Eis uma bela foto (acima) do distante ano de 1963, numa rua do bairro do Belenzinho, na cidade de São Paulo, onde observamos um bonde em movimento, que fazia a linha 24, Praça Clóvis Bevilacqua - Largo São José do Belém. Muito difícil identificar o local exato, talvez as avenidas Celso Garcia ou Álvaro Ramos, ou ainda a rua Belém (aposto nesta última).
O autor da fotografia é Earl Clark (imagem acima), fotógrafo de Cincinnati (EUA) e que registrou imagens referentes aos bondes da capital paulista, nos bairros do Brás, Belenzinho, Vila Maria e Penha. Com a mesma finalidade, Clark visitou vários países da América Latina como Uruguai, Argentina, Chile, Paraguai, Bolívia e Peru. O fotógrafo faleceu no início de 2018 e as suas fotos (como a de outros fotógrafos norte-americanos) fazem parte do acervo do pesquisador Allen Morrison, de quem falaremos adiante. O blog História Mundi está reunindo material escrito e fotográfico sobre o bairro do Belenzinho, na Zona Leste de São Paulo, para uma futura postagem a respeito desse aprazível canto da cidade, que atualmente tornou-se alvo da expansão imobiliária. Isso porque o entorno do bairro conheceu nos últimos anos a implantação de shoppings centers, a chegada das grandes universidades privadas, além de ter recebido, a partir do início da década de 1980, uma linha de metrô que se estende até Itaquera. Acrescente-se a tudo isso a inauguração de uma enorme unidade do Sesc, localizada na rua Padre Adelino (logradouro no qual este que vos escreve passou a maior parte de sua vida).
Mas, vamos comentar sobre a foto mais acima do bonde, pois nos remete ao professor e pesquisador norte-americano Allen Morrison. As informações a respeito deste estudioso nos são fornecidas pelo arquiteto e urbanista Ayrton Camargo e Silva, que também é autor do livro "Tudo é Passageiro", que trata da história dos bondes na capital paulista. Morrison foi professor da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos e tornou-se conhecido por seus estudos a respeito do transporte elétrico urbano (bonde e trólebus, o ônibus elétrico).
Este pesquisador reuniu um vasto conteúdo documental e fotográfico (acima, bonde no ponto final da praça Santo Eduardo, na Vila Maria em São Paulo, no ano de 1963, em foto de Earl Clark). A partir dos seus estudos, o professor Morrison escreveu três livros: The Tramways of Brazil (1989), The Tramways of Chile (1992) e Latin America by Streetcar (1996).
Para nós historiadores, pesquisadores e curiosos, o importante é que boa parte desse conteúdo (inclusive as fotos) foi disponibilizado em um site, que era mantido até o ano passado pelo próprio Morrison (na foto acima, de Earl Clark, bonde trafega na Avenida São João junto ao Largo Paissandu, em 1963). No mesmo temos informações a respeito do sistema de transporte elétrico urbano em 25 países e em mais de uma centena de cidades da América Latina, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belém e até mesmo Campos do Jordão, onde existe uma estrada de ferro dentro do município. Ayrton Camargo e Silva, que foi diretor dessa ferrovia, foi amigo de Allen Morrison e teve contato regular com o pesquisador, que faleceu no final de 2018 aos 90 anos de idade, deixando um legado precioso a respeito de um tema fundamental para as nossas cidades: a mobilidade urbana.
De acordo com informações obtidas no site do professor Morrison, entre os anos de 1957 e 1965, existiam quatro tipos de bondes de passageiros em circulação na cidade de São Paulo, incluindo uma frota de veículos com abertura lateral e bidirecionais. O bonde bidirecional (como o da foto acima feita por Bill Janssen em 1957, no bairro de Vila Prudente) não dispunha de um "balão" no ponto final, para que fosse feita a curva de retorno. Ao chegar na última parada, o motorneiro (que conduzia o bonde) levava os comandos para o lado oposto do veículo e o cobrador caminhava pelo corredor empurrando os encostos para o lado contrário, para que os passageiros não viajassem de costas. Esses bondes foram desmanchados em 1962, exceto os que percorriam a linha 24, que saia do bairro do Belenzinho até a Praça Clóvis, que por essa razão, tornaram-se uma atração na cidade.
Na foto acima (tirada por Earl Clark em 1963), temos um balão de retorno para os bondes da linha 35, na rua Guaicurus, ao lado do viaduto da Lapa em São Paulo. Os bondes que aparecem nessa imagem eram unidirecionais e necessitavam desse trecho em curva (balão) para fazer a viagem de volta. Nesse tipo de bonde, o motorneiro permanecia sempre no mesmo lugar, como no ônibus comum.
O bonde unidirecional era fechado e com uma cor avermelhada, daí o fato da população ter apelidado esse veículo de "bonde camarão" (como o que aparece na foto acima de Foster Palmer, tirada na avenida São João em São Paulo, no ano de 1965).
O protótipo desse veículo foi testado pela primeira vez no dia 5 de maio de 1927, na presença do então prefeito de São Paulo, José Pires do Rio (nas fotos acima, o mesmo bonde fechado de prefixo 1301, na garagem e em serviço no final da década de 1920).
Os bondes unidirecionais circularam na cidade entre os anos de 1927 e 1968. Para o público que visita o Museu dos Transportes de São Paulo, há a possibilidade de ver alguns desses veículos em exposição e em perfeito estado de conservação (na foto acima, um bonde unidirecional seguindo para o bairro de Pinheiros em São Paulo, no início da década de 1960).
Entre eles está o famoso bonde "Gilda" (imagens acima), nome dado em referência ao filme clássico homônimo, lançado em 1946 e que tinha como estrela Rita Hayworth (ver a nossa postagem Anúncio Antigo 43: Rita Hayworth). Beleza, elegância e conforto fizeram com que a população associasse esse bonde à atriz norte-americana. Além disso, o veículo dispunha de bagageiro no canto superior esquerdo. O Gilda circulava apenas em algumas linhas, como as que percorriam o trecho das avenidas Paulista e Angélica, servindo um público mais elitizado. A memória desses tempos permaneceu por meio daqueles que fizeram uso desse meio de locomoção, como a de uma senhora idosa que ao visitar o Museu dos Transportes emocionou-se por ter de volta a lembrança de seu falecido esposo, o qual conhecera nas viagens desse bonde. O casal utilizava o Gilda para namorar, uma vez que os pais da jovem só autorizavam o namoro dentro do coletivo, pois ficariam em um local com muitas pessoas, inibindo certas intimidades! O encontro dos namorados era facilitado pelo fato dos bancos poderem ser manipulados, de forma que um passageiro ficasse sentado de frente para o outro, como nas viagens de trem. Na parte traseira desse mesmo bonde, ainda existia um espaço reservado para os fumantes.
Poucos sabem que o Brasil foi um dos primeiros países do mundo a ter serviços de bondes, implantados na segunda metade do século XIX. Os mesmos funcionavam por tração animal, ou seja, eram puxados por burros, algo impensável nos dias de hoje, devido à sensibilidade das pessoas em relação ao bem-estar dos animais (nas fotos acima, bonde de tração animal no antigo Viaduto do Chá em 1894 e um exemplar do mesmo no Museu dos Transportes).
Há relatos de que tais veículos subiam ruas inclinadas, momento este em que os passageiros eram obrigados a descer do bonde até que a subida da ladeira fosse concluída (foto acima, bonde de tração animal em São Paulo, final do século XIX).
Para alívio dos burrinhos, no dia 7 de maio de 1900, o bonde elétrico chegou a São Paulo, marcando uma época importante na história do transporte coletivo. A cerimônia de inauguração foi concorrida, como mostra a matéria do jornal O Estado de S. Paulo e da multidão em torno do bonde (nas imagens acima temos parte da matéria, a multidão e ainda um bonde desse primeiro lote que andou em São Paulo). O evento contou com a presença do presidente da República, Campos Sales, do governador de São Paulo, Rodrigues Alves e do vice-governador, Domingos de Moraes. Claro, o então prefeito de São Paulo, Antonio Prado, não poderia deixar de estar presente na cerimonia.
Às 14:15 horas daquele dia, seis bondes partiram da garagem, situada na esquina da rua Barão de Limeira com a rua Duque de Caxias, carregando a comitiva de autoridades, em direção ao ponto final no Largo São Bento, percorrendo um itinerário que incluía as ruas General Osório, Santa Ifigênia e Libero Badaró (na foto acima, o bonde da linha inaugural Barra Funda - Largo São Bento, em janeiro de 1900, na garagem da Barão de Limeira). Na volta, foi oferecido um lunch (ah, o lanche, palavra inglesa que ainda não havia sido aportuguesada) para os convidados e proferidos os respectivos discursos.
São Paulo foi a quarta cidade brasileira a contar com o serviço de bondes elétricos. A época foi marcada pelos tempos áureos da economia cafeeira e as autoridades paulistas, de uma maneira ou de outra, tinham alguma ligação com essa atividade (na foto acima, inauguração da segunda linha para o bairro do Bom Retiro, no dia 12 de maio de 1900).
E o destino dado aos burrinhos que puxavam os bondes? Foram colocados a venda para serem aproveitados em outras atividades (como mostra o anúncio acima, publicado no jornal Diário Popular, de 24 de setembro de 1901).
Na capital paulista, o serviço de bonde elétrico foi dado em concessão à empresa privada canadense The São Paulo Tramway Light and Power Ltda. ou simplesmente Light, concessionária que também passou a cuidar do fornecimento de eletricidade (na foto acima, colocação dos trilhos dos bondes na rua São João, que depois foi alargada para virar avenida, em fevereiro de 1900). Por isso, até hoje, muitos ainda utilizam a expressão "Você é sócio da Light?", dirigida às pessoas que consomem energia elétrica em excesso. Na época em que a Light foi constituída, a Companhia Viação Paulista (CVP) era a empresa privilegiada para explorar o sistema de bondes com tração animal, que tinha entre os seus acionistas, integrantes da família Prado, uma das mais ricas daquele tempo e ligada ao café. A mesma já havia surgido a partir da fusão de outras empresas menores.
Com a chegada da Light seguiu-se uma batalha judicial e a empresa explorou várias brechas existentes no contrato de concessão da CVP, acabando por comprar as dívidas dessa companhia junto aos credores (possuidores de títulos e ações), como forma de inviabiliza-la e facilitar a aquisição da mesma na condição de massa falida (na foto acima, bonde elétrico trafega na rua São Bento em 1902). Contudo, foram muitas as críticas à forma de atuação da Light, como também à maneira "selvagem" como a empresa canadense adquiriu o acervo e a concessão da CVP em 1901, como destaca o estudioso Ayrton Camargo e Silva. Para se ter uma ideia, a Light teve que fundar um jornal próprio para rebater as investidas da imprensa contra a companhia.
Em maio de 1901, a Prefeitura enviou à Câmara Municipal um projeto de lei unificando os contratos de concessão da Light e da CVP (que ficou sob o controle da Light) por um período de quarenta anos, sendo definido também o preço das passagens e a direção das linhas (na foto acima, o edifício Alexandre Mackenzie, sede da Light, concluído em 1929 e que hoje é um shopping center).
A ideia era ligar o antigo Triângulo (formado pelas ruas São Bento, 15 de Novembro e Direita) com a área oeste em expansão, do outro lado do Vale do Anhangabaú, onde estava o novo e elegante bairro dos Campos Elíseos. Os bondes atravessavam o Viaduto do Chá, fazendo a interligação com as estações ferroviárias da Luz e São Paulo, mais tarde Júlio Prestes (no cartão postal acima, bonde cruza o antigo Viaduto do Chá em 1929). Ao mesmo tempo, a Prefeitura começava a legislar sobre trânsito, uma vez que, além dos bondes, alguns automóveis já circulavam pelas ruas centrais. O primeiro veículo automotivo a andar em São Paulo foi um Peugeot, importado da França em 1893 por Alberto Santos Dumont (ele mesmo, o "Pai da Aviação"). Dez anos depois, a Prefeitura fixou o limite de velocidade para todos os veículos (inclusive bondes): doze quilômetros por hora.
Outra área que logo iria necessitar de interligação por meio de bondes elétricos era a região leste, em função das fábricas instaladas nos bairros do Brás, Moóca, Belenzinho e Penha. No bairro do Brás, os trilhos começaram a ser instalados durante a implantação do bonde elétrico (nas fotos acima, obras de assentamento dos trilhos na avenida Rangel Pestana em 1900 e a linha em funcionamento em 1939).
Com a abertura da Avenida São João, entre os anos de 1912 e 1914, a cidade recebeu a primeira faixa exclusiva para os bondes, de extensão reduzida (na foto acima, oficina de montagem dos bondes da Light em 1917). Como se pode perceber, a expansão inicial da cidade de São Paulo era acompanhada pela abertura de novas linhas. Foi exatamente o que aconteceu quando a Companhia City (com participação inglesa) lançou os loteamentos do Jardim América, em 1915. A City arcou com as despesas de expansão das linhas, deu subsídios para a operação e o que faltasse seria pago com repasse de terrenos para a Light. Em função desse entendimento foram criadas quatro novas linhas de bondes, em um total de 15,2 quilômetros. Dessa forma, a City teve os seus terrenos valorizados.
No ano de 1914, São Paulo contava com 40 linhas de bondes, as quais praticamente atendiam os quatro cantos da cidade (na foto acima de 1902, assentamento dos trilhos para bondes na área da Estação da Luz).
Em 1915 foi regulamentado o passe escolar, com desconto de 50% no valor da passagem. Nessa mesma época surgiram também os bondes para operários, com o mesmo desconto (na foto acima de 1916, o veículo para operários em direção ao bairro da Penha, atravessando o cruzamento da avenida Rangel Pestana com a rua Piratininga).
Ao longo dos anos, a Light notou uma redução da participação dos bondes em suas receitas. O fornecimento de energia elétrica tornou-se o negócio mais importante da empresa (na foto acima, os bondes já começando a disputar espaço com os automóveis no Largo São Bento, no início da década de 1920). A grande queixa da Light era de que o valor da passagem era o mesmo da época em que os bondes elétricos começaram a operar, 200 réis, estabelecido em 1900. Além da questão dos custos, entre 1924 e 1925, a cidade de São Paulo passou por uma fase de grande instabilidade. Primeiro com a eclosão da Segunda Revolta Tenentista (promovida pelos militares) contra o presidente Arthur Bernardes, em 5 de julho de 1924, quando a cidade sofreu bombardeios aéreos que destruíram parte da rede elétrica e das linhas dos bondes.
Os bairros mais afetados foram o Belenzinho, o Brás, o Pari e a Moóca, onde o Cotonifício Crespi foi atingido (foto acima). Muitos moradores abandonaram a capital paulista. A cidade de Campinas (situada a 90 quilômetros de São Paulo) recebeu 50.000 refugiados, de uma população de aproximadamente 700.000 habitantes na capital!
O segundo fator a prejudicar as operações da Light foi a estiagem. No verão de 1925, os índices pluviométricos (referentes às chuvas) estiveram muito abaixo do normal. A produção de energia elétrica despencou e medidas de racionamento de eletricidade tiveram de ser adotadas (redução da iluminação pública, proibir luz nas vitrines das lojas, fechamento de bares e restaurantes após as 22 horas, entre outras). Uma nova usina hidrelétrica foi construída em tempo recorde em Pirapora e outra planejada para Cubatão. Claro, os bondes foram prejudicados, com a retirada de muitos veículos de circulação e maior restrição nos horários de pouco movimento.
Exatamente nesse momento surgiu um novo serviço de transporte para ocupar os espaços deixados pelos bondes: o ônibus (na foto acima, de meados da década de 1920, carros, ônibus e bonde trafegam na Praça do Patriarca). Em 1926 eram 233 veículos e em 1939 passaram a 704. Cada ônibus tinha um (ou mais) proprietários. Até então, a Light praticamente monopolizava o transporte coletivo na cidade, mas agora surge uma concorrência, que não foi tão benéfica para os passageiros, porque não havia controle por parte do poder público. Os sistemas não eram integrados, não existindo uma complementaridade entre bonde e ônibus. As autorizações dadas para a abertura das linhas eram feitas em trajetos onde já existiam os bondes.
Para enfrentar a briga, a própria Light começou a operar com os ônibus, oferecendo veículos mais confortáveis e luxuosos nas áreas nobres (acima, ônibus da Light). Apenas dez anos depois, em 1934, é que a Prefeitura de São Paulo fez uma regulamentação mais rigorosa no sistema de ônibus, agrupando as linhas conforme o itinerário e reduzindo o número de proprietários dos veículos.
Bonde, ônibus e automóvel andando na mesma faixa e em ruas estreitas no centro da cidade, numa época em que até mesmo uma boiada poderia aparecer no meio do caminho (como na foto acima, tirada pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss, na rua da Liberdade em 1937). Para desafogar a área central, a pedido do prefeito José Pires do Rio (que comandou a cidade entre 1926 e 1930) o engenheiro Francisco Prestes Maia lançou em 1930, o estudo para um Plano de Avenidas (esboçado com a ajuda do também engenheiro João Florence de Ulhôa Cintra), defendendo abertamente os ônibus em relação aos bondes, classificando estes como "veículos de segunda classe". Prestes Maia sugeriu um modelo que serviria de base ao transporte sobre pneus em uma ampla rede viária, a ser criada em função do esgotamento do centro antigo (área do velho Triângulo).
Tal estrutura viária (sobretudo avenidas) é que daria a direção a ser seguida pela cidade, começando por um centro "irradiador", como se este fosse um circulo em expansão, passando por vários "anéis" (ou radiais) até atingir os rios Tietê e Pinheiros, onde seriam construídas vias marginais (como no esquema colorido que aparece acima). Aqueles que conhecem São Paulo notarão uma certa familiaridade com esses termos. Ao propor o Plano de Avenidas, Prestes Maia rejeitou a possibilidade da construção de um metrô na área central, pois o que ele desejava era expandir essa área e não mante-la concentrada.
Por sua vez, a Light propôs em 1926, o Plano Integrado de Transportes (antes de Prestes Maia sistematizar o seu) a fim de resolver o problema da saturação do trânsito. A ideia era a de integrar o transporte de passageiros com linhas subterrâneas de circulação rápida na área central (um "quase-metrô"), para que as vias de superfície ficassem sem congestionamentos e ainda implantar vias exclusivas para bondes, que seriam conectadas a outras linhas mais distantes (no desenho acima, via subterrânea de bondes, paralela ao viaduto Santa Ifigênia, planejada para passar por baixo do Largo São Bento). O novo Viaduto do Chá teria dois "andares", um para automóveis e outro para bondes. A proposta incluía também a aquisição de uma nova frota de bondes e o aumento das linhas, além da revisão da tarifa. O Plano foi encaminhado à Câmara Municipal, mas infelizmente, o debate em torno desse novo contrato não se pautou por questões objetivas e sim nas críticas à Light, de que pretendia restaurar o seu monopólio, com o controle também dos ônibus, duplicar o valor das passagens e aumentar o seu poder. A proposta nem chegou a ser votada pelos vereadores e Prestes Maia levou adiante o seu Plano de Avenidas.
A partir desse momento, a Light desinteressou-se de qualquer novo investimento no sistema de bondes, pois a concessão terminava em 1941 e sem ter a sua proposta aprovada, a empresa não renovou o contrato (na foto acima, interior de um bonde depredado em manifestação estudantil em 1938. Reparem no espaço reservado à publicidade).
As transformações ocorridas no país com a Revolução de 1930 e a ascensão de Getúlio Vargas mudaram o cenário político, com o novo presidente nomeando interventores para os estados. Os prefeitos passaram a ser indicados por estes (na foto acima, movimento de bondes na Praça da Sé, em 1939). Em 1934, o interventor Armando de Salles Oliveira nomeou para prefeito, Fábio da Silva Prado (mais um Prado), o qual começou a colocar em prática o Plano de Avenidas (com a abertura da Rebouças, da 9 de Julho, início das obras da 23 de Maio e o novo Viaduto do Chá, sem a pista inferior para bondes). No dia 7 de julho de 1937, a Light comunicou oficialmente a Prefeitura que não tinha mais interesse na concessão dos serviços dos bondes. A administração da cidade voltava-se para o transporte sobre pneus, sobretudo quando o próprio autor do Plano de Avenidas, Prestes Maia, foi nomeado prefeito, para um mandato entre 1938 e 1945.
O maior prejudicado foi o passageiro, pois os investimentos em novas linhas de bondes pararam, bem como ocorreu o sucateamento da frota, além das dificuldades em obter peças de reposição em função da Segunda Guerra (na foto acima, bonde na praça do Correio em 1940).
Por sua vez, a Light não liberava dados para a Prefeitura, como número de passageiros transportados e informações técnicas, pois o seu contrato de concessão feito em 1900, não a obrigava a fazer isso (na imagem acima, de meados da década de 1930, bonde que servia ao bairro do Jabaquara lotado).
A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) apenas retardou a saída da Light, que foi obrigada a estender a sua concessão por tempo indefinido, por um decreto do Presidente Getúlio Vargas (nas fotos acima, charge de Belmonte critica a superlotação e bonde lotado trafegando pela Avenida Paulista em 1946).
Em 1939, Prestes Maia criou uma Comissão de Estudos de Transporte Coletivo e para melhorar o trânsito retirou os bondes da área central da cidade, como no novo Viaduto do Chá, inaugurado em 1938. A Comissão chegou a algumas conclusões, entre elas a de que o ônibus apresentava maiores vantagens em relação aos bondes, pois não embaraçava o trânsito (na foto acima, bondes e ônibus trafegando na mesma faixa, final da década de 1950). A permanência dos bondes dependeria muito de como a transferência da frota da Light (que, como vimos, estava deixando a gestão do sistema) seria feita. A Comissão também recomendou um plano para substituir, gradualmente, o bonde pelo trólebus ou ônibus elétrico. Para que o Plano de Avenidas de Prestes Maia tivesse continuidade, o ônibus e o trólebus eram considerados mais adequados, sem necessidade de estabelecer faixas exclusivas de trânsito rápido, se as novas avenidas fossem concluídas e os alargamentos das ruas executados.
Contudo, vários outros fatores não foram analisados, como o custo da energia elétrica em comparação ao óleo diesel, gastos com mão de obra nos dois sistemas e o comparativo entre o tempo de vida útil de um ônibus com o do bonde, que era muito maior (nas fotos acima, dois acidentes envolvendo bondes no início da década de 1940, nos bairros de Santana e Penha). Finalmente, tomando por base a analise feita em várias capitais da Europa e dos Estados Unidos, a Comissão recomendou a unificação de todo o sistema de transporte coletivo em uma unica companhia, uma empresa de economia mista, porém com 53,7% de suas ações sob controle da Prefeitura. Outras ações foram entregues à Light em troca do acervo dos bondes, bem como das instalações da empresa, rede elétrica e garagens. O mesmo foi feito com os proprietários dos ônibus, cuja frota passaria ao controle da nova empresa.
No dia 1 de julho de 1947, toda a operação de bondes e ônibus na capital paulista passou para a Companhia Municipal de Transportes Coletivos, a conhecida CMTC, ocasião em que 75 bondes elétricos fechados do tipo Centex (com porta de saída no centro do veículo ou Center Exit, daí a abreviatura Centex) foram adquiridos nos Estados Unidos (nas duas fotos acima, o uniforme do motorneiro no Museu dos Transportes e motorneiro junto ao cobrador em 1951, já como funcionários da CMTC).
Os bondes Centex eram de segunda mão, pois circularam por 10 anos em Nova Iorque, o que rendeu muitas críticas na imprensa da época, sendo chamados de "ferro-velho" (na foto acima, miniatura do bonde Centex da CMTC). Contudo, segundo Ayrton Camargo e Silva, esses bondes eram os mais modernos que já operaram desde o início do sistema. As tarifas foram reajustadas depois de 75 anos (a passagem do bonde era metade do valor cobrado nos ônibus). Protestos ocorreram em função desse reajuste, culminando em um quebra-quebra, em agosto de 1947, que levou à destituição do prefeito Cristiano Stockler.
Em 1949, a CMTC implantou o serviço de trólebus ou ônibus elétrico em São Paulo, com 30 veículos comprados nos Estados Unidos e na Inglaterra (na foto acima, miniatura de trólebus usado pela CMTC e o modelo importado dos Estados Unidos, ainda sem adaptação para andar em São Paulo). A única diferença entre o bonde e o trólebus é o fato deste último ter pneus e por isso não necessitar de trilhos no asfalto, sendo também movido a energia elétrica por meio de cabos mantidos em via aérea.
Apesar de tudo isso, os bondes ganharam um fôlego na década de 1950 (na foto acima, bonde Centex na Avenida Paulista em 1950). Pela primeira vez, desde 1927, investiu-se na manutenção com a compra de peças de reposição para reforma dos veículos e na construção de abrigos nos pontos (alguns dos quais existem até hoje). Muitos bondes que estavam parados e em processo de "canibalização" (perdendo peças para outros bondes) foram recuperados. Também foi proibido fumar dentro dos veículos (exceto no Gilda, como vimos anteriormente). Com o prefeito Jânio Quadros (cuja gestão foi de 1953 a 1955), dez novas linhas foram criadas e a rede, que possuía 453,3 quilômetros em 1943, passou para 782,1 quilômetros em 1956. Com isso, o número de passageiros transportados cresceu, revertendo a tendência de queda.
Em suas oficinas, a CMTC construiu bondes novos e começou a fechar os veículos abertos (embora alguns tenham permanecido em poucas linhas), uma forma de evitar os passageiros que andavam sem pagar tarifa ou aqueles "que pegavam o bonde andando", como dizia a velha expressão (na foto acima, bondes na avenida Celso Garcia em 1957).
Também com essa finalidade foram retirados os estribos para apoio dos pés, nas laterais dos veículos abertos (acima, passageiros nos estribos em foto de 1951). Por outro lado, os trólebus começavam a substituir algumas linhas de bondes, como na rua Augusta a partir de 1955.
Segundo Ayrton Camargo e Silva a modernização do transporte coletivo não podia se restringir apenas à aquisição de veículos modernos, no caso o trólebus. Faltou uma gestão adequada do sistema como um todo, como a implantação de vias rápidas e exclusivas para ônibus e bondes, os quais deveriam ser adaptados para transportar mais passageiros (na foto acima, bonde da linha para Santo Amaro em 1948, que em vários trechos utilizava um caminho exclusivo). Além disso, eram necessários semáforos programados e a integração entre os diferentes transportes. Ao mesmo tempo, a situação financeira da CMTC nunca foi boa e a cidade crescia além da capacidade de extensão de novas linhas. Com isso, a empresa abriu mão de seu monopólio (exclusividade) e passou a admitir a entrada do setor privado no transporte de passageiros, por meio da concessão de linhas de ônibus. A CMTC chegou a apresentar em 1958, um plano de reestruturação e racionalização de suas operações para reduzir custos e aumentar a frota, que não foi aceito pelo então prefeito Adhemar de Barros.
Eis que, em 1961, Prestes Maia venceu a eleição municipal (direta) e retornou à Prefeitura, iniciando aquilo que ficou conhecido como o "extermínio dos bondes", na designação de Ayrton Camargo e Silva (na foto acima, bonde na avenida Celso Garcia, início da década de 1960). Após o primeiro ano em sua nova gestão, o número de passageiros transportados caiu de 300,5 milhões para 106,6 milhões ao ano, principalmente com a desativação de várias linhas e a retirada dos bondes do centro da cidade. Coube ao seu sucessor, o brigadeiro Faria Lima, concluir o processo de extinção dos bondes elétricos.
A imprensa da época fez coro contra o sistema de bondes, acusando-o de prejudicar a fluidez do trânsito, algo que influenciou muito a opinião pública e, principalmente, os proprietários de automóveis (nas fotos acima, bonde em meio aos automóveis em 1966 e bonde Centex na avenida Liberdade em 1964). Em editorial publicado no dia 3 de junho de 1966, o jornal O Estado de S. Paulo caracterizou o sistema como sendo uma "anomalia que só traz prejuízos à população". Não se cogitou em nenhuma possibilidade de modernização ou de manutenção de algumas linhas com vias exclusivas, onde o bonde elétrico pudesse tornar-se uma alternativa ao ônibus e ainda como estrutura para um futuro metrô de superfície ou veículo leve sobre trilhos (VLT), nome pomposo e moderno para o velho bonde.
No dia 27 de março de 1968, exatamente às 19 horas e 25 minutos terminava a última viagem de bonde na cidade de São Paulo, sendo cumprido o percurso da Vila Mariana para o bairro de Santo Amaro, com ponto final no Largo 13 de Maio (nas duas imagens acima, o último bonde e na segunda, na janelinha do lado direito, aparecem nesta ordem o governador de São Paulo Abreu Sodré e o prefeito Faria Lima).
Como vimos anteriormente, a linha para Santo Amaro tinha trechos exclusivos nas avenidas Ibirapuera e Vereador José Diniz (exatamente como aparece na foto acima, de 1963), sem enfrentar a concorrência dos ônibus e dos automóveis. O prefeito Faria Lima deu continuidade ao antigo Plano de Avenidas de seu antecessor, com a conclusão da 23 de Maio, Radial Leste e vários trechos das Marginais Tietê e Pinheiros. Na visão desse administrador tratava-se de implantar uma "Nova São Paulo", mais humana, de acordo com a campanha publicitária apresentada à população (ver a nossa postagem Anúncio Antigo 61: prefeito Faria Lima).
Com o fim dos bondes desapareceu o vestígio de maior visibilidade da "São Paulo da garoa", dos tempos dos casarões exuberantes dos barões do café e dos industriais, dos cortiços nos bairros operários do Brás, Belenzinho, Moóca, Tatuapé e Penha. Uma desigualdade social não tão segregada, que convivia com a paisagem urbana em mutação, mas que deu lugar a uma expansão desordenada e à formação de imensas áreas periféricas, que recebeu a população migrante (principalmente os nordestinos), a qual, para sobreviver, teve que realizar deslocamentos enormes até o local de trabalho, pegando quatro ou mais conduções por dia. O metrô foi inaugurado em 1974, mas rasgou apenas uma parte da metrópole já consolidada e a unica linha então estabelecida não atendia a maioria da população. Como se pode perceber, a dramática questão da mobilidade urbana é antiga, porém cada vez mais dramática...
Para saber mais:
A maior parte dos dados e informações desta postagem foram baseados em um estudo do pesquisador Ayrton Camargo e Silva intitulado "Tudo é passageiro: expansão urbana, transporte público e o extermínio dos bondes em São Paulo" da editora Annablume, publicado em 2015 (imagem acima). Neste ótimo trabalho, o autor analisa o período dos bondes elétricos (entre 1900 e 1968), a implantação dos mesmos, a transição da Light para a CMTC e as circunstâncias que levaram ao abandono do sistema. Ao mesmo tempo, faz um recorte de um momento fundamental da história de São Paulo, quando a cidade tornou-se uma metrópole pensada para o transporte sobre pneus, privilegiando o automóvel e não o cidadão que anda a pé, algo absolutamente insustentável nestes tempos de preocupações com as mudanças climáticas e aquecimento global.
Para ver:
O site do professor norte-americano Allen Morrison, como já dissemos, constituiu um excelente recurso para conhecermos o sistema de transporte elétrico urbano (bondes e trólebus) em praticamente toda a América Latina, com um farto material fotográfico (na foto acima, de Earl Clark, bonde na Praça 8 de Setembro na Penha, em 1963). O mesmo fará parte de nossos Links Interessantes. O endereço é:
www.tramz.com
Crédito das imagens:
Matéria do Estadão sobre a inauguração dos bondes:
https://acervo.estadao.com.br/
Bonde de tração animal no final do século XIX, bonde lotado da linha do Jabaquara, bonde na avenida Celso Garcia em 1957 e bonde em meio aos automóveis em 1966:
https://fotos.estadao.com.br/galerias/acervo.bondes-em-sao-paulo,24331
Fotos feitas por Earl Clark (e dele próprio), todas as fotos coloridas de bondes em circulação, bonde 1301 em circulação, bonde disputando espaço com automóvel na avenida S. João, bonde Centex na Paulista em 1950 e bonde da linha Sto. Amaro em 1948:
www.tramz.com
Fotos dos bondes e das miniaturas no Museu dos Transportes: acervo do autor.
Cartão-postal com bonde cruzando o antigo Viaduto do Chá em 1929 e foto da avenida Rangel Pestana no Brás em 1939: Pinterest.
Bonde fechado prefixo 1301 na garagem, bonde de tração animal no Viaduto do Chá, bonde unidirecional da linha Pinheiros, multidão na inauguração do bonde elétrico em 1900, assentamento dos trilhos na Rangel Pestana em 1900, bonde para operários em 1916, bonde cruzando com boiada em 1937, bondes na Sé em 1940, bondes acidentados, motorista e motorneiro na frente do bonde, bonde com passageiros nos estribos, trólebus norte-americano, bonde na Celso Garcia na década de 1960 e fotos da despedida do bonde em 1968:
http://www.sptrans.com.br/museu-virtual
Largo S. Bento na década de 1920 e Praça do Patriarca em 1927: São Paulo: de vila a metrópole. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2012, páginas 33 e 38.
Bonde na Praça do Correio em 1940: Transportes: a história dos nossos caminhos. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2012, foto da capa.
Fotos do bonde 1301 em funcionamento, da garagem na Barão de Limeira, da inauguração da linha do Bom Retiro, do assentamento dos trilhos na rua São João, do Largo S. Bento em 1902, do prédio da Light, da montagem do bonde, do assentamento dos trilhos na área da Estação da Luz, do projeto de linha subterrânea, do interior do bonde, bonde e ônibus trafegando na mesma faixa e do último bonde em 1968: Empresa Metropolitana de Águas e Energia S.A.: Exposição 120 Anos da Light no site:
http://www.emae.com.br
Foto do Cotonifício Crespi na Moóca bombardeado em 1924: São Paulo: 450 anos. Instituto Moreira Salles, 204, página 128.
Anúncio da venda dos burros, ônibus da Light e charge do Belmonte: livro "Tudo é passageiro: expansão urbana, transporte público e o extermínio dos bondes em São Paulo". Editora Annablume, 2015, páginas 48, 78 e 138 respectivamente.
Esquema do Plano de Avenidas de Prestes Maia: Wikipédia.