Eis nosso primeiro imperador com a farda de general, bem como as condecorações que portava em sua urna mortuária: a Ordem da Torre e Espada do lado direito e o Tosão de Ouro pendurado no pescoço (imagem acima). Todo o processo de pesquisa resultante da exumação dos restos mortais de Dom Pedro I (1798-1834), das imperatrizes Dona Leopoldina e Dona Amélia (respectivamente, primeira e segunda esposa do monarca) realizada em 2012 (ver nossa postagem Os Ossos do Imperador: a exumação de D. Pedro I), resultou numa tese de doutorado defendida agora pela arqueóloga e historiadora Valdirene Ambiel com o seguinte título: Estudo de aspectos antropométricos e médicos dos primeiros imperadores do Brasil. A pesquisadora esteve à frente dos estudos feitos durante toda uma década, desde o momento de abertura das urnas funerárias e que contaram com todo um trabalho multidisciplinar de historiadores, arqueólogos, médicos patologistas, especialistas em medicina forense, ortodontistas e radiologistas, entre outros. Basta dizer que, apesar da autora ser historiadora e arqueóloga, a tese foi defendida no Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), sob orientação do professor Carlos Augusto Pasqualucci.
Trata-se de um levantamento minucioso, que já havia sido precedido por uma dissertação de mestrado para o Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, e que contou com aproximadamente 20 mil imagens de tomografia computadorizada para cada um dos restos mortais exumados (na foto acima, Valdirene Ambiel diante dos restos da imperatriz Dona Leopoldina em 2012). Os rostos dos três personagens foram feitos pelo artista digital Rodrigo Avila, com base nessas imagens, em evidências anatômicas, na iconografia existente (quadros, pinturas e desenhos de época), documentos e também informações arqueológicas reunidas pela equipe.
Como se sabe, Dom Pedro (filho do rei português Dom João VI) foi o personagem central do processo de rompimento do Brasil com Portugal ocorrido em 1822, há exatos 200 anos. Um arranjo que deu a possibilidade do Brasil se tornar, do ponto de vista formal, um país independente, mas que também atrelou por quase uma década os vínculos com a monarquia portuguesa. Dom Pedro apesar de ser príncipe herdeiro do trono português, tornou-se o primeiro imperador do Brasil. Mas, depois de sua abdicação (renúncia) em 1831, voltou ao país de origem para se tornar rei, não antes de lutar contra o próprio irmão, Dom Miguel, usurpador do trono. Por isso é que existe a velha anedota de que foi melhor para ele ser quarto em Portugal do que continuar sendo primeiro no Brasil, pois aqui teve o título de Pedro I e lá Pedro IV.
Os retratos obtidos dos três personagens correspondem aproximadamente à idade em que faleceram, ou seja, Dom Pedro aos 35 anos, Dona Leopoldina aos 29 anos e Dona Amélia, a mais longeva, aos 60. Os mesmos se fazem acompanhar das roupas, joias, condecorações e insignias com que foram sepultados. Na verdade, o que foi realizado é um trabalho de "aproximação facial" e não exatamente reconstrução, como destaca Valdirene Ambiel, uma vez que se trata de uma estimativa e não uma reconstituição fidedigna e absolutamente precisa, algo que seria impossível.
Nesse processo, cada músculo foi sobreposto em um modelo tridimensional da cabeça, do pescoço e do tórax de cada um dos indivíduos, a partir da imagem de seus esqueletos obtida por meio da tomografia computadorizada (como nas duas imagens acima, correspondentes ao rosto de Dom Pedro I). Trata-se praticamente de um trabalho de escultura, feito por um artista plástico, só que de forma digital. Valdirene Ambiel afirmou ao Jornal da USP que o resultado final significou uma verdadeira união entre arte e ciência.
O resultado foi confrontado com referências históricas existentes, nas pinturas e gravuras feitas por artistas da época em que os personagens viveram, como o último retrato feito em vida de Dom Pedro pelo artista Simplício Rodrigues de Sá em 1830 (imagem acima).
No caso da imperatriz Dona Amélia, existem quatro fotografias que chegaram até nós (uma delas aparece acima e foi tirada em 1861), pois quando a mesma faleceu em 1873, a técnica da reprodução fotográfica já existia. Até mesmo para essas referências iconográficas não devemos atribuir uma exatidão precisa, pois as mesmas sofriam influências de todo um contexto social e político, devendo ser levada em consideração as finalidades com as quais eram produzidas e até mesmo como os personagens gostavam de ser retratados. Além disso, temos também as características individuais dos artistas que confeccionaram tais imagens. Contudo, o que foi feito neste trabalho de doutorado não significa, de modo algum, que essas referências visuais devam ser desprezadas ou colocadas de lado, mas sim agregar mais informação ao que já existia em termos de fontes visuais.
Alguns detalhes curiosos surgiram a partir dessas pesquisas. Primeiro fica desmentido em definitivo o mito de que a morte de Dona Leopoldina de Habsburgo-Lorena (acima, aproximação facial da imperatriz) teria ocorrido em decorrência de uma fratura no fêmur provocada por um empurrão de Dom Pedro, após uma briga do casal. Nenhuma fratura foi constatada e acredita-se mesmo que nossa primeira imperatriz teria falecido em dezembro de 1826, pouco antes de completar 30 anos, após uma série de complicações decorrentes de um aborto espontâneo (após ter tido 6 filhos com o imperador).
Por sua vez é preciso destacar que o relacionamento do casal imperial passava por duros revezes, muito em função do caso extraconjugal mantido por Dom Pedro com Dona Domitila de Castro, a conhecida Marquesa de Santos. A agonia de Dona Leopoldina (acima, a arquiduquesa da Aústria, Dona Leopoldina aos 20 anos, em uma pintura de Jean-Baptiste Isabey de 1817) se deu num ambiente familiar conturbado, algo comprovado por vários documentos e testemunhos.
Já em relação a Dom Pedro I, a tomografia de seu crânio (imagem acima) revelou que ele tinha um desvio do septo nasal, algo que poderia ter lhe causado um certo desconforto respiratório durante a vida. Da mesma forma, teve várias costelas fraturadas em decorrência de acidentes com cavalos. Por outro lado, tinha a dentição bem cuidada e sem cáries, além de dois dentes com restaurações metálicas feitas em ouro, algo que sugere que o imperador tenha estado sob os cuidados de um cirurgião-dentista. O desgaste dos seus dentes mostra que ele tinha o hábito de mastigar do lado direito da boca. Para a elaboração da tese foi obtido um documento de óbito, feito no dia seguinte a sua morte, que ocorreu em 25 de setembro de 1834 (um mês antes de Dom Pedro completar 36 anos) e que se encontrava guardado no Arquivo da Torre do Tombo em Lisboa. As informações contidas no mesmo comprovam a suspeita de que Dom Pedro teria morrido de tuberculose. Nada na analise de seus restos mortais foram capazes de desmentir isso.
No que diz respeito à imperatriz Dona Amélia de Leuchtenberg, um detalhe interessante chamou a atenção já nos trabalhos de exumação, o bom estado de conservação de seu cadáver (foto acima), praticamente mumificado. Boa parte dos tecidos estavam preservados, bem como os cílios, sobrancelhas e cabelos, em função do corpo ter sido embalsamado e o caixão estar bem vedado.
Dona Amélia (acima, a aproximação facial e uma foto da mesma) foi casada com Dom Pedro por cinco anos e os dois tiveram uma filha. Ela faleceu em janeiro de 1873 aos 60 anos, de problemas cardíacos, quatro décadas depois do marido, mantendo o luto pelo resto de sua vida, tendo sido sepultada com vestido escuro. Ao que parece, os seus últimos anos não foram saudáveis, pois sofria de problemas na coluna (talvez uma escoliose) e de osteoporose, além de ter perdido quase toda a sua dentição (só lhe restaram cinco dentes na parte inferior da boca). A imperatriz é pouco lembrada na historiografia da independência, uma vez que tinha apenas 10 anos de idade quando o Brasil se separou de Portugal e 17 quando contraiu nupcias com Dom Pedro (que por sua vez, tinha 31). Teve bem menos influência na vida política da época do que a sua antecessora, Dona Leopoldina, a qual teve participação importante nos momentos decisivos do processo de emancipação do Brasil, às vésperas do 7 de setembro.
Toda a metodologia utilizada para a elaboração da aproximação facial dos personagens históricos poderá futuramente ser aplicada em outros casos. Lembremos que os restos mortais de Xica da Silva, a escrava alforriada que viveu na cidade de Diamantina (MG) no século XVIII, também foram exumados e aguardam um estudo semelhante. Além disso, essa experiência pode ser aplicada na área forense para a identificação de ossadas de pessoas desaparecidas ou vítimas de crimes. Em outros estudos, pode contribir para a pesquisa sobre hábitos alimentares e a respeito das doenças mais comuns em determinados períodos históricos.
Ainda em termos historiográficos a questão requer certos cuidados com relação a personagens já consagrados no imaginário da população, sobretudo no perigo de reforçar certas características que perpetuam a visão heróica dos mesmos. O trabalho do historiador deve estar pautado pelo olhar crítico e questionador dos acontecimentos, embora não reste nenhuma dúvida de que visualizarmos o rosto desses personagens sempre desperte o interesse do público em geral. Tais aproximações retratam os mesmos num determinado momento, em geral no esplendor da juventude. Os mesmos nascem, atravessam a puberdade, se tornam adultos e envelhecem (isto no caso daqueles que chegam a completar essas etapas). Em muitos momentos, sobretudo nos mais difíceis, a beleza pode dar lugar a rostos e faces que podem demonstrar amargura ou sofrimento, pois afinal, nem tudo na vida é formosura e juventude, mesmo para reis, rainhas, imperadores, imperatrizes, príncipes e princesas...
Crédito das imagens:
Foto de Valdirene Ambiel em 2012: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/almanaque/da-urna-surpresa-ao-mito-do-empurrao-5-fatos-sobre-os-restos-mortais-da-imperatriz-leopoldina.phtml
Retrato de Dona Leopoldina em 1817, fotos da imperatriz Dona Amélia e do quadro de Dom Pedro I feito por Simplício Rodrigues de Sá: Wikipédia.
Demais imagens: https://jornal.usp.br/ciencias/cara-a-cara-com-a-familia-imperial-pesquisa-simula-rostos-de-d-pedro-i-e-suas-esposas/
Excelente matéria, com assunto muito relevante! Não li o estudo da dra. Valdirene Ambiel (o contato que tive com os resultados foram por meio de artigos para o público geral), então não consegui captar qual exatamente foi a tese defendida por ela, uma vez que os resultados parecem ser apenas curiosidades históricas.
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