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sábado, 29 de dezembro de 2012

Anúncio Antigo 26: edifício Joelma




A maior tragédia que a cidade de São Paulo conheceu: o incêndio do edifício Joelma. Era o dia 1 de fevereiro de 1974. Um curto-circuito em um aparelho de ar condicionado no décimo segundo andar deu início ao incêndio. O Joelma, construído em 1971, não chega a ser um arranha-céu, alcançando 25 andares e destes, 15 eram escritórios. Os demais andares eram formados por estacionamentos, que praticamente não foram afetados pelas chamas. 


O incêndio (imagem acima) teve início às 08:54 horas da manhã. Os bombeiros chegaram às 09:10 horas, praticamente quinze minutos depois. A demora foi atribuída às dificuldades no trânsito (imaginem se fosse hoje...).
A tragédia lembrava uma outra, ocorrida dois anos antes no edifício Andraus, na avenida São João, também no centro de São Paulo. Neste caso, pode-se fazer o resgate de parte das vítimas por meio de helicópteros, o que não foi possível no incêndio do Joelma. As condições da cobertura e o fogo impediam a descida dos aparelhos. Um helicóptero da Aeronaútica, que podia pairar no ar, foi deslocado para que os bombeiros pudessem alcançar a cobertura, o que ocorreu apenas uma hora e meia depois do início do incêndio. 


A configuração das salas, que eram ocupadas na época pelos escritórios do Banco Crefisul, contribuiram para a propagação rápida das chamas. Divisórias, móveis de madeira, carpetes, forros de fibra sintética, ou seja, materiais de fácil combustão. Quinze minutos após o início do desastre, as escadas comuns e os elevadores não podiam mais ser utilizados. Não existiam escadas de incêndio e portas de emergência que cortavam o fogo. A alternativa era fugir para a cobertura ou buscar abrigo nos banheiros e terraços (imagem acima). 
Em desespero, muitas vítimas se atiraram do prédio em chamas, num total de 20. Nenhuma sobreviveu. Em alguns pontos da cobertura, a temperatura alcançou os 100 graus celsius, provocando outras vítimas fatais. 
O saldo da tragédia: 187 mortos e 300 feridos. Aproximadamente 756 pessoas estavam no edifício quando o incêndio começou. 
O edifício Joelma permaneceu em reforma por quatro anos e foi reaberto em 1978. O Anúncio Antigo de hoje (imagem mais acima) refere-se à entrega e comercialização do mesmo para ser alugado após as obras. O Joelma continuou sendo um edifício comercial, com amplos salões para escritório distribuídos por 15 andares, além das garagens. E, claro, com um detalhe, o novo sistema de segurança "considerado modelar pelas autoridades", como afirma o anúncio. Era o diferencial que o novo empreendimento imobiliário tanto necessitava. 


Outra mudança ocorreu na designação do edifício. O nome Joelma, que se tornara sinônimo de tragédia, foi alterado para edifício Praça da Bandeira (na foto acima, o prédio hoje). 
Essa tragédia teve reflexos na segurança dos grandes edifícios. Com exceção de um outro incêndio ocorrido em 1981, na avenida Paulista, a cidade não conheceu mais tragédias desse porte em prédios ou arranha-céus. A fiscalização foi reforçada, a segurança foi revista e o Corpo de Bombeiros foi melhor aparelhado para enfrentar ocorrências como essa. 
Mas a cidade nunca esqueceu da tragédia do Joelma. Um filme rodado em 1979, "Joelma 23° andar", baseado em um livro psicografado por Chico Xavier, reavivou a história do incêndio. Em 1975, durante o lançamento no Brasil do filme catástrofe norte-americano, "Inferno na Torre", os distribuidores tiveram a ousadia de afirmar que a tragédia do Joelma foi uma das "inspirações" para o filme. 
Muitas lendas e histórias fantásticas acabaram envolvendo a tragédia do edifício Joelma. No local em que o prédio foi construído teria existido, no século XIX, um pelourinho onde escravos eram castigados. Os espíritos dos mesmos estariam assombrando o local, algo que muitos associaram ao incêndio. 
Além dessa lenda, um fato verídico ocorreu em 1948, também no mesmo local onde o Joelma foi construído. Um professor de Química assassinou a mãe e as irmãs dentro da casa onde moravam, jogando os corpos em um poço, o que deu nome ao caso de "crime do poço". Quando o caso foi descoberto pela polícia, o professor se matou. Ou seja, o local já teria um histórico associado a tragédias. 
Outra história tenebrosa, esta envolvendo o próprio incêndio, gira em torno de 13 pessoas que tentaram escapar pelo elevador e acabaram morrendo. Elas foram enterradas juntas e sem identificação, em um cemitério de São Paulo, dando origem ao "mistério das 13 almas", às quais os populares atribuem vários milagres. 
O Anúncio Antigo de hoje foi publicado no jornal "O Estado de S. Paulo" de 14.09.1978. 
Crédito das imagens: 
Joelma em chamas:http://emergencianews.wordpress.com.
Detalhe dos terraços: Revista  Veja, 26.12.1979, pag. 148.
Joelma hoje: www.flick.com 

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Mensagem de Boas Festas


Houve uma época...



em que o Brasil tinha campeões correndo na Fórmula 1 (na foto acima, Emerson Fittipaldi, campeão mundial em 1972 e 1974 e vice em 1973 e 1975);



em que era recomendado às pessoas levar vantagem em tudo (na imagem acima, o ex-jogador Gérson no famoso comercial dos cigarros Vila Rica, de 1976);



em que o Brasil teve um presidente casado com a dona Argentina (na foto, Argentina Vianna, esposa de um dos presidentes da Ditadura Militar, Marechal Castelo Branco, em foto de 1922);


em que a Rua 25 de Março era mais tranquila para fazer compras (acima, em uma foto antiga, a rua na primeira década do século XX); 


em que os Três Patetas eram quatro (na foto acima, Ted Healy e seus Patetas, em 1929);


em que uma apresentadora de programas infantis da TV Globo deixou a carreira artística para ingressar no magistério (na foto acima, Márcia Cardeal, no centro, apresentadora da Sessão Zás Trás na TV Globo, na segunda metade da década de 1960);



em que um programa de humor tinha graça (na imagem acima, Manoel de Nóbrega e Borges de Barros no humorístico A praça da Alegria na TV Record, na década de 1960).

É por essas e por outras que eu continuo gostando da História. 
Desejo aos amigos e leitores um ótimo final de ano e boas festas...

                                                                   blog História Mundi 


Crédito das Imagens: 
Anúncio dos cigarros Vila Rica: professorarturreis.blogspot.com.br
Programa Zás Trás: grandesnomesradioetv.multiplug.com
Fotos dos Três Patetas e do humorístico A Praça da Alegria da Revista TV Séries.
Foto de dona Argentina Vianna, da coleção Nosso Século, editora Abril, 1980. 
Imagem da rua 25 de Março antiga foi extraida do livro Memória da Cidade de São Paulo de Ernani Silva Bruno, publicado pela Prefeitura Municipal de São Paulo e Secretaria Municipal de Cultura em 1981. 

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Lado a Lado com a História: A Revolta da Chibata parte II





"Vale é saber que as carnes de um servidor da pátria só serão cortadas pelas armas dos inimigos, mas nunca pela chibata de seus irmãos. A chibata avilta."
(João Cândido, entrevista ao Correio da Manhã durante a rebelião de 1910).

João Cândido foi chamado pela imprensa da época, que tanto criticou o movimento dos marinheiros, de "Almirante Negro". Nestes dias, em que a figura de Zumbi é tão celebrada nas comemorações do dia da consciência negra, que tal lembrarmos de alguém cuja história é bem mais documentada que a do rei de Palmares. Em nossa postagem anterior, pudemos verificar o resultado concreto da revolta dos marinheiros de novembro de 1910: o fim do castigo da chibata na Marinha do Brasil. O que falta ser contado é o preço que foi pago por essa conquista.
Apesar da anistia concedida pelo governo (na imagem acima, João Cândido lê o decreto de Anistia, ao lado do marinheiro Antônio Ferreira de Andrade, seu auxiliar), no dia seguinte, após o fim da rebelião, o presidente da República, Marechal Hermes da Fonseca, assinou um outro decreto permitindo a exclusão da Marinha de todos os seus quadros considerados indesejáveis. Segundo dados do historiador Marco Morel, foram 1.216 expulsões ou o equivalente a metade dos participantes da revolta. Prisões, degredo e fuzilamentos ocorreram com respaldo do Governo da época.



Em 09.12.1910, uma outra revolta eclodiu no Batalhão Naval localizado na ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, envolvendo desta vez os fuzileiros navais. Tropas do Exército foram chamadas para pôr fim à essa nova rebelião, que deixou um saldo de 24 rebeldes mortos. Importante registrar que os marinheiros da Revolta da Chibata (na foto acima, os marinheiros do encouraçado São Paulo, após o fim da revolta) não tiveram nenhuma participação nesse novo levante, até pelo contrário, retiraram os barcos da zona de conflito para que ficassem a salvo. Contudo, o Governo usou essa segunda revolta para uma repressão violenta contra João Cândido e seus companheiros. 



Na véspera do Natal de 1910, uma onda de prisões foi desencadeada, incluindo João Cândido, Francisco Dias Martins e outros, os quais foram detidos acusados de liderar a nova rebelião (na imagem acima, marinheiros são levados presos, escoltados por soldados do Exército, pelas ruas do Rio de Janeiro). Cândido sempre acreditou que a rebelião no Batalhão Naval foi instigada pelas próprias autoridades, como forma de burlar a anistia e incriminar os marinheiros na nova revolta.
Em 24.12.1910, João Cândido e os demais presos foram levados para duas celas solitárias na ilha das Cobras. Apesar de serem celas individuais, Cândido e mais 17 presos foram jogados em uma única solitária. Em outra cela minúscula foram colocados mais 13 prisioneiros. No total 31 presos em celas que deveriam acolher apenas 2. O comandante do Batalhão Naval, capitão Marques da Rocha, levou as chaves embora. Era Noite de Natal. Gritos vindos da prisão foram ouvidos do lado de fora e o calor era insuportável. Dentro das celas praticamente não havia ar para respirar.
No dia seguinte, 25 de dezembro, o carcereiro jogou cal sobre os presos, para tirar o mal cheiro de urina e das fezes. O pó do cal terminou por asfixiar os prisioneiros que já agonizavam. No dia 26, a cela foi aberta e perguntaram se João Cândido ainda vivia. No dia seguinte, o capitão Marques da Rocha mandou retirar os detidos, que estavam desde o dia 24 sem água e sem comida. Na cela de João Cândido, apenas ele e outro marinheiro sobreviveram.
Além desse acontecimento trágico, vários outros marinheiros, que tiveram participação ativa na Revolta da Chibata, foram embarcados na véspera do Natal de 1910 para a Amazônia, em um navio chamado "Satélite". Pelos dados de Marco Morel, 105 marinheiros, juntamente com marginais e prisioneiros comuns foram colocados no barco. Vários marinheiros foram sumariamente fuzilados durante a viagem e os que conseguiram chegar no interior da Amazônia foram encaminhados para as obras da estrada de ferro Madeira-Mamoré ou para os seringais do Acre, onde poucos sobreviviam.
Por outro lado, a notícia do ocorrido na ilha das Cobras vazou e até instituições internacionais protestaram contra os maus tratos dados aos presos. Um Conselho de Guerra chegou a investigar o caso e o capitão Marques da Rocha foi absolvido (depois, continuou a seguir carreira na Marinha e alcançou o almirantado).
Profundamente abalado, João Cândido foi dado como doente mental e encaminhado a uma instituição psiquiátrica. Apesar de todo o sofrimento e contando com a ajuda dos médicos, Cândido recuperou-se e ainda recebeu um atestado de que não apresentava "nenhuma perturbação". Ao sair do hospital, foi encaminhado a uma prisão, onde permaneceu 18 meses até o julgamento.



João Cândido, Francisco Dias Martins, Manoel Gregório do Nascimento, entre outros, foram julgados não pela Revolta da Chibata (devido à anistia), mas pela rebelião no Batalhão Naval, da qual não tiveram participação. Membros da sociedade civil se mobilizaram em uma campanha, para conseguir bons advogados para a defesa. Os marinheiros foram absolvidos, por unanimidade, no final do ano de 1912. Contudo, João Cândido não teve muito tempo para comemorar. No mesmo dia em que foi solto (na imagem acima, Cândido pouco antes de ser libertado), soube que fora excluído dos quadros da Marinha.



Dessa época em diante, Cândido tentou trabalhar na Marinha Mercante, mas sem sucesso. Sob pressão dos militares, ele não conseguia emprego nos navios particulares (chegou a ter seus documentos apreendidos). Restou a João Cândido trabalhar como pescador (imagem acima, Cândido exibe uma cesta de peixes), atividade que garantiu o seu sustento até a sua morte. 
Cândido conheceu a extrema pobreza e passou por desgraças pessoais. Sua segunda esposa, Maria Dolores Vidal, cometeu suicídio ateando fogo ao corpo em 1928. A filha mais velha do casal repetiu o gesto dez anos depois. Nesses episódios trágicos, o nome de João Cândido ressurgiu na imprensa. 
Em sua trajetória política, Cândido aderiu ao Movimento Integralista Brasileiro (de inspiração fascista) comandado por Plínio Salgado, na metade da década de 1930. O militarismo presente na proposta integralista, talvez tenha atraído o velho marinheiro, habituado à disciplina militar. Com a ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945), a simples menção à Revolta dos Marinheiros era proibida, e Cândido ficou esquecido.
Somente em 1958, o jornalista Edmar Morel publicou um livro narrando a história dos marinheiros e batizando o levante de Revolta da Chibata. O êxito e o interesse despertado a partir da publicação trouxe João Cândido de volta ao cenário político. O país vivia os anos de liberdade democrática, imediatamente anteriores ao golpe militar de 1964. Cândido chegou a receber homenagens, concedeu entrevistas e participou de feiras literárias. Até viajou de avião.



No lançamento da segunda edição do livro, em 1963, Edmar Morel e João Cândido participaram do IV Festival do Escritor no Rio de Janeiro, uma espécie de Bienal do Livro da época. Nesse encontro, Cândido foi apresentado a personalidades como Jorge Amado, Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, entre outros. Ao final da festa, não havia mais transporte para a Baixada Fluminense, onde o velho marinheiro vivia e, por isso, teria que se hospedar em um hotel. Em cada estabelecimento que se apresentava, os recepcionistas olhavam para a figura simples de João Cândido e diziam: não há vaga. Após 12 tentativas, Edmar Morel conseguiu hospedá-lo em um hotel no bairro boêmio da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro.
Em março de 1964, os marujos voltaram a desafiar o comando da Marinha, iniciando um movimento grevista sob o comando do suspeito "cabo" Anselmo (seria um agente provocador infiltrado). João Cândido foi chamado para prestigiar o movimento. A greve dos marujos foi um dos pretextos para o golpe militar de 1964. 
Após tomarem o poder, os militares lançaram suspeitas sobre o trabalho do jornalista Edmar Morel e o mesmo teve os seus direitos políticos cassados. João Cândido, já aposentado e doente (na foto acima, tirada pouco antes de sua morte), conseguiu construir a sua casa em São João do Meriti, periferia do Rio, para onde se retirou levando uma vida simples ao lado de sua última esposa e filhos. No final da vida, tornou-se evangélico, mas ainda lia e acompanhava o noticiário político.


Com a implantação da Ditadura Militar (1964-1985) tornou-se perigoso mencionar a Revolta da Chibata. Por isso, em 1968, um ano antes de sua morte, João Cândido deu uma entrevista clandestina gravada, para o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. No início de dezembro de 1969 foi internado para tratar de problemas pulmonares. Um câncer em estado avançado foi diagnosticado e em 06.12.1969, aos 89 anos, João Cândido, o "Almirante Negro", morreu. Apesar da censura, a imprensa noticiou a sua morte, mas com uma certa frieza (na imagem acima, a edição da Revista Veja, de 17.12.1969, noticiando a morte de João Cândido).


Poucas pessoas compareceram ao seu enterro (na imagem acima, o filho caçula de João Cândido, Adalberto, na frente, ajuda a carregar o caixão com o corpo de seu pai). O tema Revolta da Chibata não era tratado de forma aberta em 1969, o primeiro ano em que o famigerado AI-5 (Ato Institucional que endureceu a Ditadura Militar) estava em vigor. Policiais vestidos à paisana fotografaram todos os que compareceram ao enterro. Apenas familiares e alguns membros da Associação Brasileira de Imprensa  (ABI) estavam presentes naquele dia chuvoso no Rio de Janeiro. Claro, Edmar Morel era um deles e pronunciou uma frase à beira do túmulo: "Adeus, João Cândido, você dignificou a espécie humana."
Em 1975, João Bosco e Aldir Blanc compuseram a canção que celebrou a figura de João Cândido, "Mestre-Sala dos Mares", eternizada nas vozes do próprio João Bosco e depois por Elis Regina. Sim, a letra original e o título tiveram que ser adaptados pelos compositores, em função da censura da Ditadura Militar, que ainda estava em ação em meados da década de 1970. Os censores reclamaram do excesso de referências ao termo "negro" e com o título original, "Almirante Negro", que depois foi alterado. A Marinha não iria aceitar essa afronta, dizia-se na época. Com algumas alterações, a música foi gravada e tornou-se um grande sucesso, perpetuando em definitivo a figura de João Cândido. Abaixo, o trecho inicial:

Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Ha figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como navegante negro
Tinha a dignidade de um mestre-sala
E ao acenar pelo mar na alegria das regatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas 
Jovens polacas e por batalhões de mulatas...

Para saber mais: 
Morel, Marco. João Cândido: A luta pelos Direitos Humanos. Fundação Banco do Brasil, Petrobrás, Associação Cultural do Arquivo Nacional e Governo Federal. O autor estudou e pesquisou a fundo o movimento dos marinheiros. O livro está disponível em:
http://www.projetomemoria.art.br/JoaoCandido/downloads/down_livro_joao_candido.pdf
Crédito das Imagens: João Cândido lendo o decreto de anistia: Coleção Nosso Século, Ed. Abril, 1980. As demais fotos são do próprio livro de Marco Morel. 

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Anúncio Antigo 25: o seriado Combate




Muitos, como eu, tiveram o seu primeiro contato com a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) através dos filmes e seriados de televisão. Evidentemente, em nossa infância e juventude, não tínhamos o costume de fazer uma pergunta fundamental: quem produziu o filme? Sim, uma vez que no  caso de uma película que retrata uma guerra, existem pelo menos dois pontos de vista, e claro que cada lado vê o outro como inimigo. Na Segunda Guerra, os Aliados (EUA, Inglaterra, antiga URSS) combatiam o Eixo (Alemanha, Itália e Japão). O mais grave é que o bloco Aliado não era homogêneo, pois dentro dele existia uma grande potência capitalista e outra comunista. Bom, enquanto a Segunda Guerra durou essas diferenças ficaram em segundo plano, mas depois...



Pois bem, em nosso Anúncio Antigo de hoje vamos lembrar um desses seriados, talvez o mais conhecido ligado ao tema da Segunda Guerra: Combate (Combat). Nos Estados Unidos, a série foi exibida pela rede ABC e produzida entre os anos de 1962 a 1967. A história girava em torno das aventuras de um pelotão de soldados americanos em território francês, logo após o famoso desembarque das tropas aliadas (norte-americanas e inglesas, principalmente) nas praias da Normandia (norte da França), no dia 06.06.1944, o conhecido "dia D". O seriado foi estrelado por Rick Jason (foto acima), no papel do tenente Hanley e por Vic Morrow, interpretando o sargento Saunders.


A história (na imagem acima, a foto usada na propaganda, com o ator convidado, Sal Mineo e o astro da série, Vic Morrow) era uma simples transposição para a guerra, do modelo de mocinho e bandido dos filmes de western. Claro, no caso em questão, os bandidos eram os alemães e os mocinhos os americanos. Foi dessa forma que muitos espectadores foram apresentados à Segunda Guerra Mundial e devem ter imaginado que os americanos ganharam a guerra sozinhos. Os soviéticos sequer eram mencionados. Devemos lembrar que o Exército Vermelho lutou na frente oriental, do mês de junho de 1941 até 1945, para expulsarem os alemães de seu território e lançarem um contra-ataque que só terminou com a tomada de Berlim ao final do conflito. Somente após o "dia D" é que foi aberta de forma efetiva, uma nova frente de combate aos alemães a partir da França. Mas em junho de 1944, a guerra já pendia a favor dos Aliados e estes já desenhavam o mapa da Europa após o conflito.
O enredo de Combate era bem semelhante ao filme "O Resgate do Soldado Ryan" (1998), que muitos até chegaram a dizer que teria se inspirado nesse seriado. Uma outra  produção relativamente recente, "Band of Brothers", é também ambientada após o desembarque do "dia D".
Combate era exibido à noite, na TV Record em São Paulo e também na TV Rio. Para os que viveram a infância nessa época, é o caso deste blogueiro, não faltavam nos álbuns de figurinhas os "heróis" do seriado. Eram "figurinhas difíceis", disputadas a tapa pelos colecionadores. Alguns episódios retratavam dramas interessantes, como o soldado enfermeiro que socorria um inimigo, um combatente acovardado vendo-se diante de uma batalha, franceses que combatiam na resistência, os soldados americanos sempre dispostos a ajudar as mulheres francesas indefesas, entre outros. Mas, invariavelmente, os alemães eram vistos como uma "massa" inimiga e que deveria ser derrotada, a exemplo dos índios nos filmes de faroeste.
A série também foi um desfile de estrelas ou futuras estrelas, que atuaram como atores convidados em cada episódio. A lista é grande: Frank Gorshin (que viveu o Coringa na série de tv Batman, da mesma época), Lee Marvin, James Coburn, Telly Savallas (futuro Kojak), Charles Bronson (ainda não tão famoso), Richard Basehart (o almirante Nelson, de Viagem ao Fundo do Mar), Eddie Albert, James Caan (que viveu Santino, em o Poderoso Chefão), Jeffrey Hunter, Leonard Nimoy (alguém lembra dele...), Frankie Avalon (dos filmes de praia da década de 1960), Sal Mineo (de Juventude Transviada), Beau Bridges (irmão do Jeff, que recentemente ganhou um Oscar), John Cassavetes (grande diretor), Robert Duvall (bem em início de carreira), Ricardo Montalban, Roddy MacDowell, James Whitmore, Dennis Hopper, Dean Stockwell...ufa... Não me recordo de um seriado de televisão que tenha reunido tantos astros de cinema. Entre os diretores, um destaque para Robert Altman, que dirigiu 10 episódios do seriado e para o próprio Vic Morrow, que dirigiu 7.



A vida real não foi tão generosa para os atores principais como nas batalhas travadas em Combate. Em 1982, o ator Vic Morrow (na foto acima), que participava das filmagens de "No Limite da Realidade", uma adaptação para o cinema do famoso seriado "Além da Imaginação" e que era produzido por Steven Spielberg, sofreu um acidente nas gravações, quando um helicóptero explodiu e a hélice do mesmo o decapitou, matando também mais duas crianças. Spielberg sofreu um longo processo nos tribunais devido a essa tragédia. O vídeo do acidente pode ser visto no Youtube. Curiosamente, esta cena reproduziria um momento de uma guerra, só que no Vietnã. Já o ator Rick Jason cometeu suicídio com um tiro na cabeça, no ano 2000, apenas uma semana depois de ter se reunido com os seus antigos colegas atores do seriado Combate.
O Anúncio Antigo de hoje foi publicado no jornal "O Estado de S. Paulo" de 01.04.1971. 
Crédito das imagens de Rick Jason e Vic Morrow: 
kaboodle.com e sitcomsonline.com, respectivamente.
A foto de Sal Mineo e Vic Morrow usada para a feitura do anúncio é da Wikipédia. 

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Lado a Lado com a História: A Revolta da Chibata parte I





Há muito tempo uma novela não fazia referências a tantos fatos importantes da nossa História, como a atual "Lado a Lado" da TV Globo. Nesta postagem, destacamos a lembrança de um movimento, que embora ocorrido há mais de um século, ainda provoca controvérsias por parte dos grupos e instituições envolvidos: a Revolta da Chibata.
A comunidade de afrodescendentes, o Governo Brasileiro e a Marinha do Brasil são os diretamente ligados ao episódio, que claro, diz respeito não apenas a um processo de luta contra os resquícios herdados da escravidão, mas também pela conquista efetiva da cidadania. Em 1910, os ideais republicanos não tinham se concretizado para uma grande parte da sociedade brasileira.
O fator que desencadeou a rebelião dizia respeito ao tratamento dado aos antigos marujos da Marinha de Guerra pela alta oficialidade, sobretudo aos negros, os quais, como punição após cometerem alguma falta ou indisciplina, eram castigados com a chibata (chicotada nas costas). O castigo era previsto nas normas penais, mas muitos oficiais se excediam na aplicação do mesmo. Claro que esse tipo de punição, embora presente em outros lugares do mundo na época, adquiriu aqui uma conotação associada ao tempo da escravidão. A lei Áurea parecia não ser observada na Marinha do Brasil, vinte e dois anos depois de assinada pela princesa Isabel. 
Por outro lado, vários historiadores destacaram que os problemas envolvendo os marinheiros não se limitavam à questão da chibata ou ao bolo (uma espécie de palmatória). Os excessos de trabalho, a péssima alimentação e a própria forma como era feito o recrutamento, muitas vezes trazendo indivíduos das origens mais variadas, inclusive marginais, acabava gerando problemas graves entre os próprios marujos. Os marinheiros queriam mudar essa situação e também afastar os oficiais que cometiam as arbitrariedades.
A rebelião foi bem planejada. Em setembro de 1910, dois meses antes da revolta, uma carta assinada por um personagem misterioso conhecido como "Mão Negra" e endereçada ao comandante do navio que levava uma delegação brasileira ao Chile, alertou sobre a violência praticada por alguns oficiais contra os marinheiros. A carta terminava com um alerta: "Ninguém é escravo de oficiais e chega de chibata. Cuidado."
Até hoje existem dúvidas sobre a verdadeira autoria do documento. Alguns estudiosos apontam o marinheiro de primeira classe, Francisco Dias Martins (1888-1945), como possível autor desta carta e de outro documento enviado às autoridades, já durante a revolta. Era tido como um dos marinheiros mais bem preparados e com melhor formação intelectual.




Contudo, um outro marinheiro tornou-se, nas palavras do historiador Marco Morel, a "expressão e rosto" da rebelião: João Cândido Felisberto (imagem acima). Nascido no Rio Grande do Sul no ano de 1880, era filho de escravos. Mais tarde, adulto, deixou o Estado natal e rumou para o Rio de Janeiro, onde ingressou na Marinha de Guerra. Marujo competente e experiente, viajou muito e conheceu a Europa, África e América do Norte, a bordo dos navios. Cândido foi o responsável por trazer o novo encouraçado Minas Gerais do estaleiro de Newcastle, na Inglaterra, para o Brasil.
Antes da revolta, João Cândido havia estado com o ainda presidente da República, Nilo Peçanha e com o ministro da Marinha, almirante Alexandrino de Alencar, seu antigo protetor, para apresentar as reclamações dos marinheiros com relação aos castigos físicos. As duas autoridades não se manifestaram a respeito da demanda, o que fez João Cândido e os demais articuladores do movimento perceberem que as negociações pacíficas não trariam resultados.
O estopim da rebelião foi a sessão de castigos aplicadas no marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes, ocorrida no dia 21.11.1910. Estavam previstas 25 chibatadas, mas ao final foram 250. Muito ferido, Marcelino foi colocado com o corpo ensanguentado dentro de seu uniforme e encaminhado a enfermaria. Foi a última vez que o castigo das chibatadas foi aplicado na Marinha e os acontecimentos a seguir explicam o motivo.




Na manhã do dia seguinte, 22.11.1990, vários tiros de canhões assustaram a população da capital, a cidade do Rio de Janeiro. Duas crianças morreram em consequência dos disparos.
Os próprios marinheiros assumiram o comando das embarcações de guerra mais importantes da Marinha, os encouraçados Minas Gerais (na imagem acima, o tombadilho da embarcação), São Paulo e Bahia, que acabavam de ser adquiridos pelo Brasil e ainda o cruzador Deodoro. A bordo do Minas Gerais, João Cândido apareceu como o líder militar, comandando e coordenando o movimento das demais embarcações na baia de Guanabara.
As lutas dentro dos navios, culminaram na morte de cinco oficiais e dois marinheiros. Entre os oficiais mortos, estava o capitão João Batista das Neves, conhecido por aplicar com extremo rigor o castigo da chibata e que logo foi considerado mártir pelos jornais da época, que não simpatizavam com o movimento.


A forma como as embarcações foram tomadas e conduzidas pelos rebeldes, mostrou o grau de organização e distribuição das funções entre os marinheiros. Francisco Dias Martins assumiu o comando do encouraçado Bahia. Na imagem acima, Martins é visto na parte inferior, entre os rebeldes, com a faixa no pescoço, onde estão os dizeres: Ordem e Liberdade.



A palavra liberdade foi usada muitas vezes na revolta, como no manifesto enviado ao ministro da Marinha (na foto acima, tirada no convés do encouraçado São Paulo, um dos marinheiros segura a faixa com os dizeres "Viva a liberdade"). Nesse documento, os marinheiros pediam que a Marinha fosse "uma Armada de cidadãos e não uma fazenda de escravos que só têm dos seus senhores o direito de serem chicoteados". Da mesma forma, o lema "Ordem e Liberdade" poderia ser interpretado como aquilo que os mesmos desejavam da República e inspirada nos ideais positivistas expressos na bandeira do Brasil: "Ordem e Progresso".




Outros dois marinheiros tiveram atuação de destaque, André Avelino e Manoel Gregório do Nascimento (respectivamente, primeiro e segundo na imagem acima), os quais participaram do comando rebelde no encouraçado São Paulo (imagem abaixo). O segredo de que a revolta estava sendo preparada foi bem guardado e a reação das autoridades mostraram que as mesmas não tinham nenhuma informação sobre a rebelião.





Com os disparos dos canhões a partir das embarcações rebeldes, o pânico se instalou na cidade do Rio de Janeiro. Muitos fugiram dos tiros e da ameaça sobre a capital, sem saberem exatamente do que se tratava (na imagem acima, o flagrante da reação diante dos disparos dos navios rebeldes).
João Cândido era chamado, pela própria imprensa, de "almirante negro".
Uma carta, cuidadosamente redigida e encaminhada às autoridades, apresentava as principais reivindicações e era assinada simplesmente com a palavra "marinheiros" (na imagem abaixo, a última folha manuscrita do documento). Na mesma foi estabelecido um prazo de 12 horas para uma "resposta satisfatória", caso contrário, a capital seria bombardeada pelos vasos de guerra comandados pelos rebeldes.



O governo foi pego de surpresa. Há apenas uma semana, o presidente Hermes da Fonseca (que era militar) tinha tomado posse. O Congresso também participou das negociações por meio do deputado José Carlos de Carvalho, que também era capitão da Marinha. Ao se encontrar com os marinheiros rebeldes, Carvalho teria perguntado quem era o líder e ouviu como resposta: todos!



Deputados e senadores aprovaram a extinção da chibata e uma anistia a todos os envolvidos na revolta. O decreto foi publicado às pressas no Diário Oficial e imediatamente encaminhado ao encouraçado Minas Gerais, onde se encontrava aquele reconhecido como líder da rebelião, João Cândido (na imagem acima, o próprio Cândido recebe o oficial da Marinha com o decreto impresso de anistia aos rebeldes).
A decisão do governo e do Congresso encerrou a rebelião dos marinheiros no dia 27.11.1910, cinco dias após o seu início. Imediatamente as bandeiras vermelhas que simbolizavam a revolta foram baixadas e as embarcações devolvidas aos comandos da Marinha.


A imagem acima mostra o otimismo de João Cândido com o desfecho até então favorável aos marinheiros (Cândido é o terceiro, da esquerda para a direita, com o lenço no pescoço). Sim, a chibata acabou definitivamente. Mas as críticas ao governo do marechal Hermes eram enormes na imprensa, por não ter reagido e colocado a capital sob risco de um bombardeio.
A revista "A Illustração Brazileira", das quais algumas imagens foram aproveitadas nesta postagem, na edição do dia 01.12.1910, afirmou que castigos bárbaros, excesso de trabalho ou má qualidade na alimentação existiam em todas as marinhas, como também movimentos exigindo melhorias. Mas, no caso desta revolta, além da recusa ao serviço, os marinheiros promoveram ameaça de guerra e agressão aos oficiais, observou a matéria. A crítica aos rebeldes ainda destacou que os mesmos não ficaram satisfeitos com a palavra do governo e que exigiram a publicação da lei de anistia, ou seja, quiseram que a Câmara de Deputados, o Senado e a Presidência da República se curvassem diante dos sublevados.
Os acontecimentos ocorridos após o fim da Revolta da Chibata mostraram que se os marinheiros tinham alguma desconfiança na palavra do governo, eles estavam certos. Mesmo com a lei da anistia e o fim da chibata, a punição veio. O preço pago por essa conquista foi muito alto.
João Cândido e seus companheiros talvez não imaginassem o castigo e o sofrimento que os aguardavam...

Para saber mais:
Morel, Marco. João Cândido: A luta pelos Direitos Humanos. Fundação Banco do Brasil, Petrobrás, Associação Cultural do Arquivo Nacional e Governo Federal. O autor estudou e pesquisou a fundo o movimento dos marinheiros. O livro está disponível em:
http://www.projetomemoria.art.br/JoaoCandido/downloads/down_livro_joao_candido.pdf
Crédito das Imagens: Revista "A Illustração Brazileira", de 01.12.1910, pags. 176, 177 e 178 e também do livro de Marco Morel.

domingo, 11 de novembro de 2012

Imagens Históricas 12: Abraham Lincoln





O presidente que libertou os escravos nos Estados Unidos em sua primeira foto. Sim, com a vitória do Norte na Guerra Civil Norte-Americana ou Guerra de Secessão (1861-1865), a escravidão foi abolida. Mas, Abraham Lincoln (1809-1865)  utilizou o fim do trabalho escravo como uma arma contra os estados confederados (rebeldes) do Sul, ainda durante a guerra. O Sul dependia dessa mão-de-obra para a produção de algodão em suas grandes fazendas. Foi uma forma de enfraquecer a economia sulista. Essa região ou "Dixieland", como é popularmente chamada na América, apresentava as características típicas das antigas colonias de exploração, com uma economia agrícola voltada para o mercado externo e que tinha a sua base nas grandes propriedades.
Na verdade, uma das soluções defendidas pelo governo norte-americano era o da compra de territórios na África Ocidental para levar os negros, que já estavam libertos, de volta ao seu continente de origem. O presidente James Monroe fez isso em 1819. Aproximadamente 12 mil negros foram enviados para a África até a época da Guerra Civil, pela Sociedade Americana de Colonização, fundada por brancos na Virgínia. Considerava-se que os negros estariam bem em qualquer lugar da África, independentemente de suas origens étnicas. Eis aí, a origem da República da Libéria, cuja capital, Monróvia, é uma referência ao presidente que empreendeu o plano. Abraham Lincoln mostrou-se, também, simpático a essa ideia, chegando a propor a ampliação dessa colonização negra para a América Central e o Caribe.
Vale também lembrar, que a Guerra Civil não seu deu apenas em função do problema do trabalho escravo, onde a ideia inicial era a de manter o equilíbrio entre os Estados escravistas e os não-escravistas, principalmente no Oeste recém-conquistado. As divergências que dividiram os americanos incluiam a questão de uma moeda mais forte ou não (a moeda desvalorizada interessava ao Sul, que vendia o algodão em libras esterlinas), o projeto de um Banco Nacional (que também não era apoiado pelo Sul) e a política protecionista que os industriais do Norte tanto desejavam, e que não era compartilhada pelos sulistas, os quais importavam produtos manufaturados a preços mais baixos, principalmente da Inglaterra. Em resumo, a Guerra Civil Americana foi uma guerra entre os interesses industriais e a  agricultura tradicional.
A eleição de Abraham Lincoln representava o momento em que essas divergências não puderam mais ser conciliadas. Primeiro, por ter sido eleito por um partido que, à época, mostrava-se progressista e defensor dos interesses ligados à emergente burguesia do Norte, o Partido Republicano. Lincoln foi o seu primeiro presidente. Segundo, por ser considerado o exemplo do "self-made man" ou aquele que se fez na vida pelo seu talento e iniciativa, bem diferente dos ideais aristocráticos do Sul. Pelo menos é assim que a historiografia tradicional o trata, embora um bom casamento tenha ajudado a alavancar a sua carreira política.
O cinema cuidou de perpetuar essa imagem do presidente em vários filmes, como por exemplo, "A Mocidade de Lincoln" (1939), do grande diretor John Ford. Contudo, o mesmo Ford já colocou em um de seus personagens cinematográficos uma fala muito famosa, a qual afirma que "quando a lenda se torna fato, publique-se a lenda". Portanto, o diretor não assume maiores responsabilidades com a veracidade dos fatos históricos, pois o importante para ele era: "você gostou do filme?"



Agora, outro grande diretor, Steven Spielberg, irá lançar a sua versão cinematográfica do presidente Lincoln, que  como sabemos, foi assassinado após o final da Guerra Civil, por um sulista rebelde, John Wilkes Booth, em um teatro em Washington. Uma morte trágica torna-se benevolente com os grandes personagens da História, pois acaba por destacar mais as qualidades e esconder possíveis defeitos. A nova versão traz o premiado ator Daniel Day-Lewis (imagem acima) no papel de Lincoln e deve ser lançada nos Estados Unidos agora, no final do ano, e chegar por aqui no início de 2013. Fica a nossa curiosidade de como o personagem será tratado na nova versão.
A Imagem Histórica de hoje (mais acima) é a primeira foto conhecida de Abraham Lincoln, na verdade, um daguerreótipo, processo ainda rudimentar de fotografia e datado do ano de 1846. Mostra um indivíduo um tanto desajeitado e com um tamanho descomunal, que outras fotos posteriores iriam confirmar. Um olhar sério e um tanto quanto aterrador. Nessa imagem, Lincoln está sem a famosa barba, que usou nos tempos da presidência. 
A primeira foto de Lincoln está no livro Passado Imperfeito: a história no cinema, de Mark C. Carnes (org.), da Editora Record, página 125.
Imagem de Daniel Day-Lewis como Lincoln:
http://screencrave.com/2012-08-07/lincoln-official-daniel-day-lewis-abraham-lincoln/

domingo, 4 de novembro de 2012

Coronel Delmiro Gouveia





Um coronel estranho. Necessário lembrar que, neste caso, o termo coronel está se referindo aos antigos chefes locais do interior do Brasil, em geral grandes proprietários rurais. O título parece ter a sua origem na antiga Guarda Nacional nos tempos do Império. Com a descentralização política promovida na fase da Primeira República (1889-1930), esses chefes locais fortaleceram ainda mais a sua autoridade, manipulando as eleições e exercendo o controle do poder, principalmente a nível municipal.
Delmiro Gouveia (imagem acima) fugia desse modelo do coronel tradicional. Embora tenha começado a sua vida ligado às atividades rurais, sobretudo a compra e venda de couros no interior de Pernambuco, acabou conhecido como o industrial do sertão. Abriu uma grande fábrica no interior do estado de Alagoas, nas proximidades da famosa cachoeira de Paulo Afonso. Ao lado da fábrica, construiu uma vila operária pioneira para abrigar os seus empregados. De coronel a empresário, esta foi a trajetória deste personagem cuja morte está até hoje mal explicada.
Delmiro Augusto da Cruz Gouveia nasceu em 1863, fruto de um relacionamento arrebatador entre Delmiro Porfírio de Farias, mais conhecido como Belo, de 34 anos, tropeiro e uma adolescente chamada Leonila Flora da Cruz Gouveia, que mal havia completado os 14 anos. A paixão levou Belo a raptar Leonila. Foram meses em fuga pelo sertão, pois a polícia e os jagunços enviados pelo pai da moça estavam no encalço dos dois amantes. Em meio a essa fuga nasceram Maria Augusta e o futuro coronel Delmiro. Logo depois, Belo foi convocado para a Guerra do Paraguai e não retornou mais. A viúva Leonila decidiu morar em Recife e ficou em dificuldades para criar os filhos, pois a sua antiga família a renegara depois da união com Belo. Contudo, pouco tempo depois, Leonila casou-se com o advogado Meira Vasconcelos, para quem trabalhava como governanta.



Quando Delmiro Gouveia completou 15 anos, sua mãe faleceu decorrente de problemas no coração. A partir daí, o jovem Delmiro resolveu ganhar a vida e começou a trabalhar. Tinha recebido as primeiras instruções em casa com a própria mãe e o padrasto. Exerceu os mais variados tipos de serviço, como bilheteiro em uma empresa de transporte urbano, condutor e depois, em 1881, tornou-se caixeiro no comércio de Recife. Fez amizade com o comerciante de algodão Francisco Xavier dos Santos, que o apresentou a um amigo, o tabelião Antonio Severiano de Melo Falcão. Este último tinha uma filha de apenas 13 anos, Anunciada Cândida ou Iaiá, por quem Delmiro se apaixonou. O casamento ocorreu em 1883 (na foto acima, Delmiro e dona Iaiá).
A situação do Nordeste nessa época não era das melhores e conseguir sobreviver não era fácil para aqueles menos privilegiados. As secas começavam a dispersar uma parte da população do sertão em direção à Amazônia, onde começava o ciclo da borracha. A riqueza da economia açucareira era uma lembrança do passado e as atenções do país estavam voltadas para o café, produzido no Sul. Contudo, a região apresentava a possibilidade da produção e comercialização do couro obtido do boi, cavalo, bode, carneiro, burro e até do jegue. A atividade atraia estrangeiros, entre eles o sueco Hermann Lundgren, cuja família fundaria o império das Casas Pernambucanas. Foi nessa atividade que Delmiro Gouveia começou a prosperar e como representante da casa norte-americana Keen Sutterly & Co. Ltd. . Logo depois de uma viagem aos Estados Unidos, Delmiro tornou-se o gerente de todos os negócios da firma em Pernambuco.



Em 1894 voltou aos Estados Unidos (na foto acima, Delmiro Gouvea diante das cataratas de Niagara) para comprar as instalações da firma norte-americana que havia encerrado as suas operações no Brasil. Delmiro também realizara outros negócios paralelos no ramo dos couros, que incluiam a poderosa empresa de peles norte-americana J. H. Rossbach Brothers.
Em 1897, era um comerciante próspero e construiu uma bela casa em Apipucos, nas proximidades de Recife. Delmiro tornava-se uma figura atraente na sociedade local e envolvia-se frequentemente com outras mulheres. Embora na sociedade patriarcal da época isso fosse algo comum, no caso de Delmiro ganhava muita notoriedade, principalmente o seu gosto por cantoras de ópera, as quais homenageava com presentes caros em sua própria casa. Sem condições emocionais de suportar esses escândalos, dona Iaiá resolveu deixá-lo em definitivo.
Delmiro Gouveia, ao contrário dos outros membros da elite dos coronéis, pensava em diversificar os seus negócios e em 1898 firmou um contrato com a prefeitura de Recife para instalar um Mercado Modelo, no antigo Derby Club da cidade. No ano seguinte, o mesmo já estava sendo inaugurado. A novidade para a população recifense: os preços inferiores aos dos outros lugares da cidade. O Mercado funcionava durante a noite com luz elétrica e tendo atrativos como carrosséis, teatro, hotel de luxo, velódromo e um sistema de transporte de bondes puxados a burro para levar o público ao mesmo. Era quase uma antevisão do moderno "shopping". Delmiro resolveu construir um palacete para residir próximo ao seu empreendimento.
Apesar do êxito popular de seu novo negócio, Delmiro Gouveia não estava sintonizado com a elite política dominante em Pernambuco e que era liderada pelo então vice-presidente da República, o Conselheiro Francisco de Assis Rosa e Silva. Um de seus aliados era o novo prefeito de Recife, o qual colocou uma série enorme de empecilhos ao funcionamento do Mercado-Modelo, como por exemplo, a proibição para a venda de carne. A fim de resolver a desavença com o prefeito, Delmiro viajou ao Rio de Janeiro para avistar-se pessoalmente com o vice-presidente Rosa e Silva e recebeu deste a promessa de que a perseguição acabaria caso ele e seus amigos apoiassem o governo de Pernambuco. Ao mesmo tempo, Delmiro tomava conhecimento, ainda no Rio, de que um pistoleiro conhecido como João Sabe-Tudo já se encontrava na capital para assassiná-lo. Logo depois, quando caminhava no centro da capital, na Rua do Ouvidor, Delmiro encontrou o vice-presidente Rosa e Silva na porta de uma loja e dirigindo-se ao mesmo, esbravejou contra a ameaça de morte que estava sofrendo. Em seguida, em um ataque de fúria, Delmiro agrediu o vice-presidente com a sua bengala, obrigando Rosa e Silva a se esconder dentro da loja, diante de uma multidão que se aglomerava e testemunhava o episódio.
A represália veio logo depois, no dia 02.01.1900, quando o Mercado-Modelo do Derby amanheceu em chamas. As autoridades locais acusaram o próprio Delmiro de ter mandado atear fogo ao mercado para receber o dinheiro de um seguro e a polícia recebeu ordens para prendê-lo. Delmiro teria dito depois que os policiais o insultaram moralmente para justificar a sua reação e assassiná-lo. Contudo, diante da pressão de seus amigos junto ao então governador, Segismundo Gonçalves, Delmiro foi libertado, mas teve de abandonar a capital pernambucana. O coronel ainda tocava os seus negócios, entre eles a venda de couros e uma usina de açucar.



Delmiro retornou dois anos depois a Pernambuco e conheceu uma moça de 16 anos chamada Carmela Eulina do Amaral Gusmão (imagem acima), que muitos apontavam como filha do governador em um caso extra-conjugal. Delmiro repetiu o ato do pai, raptou a menor e levou-a para o interior de Alagoas, onde comprou uma fazenda e se estabeleceu em um local chamado Pedra, às margens de uma estrada de ferro pouco utilizada e distante 20 quilometros da cachoeira de Paulo Afonso. Sim, ele foi processado por rapto e estava sendo procurado pela polícia. Posteriormente, o processo foi anulado por interferência dos aliados de Delmiro Gouveia. Eulina deu a Delmiro três filhos e permaneceu na fazenda, em Pedra, por cinco anos.  
Foi nesse lugar, aparentemente inóspito, que Delmiro realizou o seu grande empreendimento, o de explorar os recursos hidrelétricos da cachoeira de Paulo Afonso e estabelecer um centro industrial naquele local. A fazenda que adquiriu prosperou com a introdução do gado zebu e das vacas holandesas, além de cultivar uma planta cactácea que teria vindo do Texas, conhecida como palma. A partir dessa fazenda, Delmiro continuava a exportar couro para os Estados Unidos.



Sem acordo com o governo local para a instalação da usina de eletricidade, Delmiro resolveu explorar de forma particular a energia hidrelétrica no São Francisco. Trouxe geradores até as margens do rio e os fez atravessar por meio de uma ponte improvizada. Para colocar a primeira turbina, foi necessário descer a mesma de uma altura de 84 metros. Alguns autores afirmam que o próprio Delmiro orientou a descida pendurado em uma corda. Em 1913, a usina foi inaugurada. Em seguida, veio a fábrica (na foto acima, a entrada da Cia. Agro-Fabril Mercantil).



A indústria dedicou-se à produção de linhas de costura. Máquinas foram importadas da Inglaterra, técnicos vieram da Europa, mil operários foram contratados, além dos trabalhadores utilizados nos campos para a produção de algodão. Em meados de 1914, a fábrica já estava produzindo fios, linhas para crochê, bordado e ainda cordões brancos e coloridos (na imagem acima, os escritórios da empresa). Os produtos tinham a marca "Estrela" e dois gigantes puxando um fio como símbolo ou logotipo. Em pouco tempo, a produção aumentou e a fábrica exportava para alguns países da América do Sul.
Os anos correspondentes à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foram favoráveis aos negócios fabris no Brasil, diante das dificuldades de importação decorrente da guerra travada na Europa e Delmiro Gouveia soube tirar proveito dessa situação.



Outro aspecto a destacar desse novo empreendimento de Delmiro Gouveia foi a vila operária para abrigar os trabalhadores. As condições de vida dentro da mesma estavam acima das que eram encontradas na maior parte do sertão nordestino. Eram 250 casas com luz elétrica, água e um sistema de esgotos (na foto acima, a antiga vila com as casas). Mas as normas para viver lá eram rigorosas. Não era admitida a presença da Igreja Católica e nem as datas religiosas eram celebradas. Nem mesmo o carnaval era comemorado. O controle sobre os trabalhadores era exercido até dentro das próprias casas, onde os mesmos deviam seguir normas, como não usar chapéus e nem andar sem camisa. O próprio Delmiro inspecionava as casas que deviam ficar com as portas abertas. Aqueles que cometiam alguma falta grave eram duramente castigados. O estilo autoritário de Delmiro feria muitos costumes arraigados na vida dos trabalhadores, como a religiosidade. Por outro lado, médicos e remédios eram disponibilizados e havia diversão, apesar do controle com relação ao consumo de bebida alcóolica.
A alfabetização era obrigatória para as crianças e foram implantados cursos noturnos para os trabalhadores. O regime de trabalho era de oito horas diárias com descanso semanal aos domingos. Uma Caixa de Previdência foi implantada mediante uma contribuição semanal dos próprios trabalhadores.



Não se têm notícia de morte violenta na fábrica localizada em Pedra, exceto uma, a do próprio Coronel Delmiro. Em 10.10.1917, às 9 horas da noite, quando estava na sua varanda lendo jornal, Delmiro foi alvejado com três tiros, um dos quais lhe acertou o coração. Três pistoleiros foram detidos e, sob tortura, incriminaram dois mandantes, que nunca foram presos, um dos quais por ter imunidade parlamentar. Dois outros suspeitos de encomendar o crime incluiam o pai de uma jovem que Delmiro seduzira e um amigo de Rosa e Silva, o vice-presidente que foi agredido pelo coronel.
Contudo, ficou sempre no ar uma suspeita, a de que Delmiro Gouveia tivesse sido assassinado a mando de seus concorrentes ingleses, mais precisamente da multinacional textil Machine Cottons. Não havia dúvida de que o crescimento do negócio de Delmiro incomodava esta empresa estrangeira. Os ingleses chegaram a boicotar os comerciantes que comprassem as linhas Estrela. A Machine Cottons tinha feito várias propostas de compra da fábrica de Pedra e sempre tendo resposta negativa da parte do Coronel Delmiro. Contudo, nenhuma prova do envolvimento da multinacional foi encontrada nos tiros que vitimaram o empresário. A fábrica continuou prosperando até 1924, quando passou para os três filhos de Delmiro Gouveia.
No governo do presidente Washington Luís, a política liberal então adotada reduziu a taxa de importação sobre linhas de costura. Diante da nova situação, em 1927, a fábrica foi vendida pelos herdeiros para a firma Menezes Irmãos & Cia., a qual, em 1929, a revendeu para a...Machine Cottons, que substituiu a marca Estrela pelas linhas da marca Corrente. Em 1930, a fábrica de Pedra foi desmantelada e as máquinas jogadas no fundo do rio São Francisco.
Para saber mais:
Marcovitch, Jacques. Pioneiros & Empreendedores: A Saga do Desenvolvimento no Brasil. São Paulo: Edusp e Editora Saraiva, 2007, vol. 3.
Crédito das imagens: Grandes Personagens da Nossa História. Abril Cultural, 1969, pags. 845-860.