não há o que contestar. Trata-se de um erro grosseiro. Não consegui localizar a parte I do mesmo para verificar se cometeram erro semelhante. Trata-se de um engano que ficou para a História. Muitos devem estar me perguntando, ao ler esta pequena postagem, se pelo menos as músicas deste CD são boas. Acontece que eu comprei o mesmo em 1995 e até hoje não ouvi...

Democracia na Antiga Grécia parte II




Será que a Grécia antiga têm algo a nos ensinar a respeito da política e da democracia? Verificamos na primeira parte do post "Democracia na Antiga Grécia" que a prática política dos gregos surgiu em um ambiente bem diferente do atual, dentro de uma comunidade constituída no espaço físico de uma cidade-estado. Por outro lado, muitos dos desafios enfrentados pelos antigos gregos têm paralelo com os tempos de hoje e podem nos inspirar na discussão a respeito da democracia atual. O dilema da vida em comunidade (na imagem acima, ruínas da antiga Atenas) e dos conflitos sociais são parte dessa experiência e verificar como os gregos responderam às mesmas podem ser úteis na busca de alternativas para algumas questões da política contemporânea.




As reflexões que estamos propondo são derivadas de uma série de conferências realizadas pelo grande historiador norte-americano Moses Finley (1912-1986) em 1972 e reunidas no livro "Democracia Antiga e Moderna". Este historiador (imagem acima) sempre mostrou uma preocupação em estabelecer os elos entre as civilizações clássicas (greco-romana) e a atualidade utilizando conceitos originários da moderna sociologia, da antropologia e do marxismo com um conhecimento rigoroso que não dá margens a vulgarizações. Essa postura teórica lhe valeu uma perseguição durante a "caça às bruxas" promovida pelos anti-comunistas nos Estados Unidos na década de 1950. Finley acabou indo trabalhar na Inglaterra, primeiro na Universidade de Oxford e mais tarde em Cambridge. Vinte anos depois ele voltou para a sua terra natal para proferir as conferências reunidas no citado livro. 
Os antigos gregos não chegaram a criar uma teoria específica a respeito da democracia. O que havia eram noções esparsas, máximas, alguns princípios mais gerais, mas que nunca chegaram a formar um corpo teórico sistemático. Uma dessas máximas chegou até nós por meio de uma oração fúnebre atribuida ao grande líder da democracia ateniense Péricles, na época em que já havia tido início a Guerra do Peloponeso (431-402 a.C.), que envolveu a cidade de Atenas e a sua rival Esparta. Abaixo um trecho do mesmo:

"Nossa constituição é chamada de democracia porque o poder está nas mãos não de uma minoria mas de todo o povo. Quando se trata de resolver questões privadas, todos são iguais perante a lei, quando se trata de colocar uma pessoa diante de outra em posições de responsabilidade pública, o que vale não é o fato de pertencer a determinada classe, mas a competência real que o homem possui."
"Aqui, cada indivíduo se interessa não só pelos seus assuntos particulares, mas também pelos assuntos do Estado... não dizemos que um homem que não se interessa pela política é um homem que tem muito que fazer para si mesmo; dizemos que ele não tem absolutamente nada que fazer aqui... E há outro ponto em que nos distinguimos de outras pessoas: somos capazes ao mesmo tempo de assumir riscos e de calculá-los previamente. Outros são bravos por ignorância e, quando param para pensar, começam a ter medo. Mas o homem que pode em verdade ser considerado bravo é aquele que mais sabe avaliar tudo o que é doce na vida e tudo o que é terrível e sai, então, sem temor, para enfrentar o que vier."

Para Moses Finley, uma das questões que mais preocupavam os gregos era: os líderes lideravam no interesse de quem? Ora, os homens não são iguais, tanto na sua condição moral como também na sua posição sócio-econômica. Por isso, toda comunidade tende a se dividir em facções ou partidos, como por exemplo, ricos e pobres. E o Estado diante disso? Supera essas facções e se coloca acima delas? Os diversos autores gregos eram unânimes em relação a um aspecto, a ideia de que o Estado deve ficar afastado desses interesses facciosos e de classes. Para eles, os fins e objetivos do Estado são "morais, atemporais e universais" e seriam alcançados mediante a educação, pela conduta moral daqueles que detinham o poder, por leis corretas e por uma boa escolha dos governantes. O bom funcionamento do Estado repousaria na ausência de facções ou interesses vinculados a determinadas classes, embora em termos práticos a existência dos mesmos fosse reconhecida. Platão levou às últimas consequências essa questão, propondo em seu livro "República" concentrar todo o poder nas mãos de um grupo seleto e educado, que ficasse livre de todo tipo de interesse ou pressão. Bem, os que se enquadrariam nessa categoria eram os próprios filósofos. Aristóteles seguia um raciocínio parecido, pois acreditava que se os governantes tomassem decisões a partir do interesse pessoal ou de classe poderiam surgir formas degeneradas de governo. 


Os filósofos desconfiavam que a democracia levasse a uma espécie de desordem popular ou à demagogia ("enganar o povo" ou mesmo "liderar o povo"). Uma exceção, de acordo com Finley, foi Protágoras, que afirmava que todo homem (no sentido do homem livre) possuia uma politike techne ou a arte do julgamento político e que poderia ser aplicada aos debates da Assembléia. Sem isso não poderia existir uma sociedade civilizada. 
Apesar das restrições dos filósofos, foi exatamente a capacidade para o debate e o vigor proporcionado pela participação política na Assembléia (na imagem acima, senhas para votação) que forneceu à democracia ateniense a sua resistência e o enfrentamento de questões vitais para a vida dos cidadãos. Da mesma forma, o sentimento de comunidade saiu fortalecido nos séculos V e IV a.C.. A luta partidária não era estritamente uma luta de classes. A prática de "liderar o povo" que alguns associavam com a demagogia era parte fundamental da democracia e impulsionava a mesma.
Por outro lado, uma outra questão que também preocupava os antigos era a apatia. O termo significava "falta de sentimento" ou "insensibilidade", algo que para os gregos, não podia ser aceito em uma verdadeira comunidade. Uma tradição atribuida ao antigo legislador de Atenas, Sólon, afirmava que para combater a apatia foi determinado que quando ocorresse uma guerra civil na cidade, o cidadão que não tomasse partido deveria ser destítuido de seus direitos civis e de participação. Tal sentimento foi expresso por Péricles, que classificava o homem que não participava dos assuntos da cidade como um inútil.
Moses Finley recorda que um dos pensadores mais importantes do liberalismo no início do século XIX, John Stuart Mill, em seu livro "Considerations on Representative Government", afirmava que Atenas ainda tinha muito a oferecer no que dizia respeito à experiência da democracia. A participação política por meio da Assembléia Popular elevava o nível intelectual do ateniense de forma mais eficaz do que em qualquer outro agrupamento humano. Ao exercer tais atividades o indivíduo era obrigado a pensar por parâmetros diferentes dos seus e aplicar os princípios referentes ao bem comum. Na teoria clássica do século XIX acreditava-se que a educação do povo levaria a que todos atingissem suas plenas capacidades intelectuais e morais a fim de formar uma verdadeira comunidade. O exercício da política era visto como útil para a educação pública. Portanto, o governo deve estar empenhado na educação das massas, o que é um pressuposto para o exercício da democracia.



Em Atenas no século V a.C., para que um debate tivesse a capacidade de angariar a atenção de uma platéia ao ar livre (ver imagem acima o local da antiga Assembléia de Atenas na colina Pnice) era necessário o bom uso da oratória. Para Moses Finley os debates eram mais espontâneos, algo que estaria faltando à democracia atual. A decisão teria de ser tomada antes que a noite caísse e cada homem votava sem qualquer tipo de controle partidário. Os membros da Assembléia (Eclésia) não ocupavam postos, não eram eleitos (pois eram os próprios cidadãos de Atenas) e não eram punidos ou recompensados em função dos seus votos. 



Contudo, Finley lembra que os cidadãos não estavam separados da sua tradição, das influências da família, da classe da qual eram originários, dos valores destas, das aspirações e medos. Levavam tudo para a Assembléia quando se reuniam. Existe uma diferença entre votar de vez em quando em um candidato (como ocorre hoje) e votar diretamente nas próprias questões, algo que permitia um maior envolvimento do indivíduo chegando até mesmo a um clima de tensão. Os oradores tinham que suportar pessoalmente os ataques dos opositores (na imagem acima, cacos de cerâmica com o nome dos cidadãos que eram votados). Embora pudessem ter assistentes e fazer alianças com outros líderes políticos, os laços eram pessoais e instáveis, sem a existência de uma sustentação partidária institucionalizada como ocorre hoje em dia no Senado e Câmaras atuais.
Uma das transformações apontadas pelo historiador Moses Finley na época atual foi o da transformação da política em profissão no sentido restrito da palavra. Na Roma Antiga muitos cortesãos e políticos dedicaram-se exclusivamente ao governo, mas não eram políticos no sentido exato do termo. Eles eram pouco numerosos e seus interesses eram mais restritos, não os de um grupo profissional. Neste último caso ocorre a vinculação entre a atividade política e o enriquecimento, mesmo quando não há corrupção. Os políticos atuais surgiram como um novo e poderoso grupo de interesse dentro da sociedade. 
Finley critica a política contemporânea por estar um tanto quanto engessada e que os debates são feitos de forma a não colocar em risco o equilíbrio entre as classes. Na época atual não existem partidos ou grupos que façam uma pressão verdadeiramente radical. Finley observou isso em 1972 ao criticar o elitismo da prática política. Neste início de século XXI tudo o que Finley verificou há décadas atrás parece se confirmar. O debate é estéril e o desinteresse ou mesmo apatia com relação à política é perceptível, algo que os antigos gregos tanto temiam que ocorresse. A política atual está associada a algo imoral. Nas suas origens a não política é que era imoral... 
Para saber mais:
Finley, Moses. Democracia Antiga e Moderna. Rio de Janeiro, Graal, 1988. 
Fontes das imagens: Coleção História das Civilizações, Ed. Abril, 1975. Grécia Clássica, José Olympio Editora, 1969 (citação do discurso de Péricles na pag. 108). Grécia: Templos, Túmulos e Tesouros. Col. Civilizações Perdidas, Abril Coleções, 1998.