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domingo, 7 de outubro de 2012

Hebe Camargo e os Anos de Chumbo



Não há como negar a importância que teve a apresentadora Hebe Camargo para o cenário artístico. Sua trajetória se confunde com a própria história da televisão brasileira inaugurada em 1950 (acima, Hebe em foto de David Drew Zingg de 1969). 



Hebe esteve presente no porto de Santos, quando os equipamentos trazidos pelo jornalista Assis Chateaubriand chegaram ao Brasil para a inauguração da TV Tupi (como mostra a foto acima, de 1950, à direita de terno e chapéu branco está Chateaubriand. Hebe é a terceira da direita para a esquerda com vestido estampado). 



Por outro lado, também não há como negar que o seu público apresentava um nítido traço conservador característico da classe média urbana, sobretudo a paulistana, da qual ela representava uma espécie de modelo a ser seguido (acima, a cantora e apresentadora em 1950). Hebe acompanhou o crescimento desse segmento social com a acelerada urbanização a partir da metade do século XX. Apesar de suas origens humildes, ela encarnou esse papel de ícone das donas de casa por mais de cinquenta anos, principalmente nos seus programas de entrevistas, cujo padrão foi moldado nos tempos da TV Record, na década de 1960. Seu programa noturno era líder de audiência e marcou o auge da emissora comandada por Paulo Machado de Carvalho. Hebe se comunicava de forma simples e direta com o seu público. As suas atrações eram puro entretenimento, sem grandes reflexões ou críticas. Por isso, não teve grandes problemas com os generais que davam plantão em Brasília nos tempos da ditadura militar (1964-1985), muito pelo contrário, convivia bem com eles. 
Para os que a criticavam por não ter diploma escolar, ela exibia em sua casa o "Diploma homenagem a Hebe Camargo, pela colaboração prestada na divulgação do primeiro aniversário do governo do Presidente Costa e Silva". O mesmo contava ainda com a assinatura de três ministros. A frivolidade e superficialidade de suas falas eram alvo de duras críticas por parte de intelectuais e críticos da alienação promovida pela televisão. Em 1969, quando perguntada a respeito do presidente militar Arthur da Costa e Silva (1967-1969), afirmou gostar do mesmo: "Você viu, ele chorou no dia da posse. Homem que tem capacidade de chorar é porque é bom, não tem veneno na alma, pode compreender o problema dos outros. Que pena que ele esteja doentinho...".
Contudo, em 1969, o seu programa apresentava alguns sinais de desgaste agravados pela censura da própria Ditadura Militar, a existência de entrevistas impostas e os desencontros da equipe de produção. O Brasil já vivia as consequências do Ato Institucional nº 5, que cerceava a liberdade de expressão. A própria emissora paulista entrava em um período de declínio após três incêndios seguidos, que destruíram os seus auditórios.
Em uma quase entrevista dada ao renomado jornalista José Hamilton Ribeiro para a revista Realidade, de novembro de 1969, ela demonstrava muita tristeza com relação às críticas que lhe eram feitas e muito sentida quando lembravam de sua pouca escolaridade. Segundo Hamilton, ela simplesmente chorava ao ler ou ouvir tais comentários, algo que, na visão daquele jornalista, refletia uma insegurança por parte da apresentadora. 



Hebe achava que não tinha uma boa bagagem cultural para ser artista, mesmo quando comparada com apresentadores que também estudaram pouco, como Chacrinha e Silvio Santos (na foto acima, Hebe e Abelardo Barbosa, o Chacrinha, no início da década de 1960). Nessa mesma época, um rapaz em São Paulo chegou a anotar os erros que a apresentadora cometia em suas entrevistas, como o de perguntar o número de integrantes de um sexteto, a idade de um irmão gêmeo sabendo qual era a do outro e prometer que levaria o teatrólogo Ibsen (1828-1906) ao seu programa para comentar as suas peças. Por outro lado, há setenta anos, quando a televisão começou, ninguém era especializado em comunicação através de curso superior e para os que trabalhavam, seja na frente ou atrás das câmeras, tudo era aprendizado. Com Hebe não foi diferente. 


O programa de Hebe Camargo exibido na TV Record a partir de 1966 era o mais importante da televisão brasileira (na foto acima, Hebe entrevista Maurício de Souza). Mas é preciso lembrar que, por trás da atração, havia uma equipe altamente qualificada atuando na produção da mesma, conhecida pelo nome de "Equipe A". Os seus integrantes eram Antônio Augusto Carvalho (Tuta), Nilton Travesso (importante diretor e produtor, que depois comandaria o Fantástico na Rede Globo), Raul Duarte e Manuel Carlos (o próprio, futuro autor de telenovelas). Esses produtores pesquisavam e vasculhavam os assuntos tratados no programa, principalmente aqueles mais em evidência. No palco, Hebe ainda contava com a jornalista Cidinha Campos que a auxiliava, caso a apresentadora esquecesse de alguma coisa. 


Entre os entrevistados que passaram pelo sofá de Hebe Camargo estavam o então governador de São Paulo, Abreu Sodré, o prefeito Faria Lima, o ator Procópio Ferreira, a comediante Dercy Gonçalves, a Miss Universo Ieda Maria Vargas, o médico sul-africano Christiaan Barnard (que realizou o primeiro transplante de coração) e o ator estadunidense Jonathan Harris, conhecido pelo seu personagem Dr. Smith na telessérie Perdidos no Espaço, que também era exibida pela TV Record (na foto acima, o ator e a apresentadora, em 1969). A lista de pessoas que aguardavam para serem entrevistadas em seu programa, no final de 1969, tinha mais de 2.200 nomes. Em torno de 8 mil entrevistas foram recusadas pela produção e muitos tentavam obter uma participação oferecendo altas quantias. Foram três anos e meio no ar sem férias e sem nenhuma falta. Hebe era uma grande profissional com relação aos seus compromissos. 
Outro entrevistado foi o já citado jornalista José Hamilton Fernandes, correspondente na Guerra do Vietnã. Em 1968 teve parte da perna decepada após ser atingido pela explosão de uma mina. Recuperado, foi convidado para o programa de Hebe. Tinha receio do estilo da apresentadora e de que esta se referisse a ele como "gracinha". Hamilton chegou a ser aconselhado a não participar do programa, pois conforme já mencionamos, nos meios jornalísticos, Hebe era vista como uma entrevistadora com pouca formação. Contudo, o jornalista notou a forma e a desenvoltura com que a apresentadora conduziu a entrevista, dirigindo-se a ele como se já o conhecesse há muito tempo. O programa transcorreu bem e teve grande repercussão. A ironia é que coube depois a Hamilton fazer a reportagem com a própria Hebe para a revista Realidade, então uma das mais importantes do país.  


Hebe Maria Monteiro de Camargo nasceu em 1929, na cidade de Taubaté em uma família de nove filhos, sendo que as duas primeiras filhas morreram antes de completar dois anos. O pai de Hebe, Fêgo Camargo (na imagem acima, ao lado de Dona Ester, mãe de Hebe, em foto de 1969) ganhava a vida como violinista e tocava no cinema durante a exibição dos filmes, que na década de 1920 eram mudos e acompanhados com fundo musical ao vivo. Quando Hebe nasceu, os filmes sonoros já estavam chegando nas salas de cinema e o "Seu Fêgo" perdeu o trabalho.


Contudo, em 1932, São Paulo se levantava contra o Governo Provisório de Getúlio Vargas na Revolução Constitucionalista e o pai de Hebe foi incorporado ao Exército de São Paulo como músico da banda militar (na foto acima, Hebe com aproximadamente quatro anos). 



Talvez o passado do pai como ex-combatente de 1932, tenha contribuído para as futuras posições conservadoras da apresentadora no cenário político paulista, como o notório apoio dado ao político Paulo Maluf, décadas depois (na foto acima, Hebe no dia 9 de julho de 1954, nas comemorações do aniversário do Movimento Constitucionalista de 1932).



Com doze anos, Hebe trabalhava como arrumadeira e começava a frequentar programas de calouros inspirando-se em Carmem Miranda (acima, Hebe aos 18 anos em 1947). Seguindo o estilo do trio vocal norte-americano The Andrews Sisters, Hebe formou com a sua irmã Stela e as primas Helena e Maria, o "Quarteto Dó-Ré-Mi-Fá" (Hebe era o "Ré"). Depois do fim do quarteto, Hebe ainda chegou a formar uma dupla caipira com a irmã Stela: Rosalinda e Florisbela.



Mais tarde já atuando como cantora (acima, Hebe em 1954), lhe sugeriram um outro nome artístico que soasse melhor ao público: Magali Porto. Hebe não aceitou a ideia. Na década de 1950 existia uma superstição de que o nome dos artistas que faziam sucesso tinham cinco sílabas, como por exemplo, Car-mem Mi-ran-da, Or-lan-do Sil-va ou Fran-cis-co Al-ves. Bem, Hebe Camargo continuava tendo cinco sílabas. 



Como contratada da Rádio PRG2 Tupi de São Paulo, pertencente aos Diários Associados (de Assis Chateaubriand), Hebe percorreu o país se apresentando como cantora e inaugurando várias emissoras de rádio do grupo (acima, Hebe cantando no rádio). Hebe ficou conhecida nessa época como a "estrelinha do samba". 



Em 1945 seguiu carreira solo e no ano seguinte lançou o seu primeiro disco. Em 1949 chegou a atuar no cinema e mais tarde em alguns filmes do conhecido comediante Mazzaropi (acima, uma rara foto de Hebe Camargo de maiô, de 1951). 



No início da década de 1950 Hebe iniciou a carreira de apresentadora na Rádio Nacional e depois na antiga TV Paulista, canal 5, na época comandada pelo empresário Vitor Costa, com quem, diziam as más línguas, a apresentadora teria tido um caso. Trata-se de algo nunca confirmado (na foto acima, de 1957, Hebe já como contratada da TV Paulista). 


Nesta última emissora apresentou o programa "O Mundo é das Mulheres" por nove anos (imagem acima), atração que chegou a ser diária. Na televisão, Hebe encontrou o veículo ideal para exibir as suas qualidades como cantora (que para muitos críticos não eram tão boas) e, principalmente, apresentadora. Para isso, precisou retocar a sua aparência, pois não era tida como fotogênica. Segundo uma matéria da revista O Cruzeiro de 1963, teria sido Dermival Costa Lima da TV Paulista que sugeriu a mudança, através da maquiagem e aparando as sobrancelhas grossas. 


Em 1957, Hebe tingiu os cabelos de loiro pela primeira vez, o que acabou se tornando a sua marca registrada (na foto acima, Luciano Calegari, futuro braço direito de Silvio Santos e Hebe Camargo, ainda na época da TV Paulista, no início da década de 1960). O programa "O Mundo é das Mulheres" tornou-se um dos maiores sucessos da televisão. 


Apesar de apresentar o programa também no Rio de Janeiro, sua carreira de apresentadora firmou-se mesmo na capital paulista, onde recebeu o título de "A Madrinha da TV" e de "Estrela de São Paulo" (na foto acima, de 1960, Hebe ao lado do comediante Borges de Barros, no programa Praça da Alegria da TV Paulista). No programa ainda tinha um quadro chamado "Calouros em Desfile", o qual lhe trazia lembranças do início de sua carreira como cantora de rádio. 


O sucesso e o prestígio da agora apresentadora Hebe Camargo permitiram a ela a realização de alguns sonhos de consumo, como ter automóveis de luxo (foto acima de 1963, Hebe e seu Chevrolet Impala), jóias caras e residir num bairro elegante de São Paulo. 


Apesar de ser uma profissional pioneira e ativa da televisão, Hebe Camargo (na foto acima, em 1963, na TV Paulista) tinha uma posição tradicional em relação ao papel da mulher, afirmando que quando se casasse teria que abandonar a carreira artística. Num depoimento para a revista O Cruzeiro em setembro de 1963, Hebe declarou que "o casamento exige da mulher uma dedicação que não pode ser repartida". A fala teria sido influenciada por seu futuro marido, Décio Capuano, que não aprovava a carreira artística de Hebe? Fica aqui a questão. 
De acordo com a outra matéria citada anteriormente, da revista Realidade de 1969, a fama de namoradeira acompanhava Hebe nos tempos de cantora. Nessa época ela fazia uso de um colar de argolas que enfeitava o decote de seu busto, o que dava margem a comentários do tipo: "Você desmancha os noivados, mas mantém as alianças junto ao peito, hem?" Dizia-se que Hebe era a mulher mais cortejada do mundo artístico nos anos de 1950. Hebe teve muitos amores, chegando a ser noiva três vezes, inclusive com um membro do clã Matarazzo. Este último caso teria durado dois anos e após a separação, Hebe devolveu todos os presentes que ganhou como namorada e noiva. Uma amiga da apresentadora teria dito que, se ela tivesse ficado somente com as jóias não precisaria trabalhar mais. Contudo, teve também suas desilusões amorosas, uma das quais com um famoso animador de auditório por quem se apaixonara. Contudo, ao comparecer a um de seus programas para prestigiar o seu grande amor, notou que este usava uma aliança e que a sua batalha amorosa estava perdida. A matéria da revista Realidade não identifica o tal apresentador e nem a época em que o fato ocorreu. 




Apesar das tantas paixões, Hebe só veio a se casar aos 35 anos com o empresário Décio Capuano, de quem teve seu único filho, Marcelo (nas imagens acima, o casamento e a família reunida na casa de Hebe, no bairro do Sumaré em São Paulo, no ano de 1968). Na verdade, o casal já vivia junto há vários anos. A gravidez da apresentadora foi difícil, após vários tratamentos de fertilização e com dois abortos espontâneos. Décio, como já dissemos, fazia restrições à vida artística da apresentadora, que permaneceu afastada dos holofotes até o nascimento de seu primeiro filho, Marcelo. 



Após o retorno da apresentadora à televisão, os desentendimentos aumentaram e o marido de Hebe a acusava de se dedicar demais ao trabalho, o que teria prejudicado a sua gravidez (na foto acima, Hebe em sua residência no ano de 1968). As brigas foram constantes e acabaram levando ao fim do casamento em 1971. Três anos depois, Hebe casou-se com Lélio Ravagnani e o casal viveu junto até o ano 2000 quando Lélio faleceu. 



Após o nascimento do filho e apesar das objeções do primeiro marido, Hebe retorna à televisão em 1966 pela TV Record para o seu "Hebe aos Domingos". A atração chegou a alcançar a maioria absoluta da audiência e ficou no ar até o início da década seguinte (na foto acima, Hebe no auge de sua fase na TV Record em 1967). Hebe ainda teve passagens pela TV Tupi, TV Bandeirantes e a partir de 1986 no SBT. Em todos esses anos o seu público se manteve fiel e continuaria com ela até os seus momentos derradeiros. Nunca mudou o seu estilo, declarando sempre estar preocupada em ajudar pessoas, dar entretenimento, diversão, alegria e otimismo: "Diante das pessoas, eu não me sinto como entrevistadora; eu as admiro, eu vibro com elas, eu fico gostando e digo isso diretamente, sem reservas e sem receio de parecer ridícula".
O auge de Hebe Camargo na TV Record coincidiu com o endurecimento ainda maior da ditadura militar, a crescente repressão policial e as torturas, os chamados "anos de chumbo". O recurso à luta armada contra a ditadura ganhava força diante do recrudescimento do regime. Claro que nas entrevistas de Hebe, nenhuma observação política sobre aquele momento era feita, exceto "por acidente" ou para elogiar as ações policiais contra os "subversivos" de esquerda, mas sem explicar ao público as razões pelas quais lutavam. Segundo narra o jornalista e escritor Tom Cardoso, em seu livro "O Cofre do Dr. Rui" (editora Civilização Brasileira, 2011), quando esteve no sofá de Hebe, o ex-governador de São Paulo, Adhemar de Barros (um apoiador de primeira hora do golpe militar de 1964), referiu-se de forma indelicada ao presidente Castelo Branco. Ao ouvir da apresentadora que o presidente militar era uma "gracinha", Adhemar disparou: "Gracinha? Ele é horroroso, não tem pescoço". Pelo bom relacionamento que a apresentadora mantinha com os militares, nada de mais grave ocorreu com ela, mas Adhemar foi cassado logo depois, por outras razões. 
Durante o III Festival de Música Popular Brasileira de 1967, organizado pela TV Record, Hebe Camargo resolveu retornar aos seus tempos de cantora, para defender uma das canções inscritas, "Volta Amanhã" (de Fernando César e Mariah Brito). Hebe foi recebida com vaias e assobios na apresentação das eliminatórias, fato inédito em toda a sua carreira. Mas, ao contrário de Sérgio Ricardo, que foi vaiado no mesmo festival e jogou o violão contra o público, Hebe resistiu e foi até o fim interpretando a canção. Os colegas que a viram, afirmaram que ela encarou o acontecimento como um desafio e fez de tudo para não chorar. Dias depois, Hebe Camargo recebeu um telefonema do general Syzeno Sarmento, comandante do II Exército em São Paulo, que lhe prestou solidariedade. Sarmento foi o criador do Centro de Operações para a Defesa Interna (CODI), chamado depois de Departamento de Operações Internas (DOI) ou apenas DOI-CODI, órgão responsável pela detenção e tortura de presos políticos. 



Contudo, um fato ocorrido em outubro de 1968 envolveu indiretamente a apresentadora com a oposição armada à Ditadura Militar. Hebe Camargo tinha como vizinho o oficial do Exército dos Estados Unidos, capitão Charles Rodney Chandler, veterano condecorado da Guerra do Vietnã, a qual ainda estava em andamento (na foto acima, a antiga residência da apresentadora, na rua Petrópolis, no bairro do Sumaré em São Paulo). 



Na versão oficial, o militar de trinta anos era bolsista e estava no Brasil fazendo um curso na Escola de Sociologia e Política da Fundação Álvares Penteado, embora na época os jornais afirmassem erroneamente, que era na Universidade de São Paulo (USP). Dizia-se também que o capitão pretendia posteriormente, ministrar cursos em português na famosa Academia Militar de West Point nos Estados Unidos (acima, Charles Chandler em seu uniforme) e publicar um livro sobre o Brasil. Contudo, o oficial foi identificado pelos grupos guerrilheiros de esquerda como sendo espião da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA em inglês) e colaborador da ditadura brasileira. Chandler era acusado também de dar treinamento a militares brasileiros e bolivianos, inclusive em técnicas de tortura. Vale lembrar que em outubro de 1968 completava um ano da morte de Ernesto Che Guevara (revolucionário cubano), exatamente por militares bolivianos treinados por oficiais estadunidenses. Embora não fosse comprovado o vínculo do capitão Chandler com a CIA (aliás, algo difícil de ser provado, pois afinal era uma agência de inteligência), o historiador Carlos Fico da Universidade Federal do Rio de Janeiro, soube por meio de depoimentos de indivíduos ligados ao aparelho de repressão da ditadura, que o oficial colaborava com a CIA por meio de informações. Por sua vez, era difícil, no contexto político da época, justificar a presença desse oficial no Brasil como sendo algo normal e natural. 




Na manhã do dia 12 de outubro de 1968, quando entrou em seu automóvel Impala e saiu de ré da garagem, um Fusca parou na traseira do veículo bloqueando-o. De dentro dele saiu o guerrilheiro Diógenes José Carvalho da organização Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) que deu seis tiros de revólver no oficial e em seguida, Marcos Antônio Braz de Oliveira da Aliança Libertadora Nacional (ALN) completou a execução com uma rajada de metralhadora. Charles Chandler morreu na hora (nas fotos acima, o capitão morto dentro do carro e a cena do atentado). Após a execução os guerrilheiros deixaram no local panfletos os quais diziam ser uma punição da Justiça Revolucionária pelos crimes cometidos no Vietnã. O livro que o capitão trazia consigo não deixa dúvidas, ao menos, de suas inclinações anti-comunistas, pois intitulava-se "Origem da Autocracia Comunista". A polícia necessitava esclarecer rapidamente o atentado pois tratava-se de um militar estadunidense e iniciou uma verdadeira caçada aos autores. 


Mas, havia uma pista e esta veio de dentro da casa da apresentadora Hebe Camargo. Cenira de Menezes Godoy, babá de Marcelo (foto acima), filho de Hebe, era tida como muito bisbilhoteira e naquela manhã notou uma movimentação em frente à casa. Cenira pegou um binóculo da patroa e verificou a presença estranha de um Fusca bege, anotando a placa. Era exatamente esse o veículo utilizado no atentado e o ato da babá poderia ser a solução do caso, mas não foi. A placa havia sido furtada de dentro do Detran-SP por um dos guerrilheiros e pertencia a outro veículo, de propriedade do dentista José Luiz de Andrade Maciel. Este pacato cidadão nada tinha a ver com o ocorrido. Porém, na ânsia de esclarecer o caso, a polícia deteve José e sua esposa, na época grávida de dois meses. Segundo um depoimento prestado pelo próprio Maciel ao jornal O Estado de S. Paulo em 1980, ele foi mantido incomunicável no Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS) por trinta dias e submetido a uma verdadeira tortura psicológica. Era chamado para dar depoimentos durante a madrugada, o que o impedia de dormir. O governador de São Paulo, Abreu Sodré sabia de sua detenção e teria recomendado apenas que Maciel não sofresse tortura física. Sua esposa quase perdeu a criança na época. Mesmo depois de liberado, o casal teve de telefonar todos os dias para um delegado informando onde estavam e o que faziam. Com graves sequelas psicológicas, o casal acabou vendendo a propriedade em que moravam deixando a cidade de São Paulo, por temor de represálias. Tiveram de recomeçar a vida em outro lugar. Ainda em 1980 temiam falar sobre o assunto e mantinham o anonimato. 
Em janeiro de 1969, com a prisão de quatro guerrilheiros da VPR, barbaramente torturados, o caso foi esclarecido por meio do depoimento de um integrante desse grupo, Hermes Camargo Batista. Muitos membros da organização passaram a considerá-lo traidor, pois teria sido o único a revelar para a polícia os detalhes da ação, sem ter sido submetido a tortura. Marcos Antônio Braz de Oliveira, o que disparou a metralhadora em Chandler foi executado pouco depois em uma operação policial. O outro participante do atentado, Diógenes José Carvalho, foi preso, sofreu tortura e foi libertado em 1969, em troca do embaixador alemão que havia sido sequestrado. 
É possível especular qual seria a noção exata que a apresentadora Hebe Camargo teria do momento que o país e o mundo viviam, naquele final de década de 1960. Ela sabia da existência de uma luta entre as forças policiais e os opositores do regime militar. Tinha bom relacionamento com os generais do poder. De acordo com uma matéria sobre ela na revista Manchete, de setembro de 1968 (pouco mais de um mês antes do ataque contra o militar estadunidense), Hebe recebeu em seu programa um grupo de policiais que promoviam diligências contra as gangues de "assaltantes de bancos e terroristas políticos". A apresentadora solicitou aos mesmos que relatassem os momentos mais dramáticos, as perseguições, os perigos, os acertos e erros "daquela que foi uma das maiores caçadas humanas até hoje realizadas no Brasil" (Revista Manchete, edição de 21.09.1968, página 176). Portanto, uma evidência de que a escalada policial contra opositores do regime militar já havia sido desencadeada e o AI-5, decretado em dezembro, foi o ponto culminante dessa radicalização que levou aos "anos de chumbo". 
Hebe Camargo é uma personagem de grande significado na história da televisão, umbilicalmente ligada ao público que lhe foi fiel, mas também contraditória. Católica e de perfil conservador, acabou por admitir em uma entrevista à revista Veja em 2005, ter feito aborto em 1947, aos 18 anos. Isso ocorreu pelo fato de seu então namorado, o empresário Luís Ramos, dono da Rádio Excelsior e irmão de José Nabantino Ramos, proprietário do jornal Folha de S. Paulo (até o ano de 1962), não ter cumprido a promessa de se casar com ela, pois o mesmo já era casado (na foto acima, Hebe e Luís Ramos). O procedimento foi realizado em uma clínica clandestina, um local sujo, sem anestesia e onde Hebe sentiu dores terríveis durante o procedimento, algo que talvez lhe tenha deixado sequelas pela gravidez difícil que teve mais tarde. Hebe chegou a defender o aborto em casos de estupro e como uma decisão pessoal que as mulheres poderiam tomar, embora não recomendasse. 



Além disso, a apresentadora manteve ainda por muitos anos, o relacionamento com Ramos, como vemos na foto acima, raríssima, onde o casal aparece junto no casamento do humorista Carlos Alberto de Nóbrega em 21.12.1957, do qual foram padrinhos (da esquerda para a direita, Luis Ramos, Hebe Camargo, o noivo Carlos Alberto, sua mãe dona Alda e o pai, Manoel de Nóbrega). Foi com Luis Ramos que Hebe viajou pela primeira vez aos Estados Unidos e voltou com a ideia de deixar os cabelos loiros. Por outro lado, é necessário afirmar que tais fatos foram revelados pela própria Hebe Camargo em várias entrevistas a partir do ano 2000. Não se trata de algo de completo desconhecimento por parte do público. 
Deixo ao leitor as críticas e conclusões. Lembro que sempre é preciso ponderar, analisar, confrontar informações e, quando possível, estabelecer conclusões. Afinal esse também é o papel do historiador...
Última atualização: 13.08.2020
Crédito das imagens: 
as fotos coloridas do rosto de Hebe, de seus pais, da sua casa no Sumaré e de seu filho Marcelo com o cachorro são de David Drew Zingg para a Revista Realidade, edição de 1969.
Hebe com aproximadamente 4 anos: revista A Cigarra de outubro de 1963, página 10. 
Hebe nas comemorações do dia 9 de julho de 1954: revista Radiolândia, edição de 16.10.1954, página 29. 
Hebe aos 18 anos: revista O Cruzeiro de 19.07.1947, página 21. 
Hebe em trajes de banho: revista A Cigarra, julho de 1951, página 29. 
Hebe com vestido branco, de corpo inteiro e cantando em 1954: revista Radiolândia, março de 1954 (2ª quinzena), página 23. 
Hebe em 1967 com as flores: jornal "Última Hora". 
Hebe no programa "O Mundo é das Mulheres" da coleção Nosso Século 1960/1980, editora Abril, 1980. 
Hebe Camargo e Luciano Calegari na TV Paulista:
https://www.facebook.com/groups/memoriadatv
Foto de Hebe entrevistando Maurício de Souza: Curso Completo de Desenho Artístico de Jayme Cortez, volume 4, editora Divulgação Artística, página 432. 
Hebe no rádio diante do microfone e em 1957: várias edições da revista "A Cigarra". 
Foto de Hebe no porto de Santos em 1950, da cantora com dedicatória e entrevistando o ator Jonathan Harris,  site Memórias Cinematográficas:
https://www.memoriascinematograficas.com.br/2020/03/hebe-camargo-mais-que-rainha-da-tv.html
Foto de Hebe e Chacrinha e da apresentadora na Praça da Alegria: Wikipédia.
Foto do casamento com Décio Capuano: Pinterest.
As fotos do atentado contra Charles Chandler: revista O Cruzeiro de 1968. 
Foto de Hebe em sua casa no ano de 1968, com o marido e o filho: revista Manchete, edição de 21.09.1968, pag. 176. 
Foto de Hebe com seu Impala e na TV Paulista diante do microfone em 1963: revista O Cruzeiro.
Foto de Hebe com o seu primeiro namorado Luís Ramos:
revista Radiolândia, edição de 25.01.1958, página 61. 

5 comentários:

  1. Recomendo.
    Excelente matéria para todos os fãs dessa grande apresentadora conhecerem detalhes nunca publicados juntos em uma reportagem tão completa como essa. Parabéns

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    1. Poxa Sílvio, obrigado por classificar a postagem como reportagem! Na verdade é um colagem de outras reportagens. Abração.

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  2. Não deixa de ser uma colagem com recortes muito bem escolhidos, que a transforma em uma grande e rica reportagem. Parabéns

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