O caro leitor (a) muitas vezes já deve ter ouvido dizer que fulano ou sicrano poderia ter encontrado o caminho do bem se tivesse religião. Ah, mas com certeza quem afirmou isso não estava se referindo ao Islão, ao Bramanismo, ao Xintoísmo, à Umbanda, ao Budismo (embora este não seja exatamente uma religião, exceto para o senso comum) entre outras correntes, mas sim ao Cristianismo. Porém, temos verificado nos tempos atuais, entre vários daqueles que se dizem praticantes desta última (sejam católicos ou protestantes-evangélicos) um aumento dos sentimentos de ódio, preconceitos, atitudes violentas dos mais variados tipos, amparados em um fundamentalismo que não condiz com os ensinamentos expressos por aquele que deu origem a essa religião, Jesus de Nazaré ou o Cristo.
Em todos os estudos e pesquisas referentes ao Jesus histórico (ver o nosso post dividido em duas partes, Jesus: um personagem da história), o que se verificou é o de um pregador que buscava redirecionar a tradição hebraica contida no Antigo Testamento, tratando a todos como iguais dentro de um ambiente de fraternidade, com desapego aos bens materiais e de repartição daquilo que era essencial à vida, como os alimentos. O simbolismo da ceia nada mais é do que isso, da mesma forma que a "multiplicação" do vinho, dos pães e dos peixes. Pelo que se sabe do ponto de vista histórico, Jesus foi uma figura solidária e presente, sobretudo diante dos mais necessitados (pobres, doentes e idosos). Deu voz às mulheres, algo inédito há dois mil anos atrás. Desafiou as autoridades e os comerciantes do templo em Jerusalém, o que talvez lhe tenha rendido a própria condenação à morte. E sobretudo, estabeleceu a imagem de um deus acolhedor e presente na vida das pessoas.
No entanto, por que muitos daqueles que hoje se dizem cristãos promovem atitudes tão contraditórias em relação ao que nazareno pregou?
A jornalista e educadora Elaine Tavares nos proporciona uma pista para essa questão, ao observar com enorme lucidez a temática das novelas bíblicas, como a que se encontra atualmente no ar pela TV Record, Gênesis (foto acima, os atores que interpretam Adão e Eva). Quase todas se baseiam no Velho Testamento, o qual pouco tem a ver com os ensinamentos cristãos. A analise da jornalista poderia render um excelente ponto de partida para uma dissertação ou tese, pela forma precisa como expõe o assunto.
Como sempre, deixo ao leitor o espaço necessário para a reflexão. Agradeço à jornalista a autorização para a publicação de seu texto:
Quem já leu essa imensa obra (a Bíblia) sabe muito bem que ela é formada por vários livros agrupados no Velho Testamento e no Novo Testamento (que inclui também o Apocalipse). O Velho Testamento é a parte que define a religião judaica até a chegada do Cristo. É um conjunto estranho e complexo, recheado de violência e fundamentalismo. O Novo Testamento é formado pelos Evangelhos e conta a vida de Jesus, o Cristo, aquele que vem para realizar com os homens uma nova aliança e que inclui o Apocalipse, cheio de profecias sobre um suposto fim do mundo. Pois logo que a Record foi comprada pela Igreja Universal, a igreja iniciou sua pregação midiática de uma forma muito esperta. Em vez de investir nos cultos - embora eles estejam ali - preferiu apostar nas novelas e séries. Afinal, como bem já definiu o sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos, nosso país é movido à telenovela. Aqui, esse gênero de dramaturgia tem um alcance inacreditável. Quase toda a usina ideológica da classe dominante se expressa nesses folhetins, de maneira subliminar e com uma eficácia impressionante.
A Globo, que ainda é líder no gênero, é perita em fazer a nação brasileira amar empresários, fazendeiros, usineiros, mineradores, enfim, todas as frações da elite dominante.
Pois a Record também apostou na novela para trabalhar a questão da religião. Começou com a História de Esther, em 2010 e foi trazendo, a partir de novas produções, várias partes do Velho Testamento em forma de folhetim. Amores, intrigas, assassinatos, violência e tudo o mais que recheia essa primeira parte da Bíblia, mas sobretudo que existe um povo eleito: o de Israel. Ou seja, tudo visceralmente ligado ao universo simbólico do líder maior da igreja, Edir Macedo, que se acha a encarnação do Rei Salomão. É perfeito. As novelas "Os Dez Mandamentos", em 2016, e "A Terra Prometida", em 2017, alcançaram índices incríveis de audiência e chegou a ultrapassar a Globo. E elas nada mais foram do que a narrativa do povo de Israel fugindo do Egito. Nelas se pode ficar frente a frente com esse deus vingador, capaz de trazer inúmeras pragas ao povo do Egito apenas para ferir o Faraó, ou que deixou o povo minguar no deserto porque alguns decidiram adorar outro deus. E esse é o deus que a igreja de Macedo professa. Um deus que se vinga, um deus que mata, um deus intolerante, um deus insaciável, um deus que tem filhos prediletos e que odeia quem não lhe rende homenagens.
Quem conhece as escrituras sabe que o Cristo vem justamente para quebrar a ideia de um deus assim. Jesus propõe uma nova aliança, ele não tem um povo eleito, ele se senta com os gentios, ele toma água da Samaria, ele ama os fracos, os lazarentos. Não traz a ideia de um deus vingador, mas de um deus de amor. E esse não é o deus que a Record incensa. Tanto que a novela que fala sobre Jesus não teve lá muito sucesso. Jesus é fraco, ele morre no final. Os grandes sucessos são os que estão colados ao deus de poder, ao deus da morte. Por isso não é de estranhar que tantos novos-evangélicos possam defender pautas tão estranhas ao universo de Jesus como a pena de morte, o acesso às armas, a morte aos petistas, comunistas, gaysistas, umbandistas e globalistas. É porque eles estão acostumados com as histórias de um deus que não poupa ninguém além dos seus seguidores fieis. Também não é sem razão que toda essa gente, incluindo aí os católicos fundamentalistas, considera o Papa Francisco, a besta encarnada. Porque Francisco professa um deus de amor, que é um desconhecido para eles.
Então, eis que nesse momento tão obscuro da vida brasileira lá vem a Record com mais uma novela bíblica. O Gênesis. o começo de tudo. O criacionismo. O homem feito do barro por um deus caprichoso que vai se expressar em momentos colossais da vida humana: a queda do paraíso, a disputa entre irmãos pelo poder, a busca pelo poder real, o afogamento de toda a humanidade porque não rendia graças a ele, a destruição de Babel para impedir que a criação se aproximasse do céu, e muito mais. O deus da vingança em todo o seu poder. O deus que fundamentaliza a espiritualidade.
Tudo isso é para dizer que a indústria cultural não dá ponto sem nó. Ela expressa as ideias da classe dominante. E a classe dominante quer forjar uma nação vestida de medo para poder aplicar sobre ela o seu poder. Medo do deus vingador, medo do comunista, medo da mulher emancipada, medo do negro, medo do diferente, medo de tudo. Então, contra esse medo vem a mão dura da polícia, do pastor, do padre, do patrão.
Eu tive uma criação católica. Minha mãe era devota e no seu exemplo ia nos ensinando sobre a religião. Mas ela era jesuânica, agarrava-se à nova aliança, entendia que era chegada a hora de um deus dos de baixo. Já bastava de reis, rainhas, templos suntuosos, líderes de mão de ferro. Ela cria em um Jesus amoroso, vestido em sandálias, comendo com os pecadores, as putas, os esquecidos. E é nesse deusinho que eu creio também. Mas, infelizmente, a voz que ecoa é a do Macedo. Ele tem televisão. E nessa usina do ódio vai gerando um povo sem compaixão.
Enquanto isso, o Cristo, o que veio para zerar o horror do Velho Testamento, segue sendo chicoteado, torturado e morto. Todos os dias nas ruas das nossas cidades.
Elaine Tavares é jornalista, radialista e educadora. Mestre em Comunicação Social pela PUC-RS e doutora em Serviço Social pela UFSC. É coordenadora de comunicação do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA) da UFSC.
Crédito da imagem:
https://recordtv.r7.com/genesis/novidades/voce-sabe-tudo-sobre-adao-e-eva-em-genesis-faca-o-teste-10022021
Excelente texto, muito bem organizado,informativo e esclarecedor.
ResponderExcluirUma ótima aula.
Parabéns
Obrigado Silvio, em nome da jornalista Elaine Tavares...
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