A China é um assunto que está na ordem do dia. Seja por motivos econômicos, políticos e agora, pelo fato de ter sido o epicentro da pandemia do coronavírus, muito embora o governo chinês tenha informações a respeito de uma possível origem norte-americana do covid-19. Mas essa é uma outra questão. O que pretendemos aqui é recomendar ao nosso leitor, nestes tempos de quarentena, um livro que pode se tornar um excelente ponto de partida para entendermos o enigma chinês: "O que a China pensa?" Escrito por Mark Leonard, diretor-executivo do Conselho Europeu de Relações Internacionais e que passou uma temporada no país asiático, como visitante da Academia Chinesa de Ciências Sociais, além de ter escrito artigos e matérias sobre o tema em várias publicações, como no jornal The Guardian e na revista The Economist.
Decifrar o milagre econômico chinês não é muito fácil e requer uma perspectiva histórica que o livro, dentro de seus limites, procura atender levando-se em consideração o foco proposto. Mas lembremos mais uma vez, essa obra é um ponto de partida e não de chegada. Conhecer a respeito das cabeças pensantes da China, como propõe o autor, também é fundamental para que possamos vislumbrar os passos da economia que mais cresce no planeta.
Desde a Guerra do Ópio no século XIX, a China enfrentou o domínio das grandes potências imperialistas como Inglaterra, França e Alemanha. Em seguida veio o Japão, cujo domínio durou até o final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e depois os Estados Unidos, que chegaram a ajudar os chineses na luta contra o inimigo comum, o imperialismo nipônico. Em 1949 houve o desfecho da Revolução Comunista sob a liderança de Mao Tsé-Tung e o rompimento definitivo com os nacionalistas pró-ocidente, que se refugiaram na ilha de Formosa (hoje Taiwan). Contrariando mais uma vez as previsões do pensamento marxista, a revolução ocorreu na periferia do capitalismo, em um país agrário formado na sua grande maioria pelo campesinato pobre. Contudo, a mesma também funcionou como uma luta de libertação nacional. Ao lado da União Soviética e do leste europeu, a China incorporou-se ao bloco comunista na Guerra Fria frente aos países capitalistas no outro extremo. No início da década de 1960 ocorreu a crise sino-soviética, a cisão entre as duas grandes nações comunistas. Era tudo o que os Estados Unidos desejavam para poderem negociar diretamente com os chineses.
Em 1971 foi acertada a visita à China do presidente norte-americano Richard Nixon (ocorrida no ano seguinte), numa aproximação conduzida pelo secretário de Estado, Henry Kissinger (na foto acima, um segundo encontro entre Mao Tsé-Tung e o já ex-presidente Nixon, em 1976, pouco antes da morte do líder chinês). Foi a diplomacia triangular dos Estados Unidos, negociar acordos de contenção do arsenal nuclear com a União Soviética e ao mesmo tempo, promover entendimentos com a China, isolada em função dos radicalismos da Revolução Cultural, ainda no governo de Mao Tsé-Tung. Um dos resultados dessa aproximação foi a entrada da China na Organização das Nações Unidas (ONU) como membro permanente do Conselho de Segurança (com direito a poder de veto). A política promovida pela dupla Nixon-Kissinger acabou por se tornar uma boa compensação pela derrota dos Estados Unidos no Vietnã.
Como dar continuidade a essa abertura? Exemplos vieram do exterior, como as reformas promovidas por Mikhail Gorbatchev na União Soviética, durante a segunda metade da década de 1980. Contudo, nem a glasnost (abertura política) e nem a perestroika (abertura econômica) conseguiram manter a coalizão das repúblicas soviéticas. Em 1991 veio a desintegração e a perda do poder pelo Partido Comunista (PC). A grande herdeira da União Soviética, a Rússia, viu-se em uma fase de desordem com a privatização do aparato econômico e a transição política sem a liderança do PC. Para o governo chinês, tratou-se de algo a ser observado com atenção. Promover uma abertura radical poderia levar a um completo descontrole político e econômico? O modelo neoliberal proposto pelos Estados Unidos, representava o melhor caminho para os chineses no momento inicial do processo de globalização? A democracia ocidental seria uma alternativa política para a China?
Mas, os primeiros resultados apareceram. Sob a batuta dos economistas da era Deng Xiaoping, a China obteve um crescimento de 9% ao ano em média, durante três décadas até 2007, o qual tirou centenas de milhões de pessoas da pobreza absoluta, fazendo com que 200 milhões deixassem o campo para trabalhar na indústria. Mais 100 milhões se tornaram indivíduos de classe média e outros 500 mil viraram milionários. Um grupo de economistas liderados por Zhang Weiying defendia uma abertura econômica controlada, sem a "terapia de choque" adotada na Rússia e nos demais países que assimilaram a doutrina neoliberal ao pé da letra. Como afirmavam os economistas chineses, "tatear por pedras para cruzar o rio" e sem um objetivo final predeterminado. Daí a importância das ZEEs onde tais experiências foram iniciadas, com benefícios tributários, flexibilização das normas governamentais e licenças para o mercado, inclusive com a atração de capitais externos do ocidente.
A ideia era estimular indústrias de alta tecnologia e de capital intensivo para a produção de artigos com alto valor agregado. Em outras palavras, produtos que pudessem competir com o ocidente (acima, o jato C919 que está sendo desenvolvido pela estatal chinesa COMAC, para competir com modelos equivalentes da Boeing e Airbus).
A primeira das ZEEs foi na região de Shenzhen, no sul da China (no delta do rio das Pérolas e nas proximidades de Hong Kong), que atraiu US$30 bilhões de investimentos externos (na imagem acima, o atual centro financeiro de Shenzhen). Hoje, Shenzhen é a terceira cidade mais importante da China em termos econômicos, perdendo apenas para Xangai e Pequim. Lá estão as sedes de grandes empresas, entre elas a Huawei, do setor de telecomunicações (atualmente, a segunda maior marca chinesa com presença global, atrás somente da Lenovo).
O inevitável efeito da abertura para a economia de mercado também ocorreu, com as desigualdades e diferenças sociais. Ao mesmo tempo, em 1989, vieram as reivindicações por maior abertura política e democracia, inspiradas na glasnost de Gorbatchev. A partir dai, duas tendências reformistas buscaram se impor dentro do cenário chinês. O grande mérito de "O que a China pensa?" é o de destrinchar esse embate. A chamada "Nova Direita", liderada por Zhang Weying, a quem já nos referimos, que desejava consolidar o livre mercado e a "Nova Esquerda" liderada por Wang Hui, que pleiteava igualdade e democracia como forma de tutelar o laissez faire (expressão francesa que significa deixar fazer, um lema da economia liberal). Posteriormente, esse debate evoluiu para uma questão também presente no mundo ocidental: mais Estado ou menos Estado?
Apesar de ser designada de "Nova Esquerda", os intelectuais dessa corrente apoiam as reformas econômicas das últimas décadas. Contudo, os mesmos revelam preocupações com os seus efeitos. De acordo com Wang Hui:
A China está presa entre os dois extremos do socialismo equivocado e do capitalismo crônico e sofrendo por causa dos piores elementos dos dois sistemas... Eu sou normalmente a favor de orientar o país para as reformas de mercado, mas o desenvolvimento da China deve ser mais igual, mais equilibrado. Não devemos dar prioridade total ao crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) e nos esquecer dos direitos dos trabalhadores e do meio ambiente.
Para a "Nova Esquerda" o mercado externo, alvo preferencial do crescimento chinês, têm as suas limitações. Por isso, haverá a necessidade de ampliar o mercado interno e para que tal venha a ocorrer, o cidadão chinês precisará se sentir mais seguro, protegido das doenças, do desemprego e da velhice. Somente um governo central forte poderá proporcionar essa rede de seguridade social. As questões relativas ao meio ambiente também se fazem presentes nesse embate. Mark Leonard nos revela que o foco no PIB tem sido criticado por se basear na utilização de combustíveis e minerais fósseis, consequentemente em poluição. Os teóricos da "Nova Esquerda" passaram a reivindicar o estímulo à eficiência, a utilização de energia renovável e a geração de "empregos verdes".
Até onde o livro alcança, pois foi publicado em 2008, o livre mercado na China evoluiu, porém dentro de certos limites, para desespero de seu mentor, Zhang Weiying. O setor estatal ainda era dominante na indústria com 60% dos títulos de capital fixo e 80% dos executivos dessas empresas sendo nomeados pelo Partido Comunista Chinês. Embora tivesse o oitavo maior mercado de ações do planeta, menos de um terço das mesmas podiam ser negociadas. As empresas de maior prestígio continuavam sendo controladas pelo Estado.
Outro aspecto do crescimento chinês, o desequilíbrio entre as províncias atrasadas do interior e a região costeira do leste, algo que preocupou os líderes chineses do início do século XXI, como o presidente Hu Jintao (foto acima) e o primeiro-ministro Wen Jiabao.
No plano político, ampliar a democracia no estilo ocidental ou instituir um modelo alternativo? De acordo com Mark Leonard, o caso da União Soviética veio novamente à lembrança. O grande erro atribuído pelos chineses a Gorbatchev: o de ter antecipado as reformas políticas sem dar tempo suficiente para a liberalização da economia. Teóricos da "Nova Esquerda" fazem algumas ponderações a respeito do modelo democrático liberal do ocidente. Wang Shaouguang afirma que o mesmo enfrenta uma crise, com a redução no comparecimento às eleições, a descrença nos líderes políticos e nos partidos. Acrescentemos outro fator a esses argumentos: a corrupção. Vale lembrar que muitos dos intelectuais chineses viveram ou estudaram no exterior, principalmente nos Estados Unidos, por isso, conhecem a fundo as experiências econômicas e políticas dos países ocidentais.
Diante das dúvidas a respeito do futuro da República Popular da China, Mark Leonard nos relata experimentos de participação política que tem sido desenvolvidos em algumas regiões. Na cidade de Chongqing (imagem acima), próxima à confluência dos rios Yang-tzé e Jiang no interior da China, existia até 2008 um verdadeiro "laboratório" para uma espécie de democracia participativa, onde os cidadãos deliberavam sobre as decisões importantes a serem tomadas pelo governo municipal. Uma forma de equilibrar os interesses populares aos do grande capital, que sempre é ouvido. Porém, para os padrões ocidentais, o governo chinês está longe de promover uma plena liberdade. O PC não abre mão de seu poder mantendo o regime de partido único. A internet é rastreada e vigiada, bem como informes que façam críticas ao Partido Comunista ou abordem questões indesejadas, como Taiwan (considerada oficialmente, uma província rebelde), os monges do Tibet e o massacre de estudantes na praça da Paz Celestial em 1989. Seitas religiosas não são bem vindas, não pela religião em si, mas por promoverem reuniões. O passado chinês ensina que revoluções e movimentos políticos tiveram as suas organizações criadas a partir de sociedades secretas e seitas. Cabe uma discussão não tratada no livro, até que ponto no ocidente também não é assim? Todas as potências capitalistas dispõem de serviços de inteligência. A vigilância nas redes sociais também é presente. Mark Leonard designa esse protótipo de modelo político chinês de "ditadura deliberativa". Será esse o futuro da China?
Terá também a China pretensões militaristas e imperialistas, como as grandes potências econômicas do passado? Irá se armar para isso? Bem, que tal recorrer à milenar cultura chinesa para buscar uma possível resposta. Muitos acadêmicos desse país falam em desenvolvimento equilibrado, ou seja, o Ying do poder econômico deve estar em equilíbrio com o Yang militar, político e moral. Por outro lado, com Deng Xiaping os chineses aprenderam de forma cautelosa a "não por a cabeça para fora", como também a diversificar os seus parceiros comerciais, numa espécie de "ascensão pacífica". Porém, outros intelectuais como Yan Xuetong, diretor do Instituto de Estudos Internacionais da Universidade de Tsinghua em Pequim, argumentam que nenhuma nação forte ascendeu pela paz, rebatendo os internacionalistas liberais que pregam a conciliação. Xuetong coloca que quando se faz concessões, os outros sempre pedem mais levando ao inevitável caminho militarista. Será esse o procedimento com Taiwan?
Por outro lado, os estrategistas chineses pensam em outras possibilidades de confronto sem recorrer à ferramenta militar (considerada de alto custo e aplicada pelos Estados Unidos), através do uso de armas econômicas e políticas, as quais podem apresentar resultados tão bons quanto um conflito armado. "Os soldados não possuem o monopólio da guerra" dizem alguns especialistas do Exército chinês.
Pelo sim e pelo não, mais recentemente, já além do período tratado no livro, a China busca ampliar o seu arsenal, fabricando os seus próprios porta-aviões e navios de guerra (na foto acima, o porta-aviões Type 001-A, o primeiro com tecnologia chinesa).
Uma preocupação observada por Mark Leonard para as potências militares ocidentais, leia-se Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), capitaneada pelos Estados Unidos, a aproximação da China com os países orientais, inclusive alguns possuidores de arsenal nuclear (na foto acima, o atual presidente e líder chinês Xi Jinping). Em 1995 a China chamou a Rússia, Casaquistão, Quirguistão e Tajiquistão para um acordo de segurança conhecido como Xangai Cinco e que depois evoluiu para a Organização Cooperativa de Xangai (SCO em inglês) que defende além da segurança militar (inclusive contra o terrorismo) a cooperação comercial. Índia, Paquistão, Mongólia e Irã são países que participam como observadores do acordo. Aquilo que na década de 1970 significou uma vitória estratégica para os Estados Unidos se desfez, com a reaproximação consistente entre Rússia e China nos últimos anos. Enquanto o governo norte-americano trabalha com bloqueios econômicos contra supostos inimigos, a China promove comércio e alianças estratégicas com todos. Além disso, no início do presente século, Pequim sugeriu aos seus aliados mais próximos sufocar as chamadas "revoluções coloridas", as quais obedeciam os postulados liberais dos norte-americanos.
Na conclusão, Mark Leonard aponta os países que estavam tentando (até 2008) copiar de alguma forma o "modelo chinês" ou algumas de suas experiências no campo econômico e industrial, entre eles a Rússia, o Vietnã e o Brasil. Sim, o Brasil. Uma das boas contribuições do presente livro é o de propor uma discussão crucial: o "modelo chinês" é replicável? Se isso não bastasse, ainda lança outra questão, aliás expressa de forma clara na conclusão do trabalho, a de que o êxito chinês rompeu a conexão entre democracia e crescimento econômico. Podemos ir além, alguma vez houve tal conexão?
Este que vos escreve agradece ao primo Gustavo Ruiz, que esteve recentemente na China e sugeriu a leitura. Enfim, "O que a China pensa?" além de traçar os possíveis caminhos a serem percorridos pela China em ascensão, ainda reúne vários elementos para começarmos um excelente debate sobre o milagre econômico daquele país. Ora, não é esse o papel a ser desempenhado por uma boa leitura? Então caro leitor, mãos à obra...
Para ler:
O que a China pensa?
Autor: Mark Leonard
Editora: Larousse do Brasil (São Paulo)
Ano: 2008
Crédito das imagens:
Encontro de Mao com Nixon: Century. Phaidon Press, 1999, página 852.
Foto de Deng Xiaoping: 1970s Gettyimages. Könemann, 2004, página 46.
Fotos do jato Comac C919, das cidades de Shenzhen e Chongqing, dos presidentes Hu Jintao e Xi Jinping: Wikipédia
Foto do porta-aviões chinês:
https://aeromagazine.uol.com.br/